CARTAS DO VELHO DO RESTELO

Cristo e a hipocrisia (que nos rodeia)

brown paper and black pen

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Hoje é dia de Natal, e começo com uma obviedade: não haveria Natal sem Jesus Cristo. Um dos aspectos mais interessantes de Cristo foi mencionado por Chesterton: Cristo é tão rebelde (Chesterton não usou este termo) que, na Cruz, desafia a própria divindade que reclama para si: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»

Outro aspecto pouco falado e curiosíssimo em Cristo é a sua veemente repulsa da hipocrisia e, particularmente, do moralismo hipócrita, ele que tantas vezes usou as palavras «hipocrisia» e «hipócritas».

Cristo condenou duramente a auto-sinalização de virtude e usou a palavra «hipócritas»: «Quando deres esmola, não te ponhas a trombetear publicamente, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de ser glorificados pelos homens.» Há mais citações de Cristo deste jaez.

low angle photography of turned on lamp

Quando condena os escribas e os fariseus, chama-lhes «hipócritas», que eu contasse, sem a ajuda do ChatGPT e consultando a Bíblia em papel, oito vezes. Apenas um trecho a título de exemplo: «Escribas e fariseus, hipócritas, que limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estais cheios de ganância e cobiça! […] Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda a podridão.»

No Inferno de Dante, os hipócritas são condenados ao castigo de vestir belos mantos que brilham como ouro, mas que, por dentro, pesam como chumbo e fazem os ossos ranger.

Lembrei-me de tudo isto porque muito recentemente ouvi um indivíduo dizer que a coisa que mais asco lhe causava eram as pessoas que traíam as namoradas na noite, cinco amnésicos minutos antes de procurar a sorte com todas as que encontrava na noite, enquanto a namorada dormia a sono solto em casa.

Dei por mim a reflectir…

closeup photo of religious statue

Oh, quantos pequenos aldrabões vi eu bradar contra os grandes aldrabões, o seu inimigo dilecto.

Oh, quantos clamam pela criminalização do discurso de ódio enquanto o praticam com frequência…

Oh, quantos se deslocam nos transportes mais poluentes para ir a grandes cimeiras pelo clima…

Oh, quantos engraçadinhos vemos hoje a moralizar e policiar os outros por fazerem piadas não-inclusivas, e que faziam facécias mil vezes menos inclusivas quando os ventos do tempo eram outros… Desconfiai sempre daqueles que estão com os ventos do tempo… deles, a História não reza… nem nunca rezou.

Oh, quantos são ardentes defensores da liberdade de expressão, mas apenas para as suas ideias…

Oh, quantos adoram e se preocupam com os pobrezinhos e sofrem, contudo, de aporofobia, isto é, da fobia de pobres, de quem gostam muito… mas longe, bem longe. A demagogia com os pobres fica sempre bem, é fácil e dá palmas.

Oh, quantas criaturas vi nas redes sociais a proclamar-se feministas e que, fora das redes, são precisamente as menos feministas que conheci…

Oh, como tantos proclamam com sorrisos de plástico o multiculturalismo enquanto abstracção e têm nojo dele na prática…

Oh, quantos patrões conheci que pagam menos de cinco euros por hora aos seus trabalhadores, que adoram ter estagiários não-remunerados por seis meses ou mais, e vão a colóquios e comícios proclamar-se anticapitalistas.

Oh, quantos valentes que garantem que dizem sempre o que pensam, mas que, perante o patrão ou alguém com bons contactos, estão sempre a dar graxa e a perguntar com as costas curvadas e voz delico-doce:

«Quer o chazinho mais quente? Quer mais um pacote de açúcar? Ou prefere adoçante? Deixe estar, que eu vou buscar. Veja lá se está bem assim.»

Comecei com Cristo e termino com Cristo.

Antes de citar Cristo, permitam-me citar Scott Fitzgerald: «De cada vez que te apetecer criticar alguém, lembra-te sempre de que nem toda a gente neste mundo gozou algum dia das mesmas vantagens que tu.»

E agora, sim, cito novamente Cristo:

«Como podes dizer a teu irmão: “Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho?”, quando não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão.»

Feliz Natal, caríssimos.

Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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