Editorial

Polígrafo: um indecente fact-checker para branquear a imprensa mainstream

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Março 20, 2022


Categoria: Opinião

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Em 14 de Outubro de 2018, o fundador e director do Polígrafo, Fernando Esteves, escreveu o seguinte, ao anunciar o seu fact-checker: “Outro detalhe importante: o Polígrafo não analisa notícias de outros jornais. O trabalho dos nossos colegas, sendo muito relevante, não é o nosso core business. Escolhemos avaliar e classificar, de acordo com uma escala, as declarações dos protagonistas das notícias, porque são eles os agentes proativos na difusão de inverdades no espaço público.

Convenhamos, que Fernando Esteves e os seus colaboradores têm cumprido: nunca analisam o trabalho dos seus colegas, e por maioria de razão, sendo eles jornalistas, nem a qualidade do seu próprio trabalho.

black haired woman

Ora, como bem se sabe, eu e particularmente o PÁGINA UM não somos propriamente defensores do papel imaculado da imprensa, nem tão-pouco que seja ela um mero agente de transmissão de informação.

Em más mãos, em maus profissionais, em pessoas com problemas em perceber e praticar os princípios da ética e da deontologia, a informação facilmente se transforma em manipulação.

Isto a pretexto de um fact-checking do Polígrafo, ontem publicado, sobre a veracidade da morte de soldados ucranianos na ilha de Zmiinii (ou ilha das Serpentes) por terem recusado a rendição, no início da invasão pela Rússia.

Na introdução ao tema em verificação, a jornalista do Polígrafo Salomé Leal escreve o seguinte: “De acordo com várias publicações nas redes sociais, os 13 soldados ucranianos que defendiam a Ilha das Serpentes, no Mar Negro, terão sido mortos pelos russos, depois de terem protagonizado um ato de resistência que já é considerado histórico na guerra da Ucrânia. Confrontados por militares russos e aconselhados a renderem-se, os ucranianos terão respondido: ‘Vão-se lixar!’ Confirma-se que os 13 resistentes perderam a vida?

Como se sabe agora, esta informação é falsa.

Contudo, toda a análise do Polígrafo omite o papel crucial da comunicação social mainstream na divulgação desta fake news, propalada inicialmente pelo governo ucraniano, de tal modo que o presidente Volodymyr Zelenskyy até chegou a anunciar condecorações póstumas aos soldados massacrados.

Na verdade, tanto a imprensa internacional como a nacional não fizeram o “trabalho de casa” essencial no jornalismo: verificação dos factos; ou, no mínimo, assumpção do erro pela manipulação a que foram sujeitos. A inverdade, termo usado por Fernando Esteves, não foi iniciada nas redes sociais. Teve a sua génese e eco, e maior, por causa das notícias na imprensa mainstream.

No caso português, eis os jornais que relataram, em primeira-mão, esta fake news: Público (numa parceria com o Washington Post), Expresso, Visão, Sábado, Observador e (a inefável) CNN Portugal, apenas para citar alguns.

Notícia do Público, em parceria com o Washington Post, de 25 de Fevereiro que se revelaria “fake news”

Passado uns dias, vários destes órgãos de comunicação social deram o dito por não dito, sem um mea culpa. O Público até teve a desfaçatez de fazer a seguinte adenda, três dias mais tarde: “Esta notícia teve uma actualização“. Ou seja, os mortos (da primeira notícia) passaram a estar vivos (na segunda notícia).

Convenhamos que uma situação dessa natureza, uma “actualização” assim, apenas é “conhecida” com Cristo: na Sexta-Feira Santa estava “morto”; no Domingo de Páscoa o seu estado sofreu uma “actualização” para “vivo”.

E que faz o Polígrafo? Nada! Omite tudo isto. Omite o papel da imprensa mainstream. Execra as redes sociais como fonte de toda a manipulação. Limpa a imagem da imprensa, do triste papel dos jornalistas que na pressa de darem informação sem verificação, apenas divulgam, de forma viral, notícias manipuladas.

Indicação da falsidade da notícia inicial com a mera referência de ser uma actualização

Relembro, por isso, ao Polígrafo aquilo que, segundo consta no seu site, é – ou deveria ser – o seu método:

A partir do momento em que o POLÍGRAFO (…) decide ‘checar’ uma informação, há cinco passos que devem ser cumpridos:

Consultar a fonte original da informação

Consultar fontes de natureza documental que possam solidificar o processo de checagem

Ouvir os autores da afirmação, dando-lhes o direito de a explicar

Contextualizar a informação

Avaliar a informação de acordo com uma escala de avaliação“.

Na sua ânsia de diabolizar as redes sociais e de lavar a imagem da imprensa mainstream, o Polígrafo não cumpriu, em rigor, nenhum destes passos.

Manipulou.

O habitual.

Compreendo cada vez melhor por que razão Fernando Esteves nunca quis que o seu Polígrafo verificasse o trabalho dos jornalistas. Prefere branqueá-los quando fazem porcaria, culpando as redes sociais – excelentes bodes expiatórios. Uma indecência.

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