CAPÍTULOS 34-36

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Dezembro 31, 2023


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


34 – O insuperável prazer de matar

Olhei espantado para Fedorova Smerdlova. Sabia do seu teatro, mas pareceu-me demasiado suspeitoso querer meter todos como suspeitos.

– A senhora poderia explicar melhor esta sua última frase? – indaguei.

– Claro! De que nós, chamados civilizados, nos alimentamos? De morte. Só vivemos porque sacrificamos animais e vegetais.

– Vegetais?

– Por acaso um amarelo como tu acha menos bárbaro arrancar uma mandioca da terra do que degolar um bode?

– É uma tese insólita, mas interessante – admiti. – E então a senhora acha que a morte de dona Miguela foi natural?

Depois de emitir um formidável soluço, a russa falou com voz embargada:

– Olhe bem pra Mikuchina, cabra da peste! Ela era uma muié sabidamente elegante, mas está de mantilha. Ora, nem mesmo uma beata espanhola gostaria de morrer com uma porcaria dessas no quengo! Por causa dessa mantilha, sou tentada a dizer que a coitadinha teve morte fulminante.

– Mas a morte que a fulminou terá sido natural ou provocada? – insisti.

– Meu sensível coração russo me diz que a Mikahilachka foi assassinada. E por quê? Ou porquê? Ora, porque sinto que sua pobre alma ainda vaga pelos corredores desse hotel. O espírito dos que morrem de causas naturais sobe direto ao céu.

– Como alguém a poderia matar se ela estava num quarto fechado à chave? – perguntou Batota.

– Observei atentamente esta bosta de apartamento e não vi nem sinal da passagem de um assassino por aqui – disse a russa. – Por isso, conclui que a morte chegou aqui de maneira invisível.

– Invisível! – entusiasmou-se o português. – Então a senhora acredita em fantasmas, duendes e vampiros?

– Não. Falo de substâncias invisíveis! Gases venenosos, por exemplo. Matar com gás é um verdadeiro esporte em meu país. No tenebroso inverno russo, esposas ciumentas e cornos revoltados se utilizam do sistema de aquecimento para se livrar de cônjuges safados.

– Mas o cheiro de gás não teria sido percebido pelas outras pessoas? – indaguei.

– A ciência é coisa do Cão – rugiu a russa. – Já inventaram até um gás letal inodoro.

– E o motivo, dona Fedorova? – questionei. – O que teria, na sua opinião, levado alguém a matar dona Miguela?

– Oxente, quanta ignorança! Hoje em dia, mata-se mais sem motivo. Mata-se simplesmente pelo insuperável prazer de eliminar um ser humano. Mas, no caso de Mikahiloka, eu diria que vingança ou inveja movimentaram a mão do lazarento matador.

Fedorova levou a garrafa aos beiços e, de um só gole, sugou o que havia de cachaça dentro dela. Que não era pouca coisa. Depois de bater repetidamente no próprio peito, como Tarzan quando vê um cipó, ela se retirou do apartamento 1313, chorando, soprando fétidas nuvens de tabaco. Mas ainda rematou:

– Pobre Mikutinka! Oh, minha doce alma gêmea, quem saberia dizer por que teu livro O touro maltês tem tantos trechos que parecem copiados do meu Contravenção e penalidade? Se nossos livros são tão parecidos, por que o meu vendeu apenas sete milhões de exemplares enquanto o teu vendeu vinte milhões?

Batota e eu nos entreolhamos.

– Ouviu bem essas últimas frases? – murmurei no ouvido do português. – Esta senhora russa tem os dois motivos que ela mesma apresentou como prováveis para o assassinato: vingança pelo plágio de seu livro e inveja pela vendagem maior da espanhola.

Batota também me olhou espantado. Mas pareceu-me que não compartilhava minhas suspeitas, embora certamente reconhecesse o valor do meu argumento.

– Vou buscar agora a senhora Águeda Christine – retrucou-me ele, emburrado. – Espero que sejas mais respeitoso com ela, que não lhe faças tantas perguntas inoportunas e inconvenientes.

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35 – Cadáveres apodrecem mais rápidos nos trópicos

Quando Batota chegou de novo à sala de reuniões, lady Águeda Christine informou que Sim Et Non e ela haviam decidido investigar juntos o quarto de dona Miguela.

– Não imaginava que fossem tão amigos – comoveu-se o português.

– Não é o caso, moço – disse a escritora inglesa. – Na verdade, a gente se odeia. Não é assim, Sim?

– Se odeia pra cacete – concordou o francês. – É ódio maior que o Maracanã lotado.

– Se é assim, não entendo porque desejam entrar juntos – ponderou o gerente do hotel.

– As coisas mais interessantes são as incompreensíveis – disse a escritora britânica. – Entrando juntos, teremos chances iguais na investigação. E deste modo o mais inteligente encontrará as pistas mais consistentes.

– É isso aí, sangue bom – ajuntou Sim Et Non. – O derrotado terá três saídas: cortar os pulsos, atear fogo às vestes ou beber formicida.

– Deixe de ser aborrecido, bobinho – disse Águeda Christine. E, voltando-se para Batota, acrescentou: – Juntos, a gente se vigia mutuamente. Assim, posso evitar que o danadinho do Sim falsifique ou roube provas.

Como a frase surpreendeu o francês no início de uma funda baforada, ele não pode responder de imediato.

– Vamos logo até ao 1313 – comandou Batota. – Não se sabe quanto tempo demorará a chegar o rabecão da Polícia.

– Se é que virá – comentou Sim Et Non. – Aliás, nos trópicos os cadáveres apodrecem rapidamente. Os políticos, também. A senhora sabe, lady Águeda, qual a diferença entre um político europeu e um latino-americano?

– Uai, nossos políticos roubam menos – respondeu a inglesa. – Cobram percentagens menores dos corruptores.

– Nada disso! – chiou o francês. – A diferença é que os europeus roubam para a caixinha do partido, enquanto os cucarachas roubam para eles próprios. Mas coincidem em um ponto: ambos depositam o dinheiro roubado na Suíça.

– Ocê tem razão, Sim. Esse trem da corrupção funciona desse jeitinho mesmo… Mas eu não sabia qu’ocê se interessava por política.

– Não me interesso por política, cacete! Eu me interesso por crime, o que vem a dar no mesmo.

Lado a lado, parecendo afinal dois bons compinchas, caminhavam a alta escritora inglesa e o francês baixote. Atrás deles, de gravador ligado e tomando notas frenéticas, seguia eu, ao lado de Batota.

– Também há uma grande diferença entre os escritores policiais ingleses e americanos – disse Sim Et Non. – Americanos gostam de crimes sangrentos e de detetives brutais. Já os britânicos preferem crimes intrincados e detetives cultos…

– Temos outra grande diferença dos americanos – acrescentou a escritora. – Escrevemos em inglês. Eles usam um dialeto, o cauboiês.

– Ingleses são razoáveis autores de novelas policiais – reconheceu o francês. – Pena que os crimes que inventam sejam tão rocambolescos que seus livros acabam parecendo bolos confeitados.

– Gosto demais da conta dos detetives franceses – sibilou lady Águeda. – Fico impressionada com os automóveis que eles usam. São carros que têm mais marchas à ré do que à frente: são melhores para fugir mais depressa dos bandidos.

E lá foram entretidos na conversa até ao 1313.

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36 – Os assassinos de hoje preferem tiros e facadas

Ao chegarmos ao apartamento da falecida Miguela de Alcazar, os dois escritores estavam quase saindo na pancada, apesar dos risinhos falsamente cordiais que trocavam.

Lado a lado, a inglesa e o francês entraram ambos com o pé direito no apartamento 1313. Batota e eu nos detivemos no umbral a observá-los.

A escritora dirigiu-se diretamente para a falecida. Parou a um passo dela, abaixou-se e se pôs a observar-lhe atentamente o rosto.

Já o escritor se colocou exatamente no centro do quarto, abriu um pouco as pernas e cruzou os braços. Quase imperceptivelmente, movia o pescoço. Com os olhos semicerrados percorria o apartamento. De quando em quando, lançava uma nuvem de fumaça de tabaco.

– Atenção, Campestre – murmurou Batota junto ao meu ouvido. – Desde o primeiro momento eles mostram-se muito diferentes. Lady Águeda parece-me pessoa pragmática, que quer logo descobrir alguma coisa por observação direta. Já mestre Sim Et Non surge-me mais espiritual, quer deixar-se impregnar pelo ambiente. Em suma, ele trabalha mais com a intuição; ela, com a razão.

Surpreso, voltei-me para o português, mas não pude retrucar porque a escritora britânica começara a falar:

– Os peritos brasileiros deveriam ter examinado melhor essa Bíblia. Há manchas no alto das páginas. Acho que essas páginas foram manipuladas por dedos enfiados em alguma substância líquida. Veneno, melhor dizendo.

Batota e eu trocamos um olhar estupefato.

Após um minuto de silêncio respeitoso, Sim Et Non soltou um risinho debochado:

– Tu taix brincando! Miguela teria que ler umas vinte mil páginas pra se envenenar desse modo!

– Uai, é óbvio que não! – a voz da escritora inglesa tremeu ligeiramente. Era visível o esforço que ela fazia para controlar a raiva. – Depende do grau de toxicidade desse trem de veneno.

– Vocês, ingleses, são antiquados pra cacete! – retrucou o francês. – Por que não abandonam essa mania de estar sempre a envenenar as vítimas, como os russos? Os assassinos de hoje preferem tiros e facadas…

E a seguir, como se tivesse tido uma súbita ideia, ele voltou-se para Batota:

– Oh, vascaíno, por falar em veneno, me diz uma coisa: o que a Miguela comeu no almoço de hoje?

– Feijão com arroz, bife e batatas fritas. E bebeu limonada.

– Uai, como é qu´ocê sabe disso, assim na pontinha da língua? – perguntou Águeda Christine, desconfiada.

– Oh, carago! – reagiu bruscamente o português. – Sei disso porque fui eu que preparei o prato. Ela telefonou-me ao meio-dia a dizer o que queria comer. E mencionou as quantidades exatas. Para mim, foi uma honra confeccionar e servir-lhe o almoço. E depois fui eu próprio que trouxe o prato para aqui. Está a desconfiar de mim?

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(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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