Quando Marcelo Rebelo de Sousa anunciou a data das eleições legislativas para 10 de Março, lembro-me de ter pensado que seria um martírio termos quatro meses de campanha eleitoral. Mas estava longe de imaginar esta a pobreza franciscana, desde que António Costa anunciou o seu despedimento.
Nestes tempos, há uma luta quase deprimente, entre o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), para fazerem prova da sua honestidade. Andamos há um mês a fazer a “revisão da matéria dada” e a contar os “tutti-fruttis” que cada um destes partidos traz para a mesa das negociações.
Hoje, enquanto escrevo, discute-se a compra de acções dos CTT por parte do Governo PS e a renovação da casa de Montenegro, que, na realidade, foi uma construção de um prédio novo. Amanhã, deve começar a aparecer a participação de Pedro Nuno Santos na empresa da família, e lá para a semana que vem deve voltar a privatização da TAP e o frete feito ao Neeleman.
Os dois partidos que tomam todas, mesmo todas, as decisões, que foram moldando a realidade portuguesa desde 1976, e que desperdiçaram rios de fundos europeus em estradas, corrupção e clientelismo, chegam a 2024 sem nada para dizer excepto apontar os roubos do vizinho.
Mas faz sentido… E sabem porquê? Porque no essencial, cada um destes partidos do ‘centrão’, serve para criar carreiras aos seus quadros, garantir um emprego para a vida em redor de altos cargos públicos e, já agora, enriquecer alguns dos seus membros. É preciso gritar muito e apontar o dedo, dando a ilusão que se tenta marcar a diferença quando, em rigor, PS e PSD são faces parecidíssimas da mesma moeda.
Vejam como as principais caras do PS são as mesmas, década após década. Gente que não passou um dia a trabalhar noutra coisa que não fosse um cargo público arranjado pelo partido. Pessoas que se sentam a opinar e legislar a vida de milhões de portugueses sem nunca terem contacto com as dificuldades do mercado de trabalho, de um empréstimo bancário, da luta por uma casa.
Há casos de filhos de antigos ministros ou altos quadros do PS que, mal saíram das universidades, já estavam em lugares elegíveis nas listas de deputados. Regionais, nacionais, não importa. São carreiras garantidas, zero idas a entrevistas de emprego, a mediocridade garantida e perpetuada nas costas dos ‘papás’ e do cartão do partido. Gente sem um dia de vida passado na realidade, e que nos tenta convencer que conhece as nossas dificuldades e até sabe quais são as soluções para os nossos problemas.
Como é que alguém que nunca foi a uma entrevista de trabalho, que teve uma casa oferecida pelos pais, que teve passagem facilitada na universidade e que foi colocado numa assembleia, a legislar sobre temas que desconhece, me pode entender e/ou ajudar? Como é que medíocres destes se perpetuam décadas na função pública em cargos de decisão, entre PS e PSD? Como?
Enquanto o PS “faz a renovação” com os filhos dos que por lá andam desde 1980, o PSD cria alianças em reuniões onde estão, e tomem nota, Nuno Melo, Manuel Monteiro e Paulo Portas. Estão a um Freitas do Amaral, versão original, de fazer bingo do século XX.
Enquanto se digladiam com a ilusão da honestidade e nos dão a ideia de um combate político, vão, isso sim, tratando da vida e evitando qualquer compromisso. Casos como o do tutti-frutti são importantes porque nos explicam aquilo que é a divisão do poder, ao longo de décadas, entre dois partidos. Os pactos de não agressão, a divisão da riqueza, a garantia que todos conseguem roubar do mesmo pote. Essa é a realidade da ascensão ao poder em Portugal e é isso, em resumo, que explica o atraso do país. Isso, e tratar da vida dos membros dos partidos, das suas carreiras, da garantia de emprego e prosperidade. E sem qualquer compromisso real com os eleitores. Já nem se dão ao trabalho de disfarçar com uma ou outra proposta. É um vazio de ideias; uma mediocridade que se arrastará penosamente até Março.
Não é fácil sair disto, porque não há renovação na cena política. Não há espaço para quem vem de fora e não depende de aparelhos partidários. Não há como sair disto, mas é relativamente fácil perceber como aqui chegámos. Basta pensarem que partimos ao lado de Espanha nesta corrida, há quase 40 anos, e hoje eles são uma potência e nós um dos países mais atrasados da Europa. Os fundos correram em toda a Ibéria. Mas enquanto Espanha desenvolvia o tecido produtivo, nós financiávamos a indústria do betão, as parcerias público-privadas (PPP) das estradas e jovens agricultores que queriam comprar jipes e renovar os montes.
No meio deste marasmo de ideias, aparece o Chega e a Iniciativa Liberal (IL), outro deserto de propostas, mas absolutamente essenciais na formação de uma coligação de poder com o PSD. A única diferença entre estes partidos e o actual poder, é que tanto IL como Chega ainda não tiveram hipótese de chegar ao pote. Quando lá estiverem, farão o mesmo ou pior. Com a agravante de tanto IL como Chega terem, na sua génese, a missão de desviar o máximo de dinheiro possível dos serviços públicos para os privados. No fundo, fazerem aquilo que o PS já começou a fazer com este Orçamento do Estado e aplicarem a machadada final no SNS e na Escola Pública.
Restam Livre, Partido Comunista Português (PCP) e Bloco de Esquerda, que parecem ainda ter algum compromisso com os trabalhadores e as condições de vida, sendo que duas destas forças já se manifestaram positivas quanto a futuras coligações de esquerda. Contudo, a avaliar pelas sondagens, as suas votações serão bastante baixas.
Vivemos a realidade da mediocridade na política portuguesa e, segundo percebo, boa parte dos portugueses acha que a solução para os problemas da democracia virá de um partido anti-democrático que nem quadros consegue arranjar (o Chega), ou outro que, ao fim de alguns anos, ainda nem conseguiu concordar com uma visão política ou uma ideia que aguente mais do que 15 dias (a IL).
Estamos de facto a entrar no restaurante que serve mau vinho e a achar, convictamente, que a água da sanita é o acompanhamento alternativo perfeito para o bacalhau do almoço.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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