Não é fácil definir o valor de uma obra de arte, e mais difícil ainda estabelecer o preço concreto de uma encomenda com dinheiros públicos. Mas a Junta de Freguesia da Carvoeira, no município de Mafra, em articulação com o escultor Bordalo II, decidiu inovar. O artista plástico preferido das entidades públicas – coleccionando 29 contratos desde 2018, sempre sem concorrência – ter-se-á ‘cansado’ de propor ou aceitar valores ‘redondos’ para as suas esculturas, e receberá da pequena autarquia da região da Grande Lisboa um montante muito sui generis: trinta e três mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos. Os dinheiros públicos serão desviados de um programa operacional do Ministério da Agricultura.
Da Arte, espera-se criatividade e ousadia. Mas a Junta de Freguesia da Carvoeira, no concelho de Mafra, e o artista Bordalo II decidiram supostamente elevar a Arte a outros níveis, transformando a parte menos interessante de uma futura escultura pública – o orçamento, isto é, o dinheiro pago pelos contribuintes ao artista – numa sátira.
Na verdade, se uma obra de arte – mesmo daquelas sob a forma de escultura a colocar numa redonda rotunda, numa prazerosa praceta ou noutro qualquer recatado espaço público – tem um valor intangível, o artista tem de ver a ‘coisa trocada por miúdos’, ou seja, tem de receber o vil metal para comprar nem que seja batatas, porque Cultura só se consome e se faz com a barriga senão farta pelo menos saciada.
Ora, Bordalo II – nome artístico de Artur Manuel Correia Bordalo da Silva – era até agora conhecido por ser o escultor com mais obras encomendas por entidades públicas. Nos últimos cinco anos contabilizam-se 29 encomendas públicas, sobretudo com autarquias locais (Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia), mas onde há lugar para o ecletismo, tanto assim que a Lipor (empresa de tratamento de lixos do Grande Porto) já lhe comprou três esculturas, o Governo outras duas (em 2018 e 2020), o Governo Regional da Madeira outra e até universidades já ostentam as suas esculturas. De acordo com o Portal Base, a empresa de Bordalo II facturou, desde 2018, cerca de 775 mil euros em ajustes directos de entidades públicas.
Mas se, até recentemente, os aspectos conceptuais da obra de Bordalo II tinham como ‘marca de água’ sobretudo o uso de materiais reciclados e a figuração de animais em formato gigante, a encomenda da Junta de Freguesia da Carvoeira pode marcar um ponto distintivo. Com efeito, até agora, a parte orçamental era um bocejo em todos os ajustes directos pela evidente falta de significado ou simbolismo. Por exemplo, o contrato de valor mais elevado, com a Lipor em 2019, estipula que “o preço contratual a pagar pelo Primeiro Outorgante é de 72.000.00€ (setenta e dois mil euros), a que acresce o IVA à taxa legal de 6%”.
O segundo mais elevado, contratualizado em 2021 com a Junta de Freguesia do Parque das Nações (Lisboa), sofre da mesma monotonia orçamental. A cláusula terceira determina que “o preço contratual da prestação de serviços objecto do presente Contrato é de 68.000,00€ (sessenta e oito mil euros) acrescido de IVA à taxa legal em vigor (6%)”.
Praticamente, todos os outros contratos celebrados por entidades públicas para compra de obras de Bordalo II surgem no Portal Base com números redondos, com excepção de três: o primeiro assinado pela autarquia de Almada em 2018, pelo valor de 16.981,13 euros; o segundo contratualizado pela autarquia de Águeda no valor de 13.207,54 euros; e o terceiro é o da Junta de Freguesia da Carvoeira, que surge com o valor de 37.983,33 euros.
Mas se os dois primeiros nada têm afinal de criativo – acrescentando o IVA de 6%, os valores da escultura ficam redondos (18.000 e 14.000 euros, respectivamente), já o orçamento da escultura para a Junta de Freguesia da Carvoeira é muito sui generis, porque não é nada redondo. Nada mesmo, parecendo mesmo um capricho ou uma ‘zombetice’ usando dinheiros públicos.
Assim, ao contrário da generalidade dos outros contratos, aquele que foi assinado para colocar no próximo mês de Abril uma “escultura de grandes dimensões (aproximadamente 200x200x350) em material reciclado que deverá resistir a intempéries” naquela freguesia de Mafra, discrimina os custos de transporte e instalação: 4.650 euros. Isso significa que, em concreto, o valor da obra de arte em si mesma ficou com um valor estipulado de “trinta e três mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos”.
O PÁGINA Um questionou a presidente da autarquia da Carvoeira sobre como se determinara em concreto o valor da obra, e os motivos de tão estranho número, bem como a opção por Bordalo II. Numa primeira fase, a presidente da Junta de Freguesia, a social-democrata Andreia Duarte, começou por referir que “o preço base estabelecido baseia-se numa pesquisa de mercado prévia ao início do procedimento, bem como no valor aprovado na candidatura que irá financiar a obra de arte”, acrescentando que “dos artistas consultados, resultou a seleção daquele que no entender da Freguesia melhor correspondia aos objetivos da execução da obra de arte, nomeadamente utilização de materiais reciclados, experiência em obras semelhantes e notoriedade do trabalho desenvolvido”.
Na primeira resposta ao PÁGINA UM, a autarquia não identificava os eventuais artistas sondados, sendo certo que essa consulta terá sido feita de uma forma completamente informal, uma vez que Bordalo II não foi escolhido através dos procedimentos de consulta prévia, prevista no Código dos Contratos Públicos, mas sim por ajuste directo, sem qualquer concorrência.
Depois de alguma insistência, a autarquia da Carvoeira acabou por indicar que “os nomes comerciais contactados [foram] Bordalo II, Skeleton Sea e José Cardoso Queiroz”, embora para efeitos práticos estes contactos, a terem ocorrido, não produziram qualquer efeito legal.
Além de o valor definido para a obra de Bordalo II, há outros aspecto estranho nesta encomenda. De acordo com o contrato e as próprias informações da autarquia da Carvoeira, esta encomenda será financiada por um programa operacional do Ministério da Agricultura que visa apoiar pequenos investimentos nas explorações agrícola, pequenos investimentos na transformação e comercialização de produtos agrícolas, diversificação de actividades na exploração agrícola, mercados locais, promoção de produtos de qualidade locais e renovação de aldeias.
Embora tenha de se encontrar algum espírito criativo para encaixar uma escultura gigante em materiais reciclados – excepto se incluírem, talvez, restos de foices, martelos, enxadas, cajados, samarras, sacos de serapilheira, botas de cano alto, etc. – num programa operacional para o sector agrícola, a Junta de Freguesia defende que “a criação de uma obra de arte, que relacione os elementos paisagísticos e ambientais locais, e que se torne um elemento de atração de visitantes e de sensibilização da comunidade local para a importância da preservação da biodiversidade, enquadra-se no conceito de valorização previsto da medida”.
E a Junta de Freguesia da Carvoeira acrescenta também um ‘interessante’ aviso: “Esperemos que a notícia seja bem feita, e que não vos venha [ao PÁGINA UM] a prejudicar”.
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