Partido de André Ventura 'rasga' linhas vermelhas da Democracia

Chega quer cortar acesso ao seu congresso a jornalista (de quem não gosta) [act.]

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 11, 2024


Categoria: Imprensa, Exame

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O partido de André Ventura quis discriminar o jornalista Miguel Carvalho, alegando ser freelancer, por não estar afecto directamente a um órgão de comunicação social, justificação que não encontra qualquer justificação legal. O antigo jornalista da Visão, que ainda este mês recebeu o Prémio Gazeta 2022, tem feito investigações sobre movimentos considerados de extrema direita. O caso acabou por merecer uma inédita deliberação urgente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social ainda em tempo útil: se amanhã Miguel Carvalho for impedido de entrar na convenção do Chega, André Ventura será processado por atentado contra a liberdade de informação e por desobediência. Porém, no primeiro dia dos trabalhos, o Chega acabou por aceder a entregar uma acreditação ao jornalista.


A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ameaça fazer uma participação no Ministério Público por atentado à liberdade de informação contra o Chega, caso o partido de André Ventura não conceda acreditação ao jornalista Miguel Carvalho para acompanhar os trabalhos da VI Convenção que se realiza a partir de amanhã, e até domingo, em Viana do Castelo.

Segundo apurou o PÁGINA UM, como habitualmente sucede em outros eventos com potencial de cobertura noticiosa, Miguel Carvalho requereu a acreditação no site do Chega, mas foi-lhe colocado entraves por alegadamente ser jornalista freelancer.

Miguel Carvalho efectivamente não tem agora um vínculo contratual com um só órgão de comunicação social, tendo abandonado a revista Visão em Agosto do ano passado, mas possui um currículo bastante relevante na imprensa. Aliás, recebeu na passada sexta-feira o Prémio Gazeta 2022 por uma reportagem intitulada “O braço armado do Chega”, publicado em 17 de Novembro daquele ano, sobre a militância (proibida por lei) de profissionais da PSP e da GNR no partido de André Ventura.

Na verdade, mais do que o estatuto de freelancer – que não pode ser alvo de qualquer tipo de discriminação –, aparentemente serão mais as abordagens jornalísticas de Miguel Carvalho que terão motivado a ilegal postura do Chega. De acordo com uma deliberação da ERC tomada hoje com carácter de urgência, a directora de comunicação social do Chega, Patrícia Carvalho – que não atendeu o telefonema do PÁGINA UM nem respondeu à solicitação de contacto –, terá transmitido a Miguel Carvalho que deveria “aguardar pelo encerramento das acreditações para saber se poderia ir ou não [obter a credenciação solicitada]”, alegadamente por [o]s jornalistas afectos a OCS [terem] primazia sobre os freelancers”.

O regulador presidido por Helena Sousa salienta, depois de ter dado oportunidade ao Chega de apresentar alegações – o que não fez –, que “quaisquer restrições legalmente admissíveis em sede de direito de acesso implicam, desde logo, o respeito pelo princípio da igualdade, estando vedada a adoção de quaisquer condutas de base discriminatória (…) ou a subordinação a considerações de conveniência, oportunidade ou de mérito por parte do proprietário ou gestor do local (público) em causa ou do organizador do evento que neste se realize”, adiantando ainda que “a restrição ilícita do acesso dos jornalistas às fontes de informação (lato sensu) constitui violação grave de um direito fundamental, consubstanciando uma limitação inadmissível do direito de informar e ser informado”.

Nessa medida, a ERC defende que, apesar do Chega ter o direito de estabelecer um “sistema de credenciação”, com critérios transparentes, deve garantir “as necessárias condições de igualdade e não discriminação a todos os órgãos de comunicação social e jornalistas potencial ou efetivamente interessados na cobertura informativa do evento referido”. E assim sendo, não pode dar primazia de acesso a jornalistas afectos a um dado órgão de comunicação social em detrimento de jornalista freelancer.

Miguel Carvalho, 53 anos, é um dos mais conceituados jornalistas de investigação em Portugal.

Uma vez que esta deliberação urgente, colocada esta tarde no site da ERC tem carácter vinculativo, se o Chega não cumprir as determinações também incorre num crime de desobediência, punido com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias. No caso do atentado à liberdade tem igual moldura penal, embora agravada ao dobro em caso de o infractor ser uma pessoa colectiva pública, como são os partidos políticos.

Ao PÁGINA UM, Miguel Carvalho revelou na quinta-feira à noite que aguardava ainda uma reacção do Chega, e que estaria à porta do Centro de Congressos de Viana do Castelo, onde se ‘entronizará’ novamente André Ventura para avançar como candidato principal do partido às eleições de 10 de Março. Entretanto, o Chega acabou por aceitar conceder a acreditação ao jornalista Miguel Carvalho no primeiro dia dos seus trabalhos.

Nota: Notícia actualizada às 00:30 horas do dia 13 de Janeiro de 2024 com a referência a ter sido concedida a acreditação ao jornalista Miguel Carvalho.


N.D. Ainda em 18 de Dezembro passado, André Ventura se insurgia contra o Facebook por lhe ter cancelado (temporariamente) a sua conta pessoal, dizendo que já fizera queixa a Zuckeberg e ameaçava recorrer à Justiça. Agora, é ele o censor – de um congresso em ‘sua casa’, mas não é bem a ‘sua casa’ porque um partido político não é uma agremiação onde se vai jogar à sueca (e se reserva o direito de admissão), mas sim uma entidade de onde provêm políticos para gerir, sob várias formas, a res publica. E daí que, obviamente, tem a obrigação democrática de abrir as portas: a quem gosta e a quem não gosta. Independentemente de ideologias, a coerência é um dos atributos que mais prezo. Posso dialogar com alguém de uma ideologia que eu não professo – e que está nas antípodas do que defendo –, mas recuso aceitar alguém que manifesta falta de coerência, ainda mais forjada às suas conveniências. Se André Ventura quer ser levado a sério como dirigente de um partido democrático, e acha mesmo que pode ser uma alternativa ao actual establishment, vai assim por um péssimo caminho com este tipo de atitude, que mostram não ser por capricho mas por um perigoso tique. Querer limitar o acesso a um jornalista, porque, enfim, lhe desagradam as suas abordagens, é uma opção intolerável em democracia. Há linhas vermelhas cuja ultrapassagem, em democracia, não pode ser toleradas. PAV


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