CASA DE FERREIRO COM ESPETO DE PAU: Evento público com apoio financeiro de 13 empresas viola Estatuto dos Jornalistas

Congresso de jornalistas exige o que ninguém pede: inscrição com pagamento para cobertura noticiosa

two Euro banknotes

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 15, 2024


Categoria: Imprensa

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Em plena crise reputacional da Imprensa, a Comissão Organizadora do Congresso dos Jornalistas decidiu inovar duplamente: pediu apoio financeiro a 13 empresas e uma fundação – entre as quais dois bancos, a construtora Mota-Engil (onde é administrador Paulo Portas, antigo ministro e fundador nos anos 80 do semanário Independente), a Brisa, a REN, a Google e a Ikea – e mesmo assim ainda decidiu exigir pagamento de inscrição aos jornalistas que, sem participar nas moções, apenas desejem fazer a cobertura noticiosa dos debates. Além de o Estatuto dos Jornalistas não permitir a imposição de preços para o acesso de jornalistas a eventos públicos – e neste caso até está prevista a participação do Presidente da República e de seis deputados –, não se conhece casos similares de exigência de qualquer pagamento como condição de entrada a profissionais da imprensa. O PÁGINA UM, mais por uma questão de princípio e de prevenção, solicitou a intervenção urgente e em tempo útil da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que ainda na semana passada interveio num litígio por o partido Chega ter colocado obstáculos ilegais à acreditação do jornalista Miguel Carvalho.


“Reitere o que entender, reiteramos a nossa resposta”. É assim que Pedro Coelho – jornalista da televisão SIC, professor universitário e presidente da organização do V Congresso dos Jornalistas –, respondeu ao PÁGINA UM, insistindo na aplicação de um pagamento prévio, em violação do Estatuto do Jornalista, para ser permitida a cobertura de um evento público onde, entre outros assuntos, se debaterá o financiamento da imprensa, mas em que a liberdade e o direito de acesso à informação se encontram omissos na programação.

Com um interregno de sete anos, a Casa de Imprensa, o Clube de Jornalistas e o Sindicato de Jornalistas realizam um novo encontro desta classe profissional, aberto ao público, entre a próxima quinta-feira e domingo. Embora já previsto há mais de um ano, o congresso coincide com um período conturbado em algumas empresas de media, com destaque para a Global Media e a Trust in News. Daí que a organização tenha integrado, de forma extraordinária, na cerimónia de abertura, que terá a presença do Presidente da República, quatro depoimentos de jornalistas da TSF (Filipe Santa-Bárbara), Diário de Notícias (João Pedro Henriques), Jornal de Notícias (Alexandre Panda) e TSF (Mário Fernando).

Pedro Coelho, jornalista da SIC e presidente do V Congresso dos Jornalistas, inovou: num evento público com financiamento de 13 empresas e uma fundação, exige pagamento prévio para ser possível a cobertura noticiosa dos debates.

A componente financeira aparenta ser, pela sua predominância do programa do congresso, um dos temas centrais, embora estranhamente sem a participação de administradores das empresas de media, que no programa são ‘substituídos’ por jornalistas e directores dos diversos órgãos de comunicação social, alguns dos quais têm promovido e participado em eventos pagos por empresas privadas e públicas, contribuindo assim para uma descredibilização da profissão e da reputação da imprensa.

Aliás, sem terem sido revelados os montantes concedidos nem as contrapartidas, as três entidades organizadoras aceitaram apoios financeiros do Grupo Brisa, da REN, da NOS, dos bancos Santander e Millennium BCP, da Mota-Engil, do Google, da Mercadona, da Delta, da seguradora Fidelidade, da KIAS, da Xerox, do IKEA e da Fundação Oriente. Além disso, contam ainda com apoios institucionais do Cenjor, Agência Nacional Erasmus, Fundação Inatel, Universidade Autónoma de Lisboa e Câmara Municipal de Lisboa. De entre estas 19 entidades privadas e públicas de relevância noticiosa, somente o Cenjor, um centro de formação de jornalismo, tem ligação directa a temas relacionados com a imprensa. A Mota-Engil conta, desde 2023, com Paulo Portas como administrador. Recorde-se que este antigo ministro e ex-líder do CDS fundou em 1988 o jornal Independente, mas as suas ligações aos media circuncrevem-se agora ao comentário político na TVI.

Apesar de o V Congresso dos Jornalistas ser um evento explicitamente público – ou seja, não é fechado sequer em exclusivo ao jornalistas –, e tanto assim que conta com o “Alto Patrocínio” da Presidência da República, havendo também um debate com deputados de seis partidos (PS, PSD, Chega, Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda e PCP), a Comissão Organizadora, liderada por Pedro Coelho, exige um pagamento prévio aos jornalistas que apenas queiram fazer a cobertura dos eventos. Mesmo se estes explicitem que não pretendem qualquer tipo de participação, como seja votação de moções.

Congresso dos Jornalistas é financiado por uma fundação e 13 empresas, entre as quais a construtora Mota-Engil, que tem Paulo Portas como administrador. O antigo ministro e líder dos CDS-PP, fundador do semanário Independente nos finais dos anos 80 (conhecido pela sua irreverência), mantém agora um pé na imprensa como comentador da TVI.

Saliente-se que o direito de acesso a locais públicos e o exercício desse direito por jornalistas com carteira profissional estão explicitamente consagrados no Estatuto do Jornalista. Sendo que o congresso dos jornalistas é público – admitindo-se a inscrição, sob pagamento, também de não-profissionais do sector, que não têm direito a votar em moções –, o diploma legal de 1999 diz que “os jornalistas não podem ser impedidos de entrar ou permanecer nos locais [onde se realizam eventos em locais abertos ao público] quando a sua presença for exigida pelo exercício da respectiva actividade profissional, sem outras limitações além das decorrentes da lei”.

Ora, o condicionamento do acesso, como exige a Comissão Organizadora do Congresso dos Jornalistas, ao pagamento prévio de um montante, independentemente do valor, viola a lei. Aliás, a legislação refere que “nos espectáculos com entrada paga”, somente se os locais destinados à comunicação social se mostrarem insuficientes, podem ser aplicadas algumas restrições, mas ao nível de prioridades, sendo que os órgãos de comunicação de âmbito nacional e os de âmbito local do concelho onde se realiza o evento têm primazia sobre os demais. Mas está impedido que esse condicionamento seja feito sob a forma de pagamento.

Aliás, se tal se verificasse poderia suceder uma espécie de “leilão de acesso” ou até uma imposição de pagamento arbitrário que, na prática, impedisse a cobertura noticiosa. Se esta prática de exigência de pagamento que a Comissão Organizadora do Congresso dos Jornalistas justifica como aceitável e legal passasse a ser prática comum, diversas entidades poderiam conseguir afastar ‘jornalistas incómodos’ exigindo, para a sua entrada, somas exorbitantes.

Em todo o caso, e apesar do PÁGINA UM ter procurado junto da Comissão Organizadora que indicassem exemplos similares, até agora não são conhecidos outros casos em que os organizadores de um qualquer evento com interesse mediático tenham exigido uma inscrição com pagamento aos jornalistas para acederem aos locais.

Independentemente do montante exigido para se aceder ao evento (20 euros) sobre o qual deseja fazer cobertura noticiosa – tanto que o jornal há meses tem uma secção especificamente dedicada à imprensa –, o PÁGINA UM solicitou uma intervenção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social com carácter de urgência – e em tempo útil, como sucedeu (e bem) recentemente com a acreditação solicitada pelo jornalista Miguel Carvalho para acesso à convenção do Chega em Viana do Castelo.


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