A solidão e a vida cheia de momentos de silêncio, cantigas, prantos e preces da pastora Carmelina Rosa Afonso, em Parâmio, Trás-os-Montes.
As memórias e histórias de milagres de quem já não espera nada, ‘apenas’ ora, chora, pensa e caminha… por caminhos que as pernas já conhecem de cor.
Parâmio.
Terra de choupos, amieiros, carvalhos e castanheiros.
Terra ainda de pastores e de milagres.
A manhã rompeu gélida quiçá invernosa.
Lá adiante, a rua tosca desemboca na igreja matriz, que data de 1783 ou de 1787.
Dona Rosa está a tocar o sino. Conscienciosamente. E sem esforço de maior, apesar de já ter 81 anos generosos como a vida que é — e foi! — a sua.
É o desafio ou a chamada para a celebração do caminho da cruz, a Via Sacra.
Fiéis à fé e ao burgo, que já só tem quarenta e quatro almas, ou simplesmente solidárias, Dona Palmira e a outra Dona Rosa aparecem de roldão para responder ao apelo do sagrado. E do intangível…
As três mulheres percorrem com afinco as catorze estações da igreja. A sabedoria, aqui, ao contrário de lá fora, passa por um único caminho e as mesmas rezas de sempre.
A anciã, que tem a chave da igreja, trauteia de boa fé as orações com um timbre de circunstância.
— Sem Deus não há nada! Nós não podemos viver sem Deus. Não é viver. O viver sem Deus não é viver.
O padre de Bragança só cá vinha por dever. Um dia — já lá vai uma data de anos — abalou para terras de África. Santos de casa não fazem milagres…
Ficou São Lourenço, o padroeiro da aldeia, que não é para aqui chamado.
Daqui a nada são dez da manhã. É mais do que tempo de Dona Rosa desandar.
Parâmio: ruas desertas e casas abandonadas. E algumas ruínas. A mocidade desapareceu. E a escola está fechada.
Vou ver a Fonte do Caílho, que cura moléstias e quebra feitiços. É o que dizem…
A água que corre ao lado da imagem de Nossa Senhora dos Milagres e os preceitos rituais curariam o caílho, o anqueilhado, o angaranho, por outras palavras, uma espécie de raquitismo que impede as crianças de andar.
Crendice ou realidade? Já lá iremos… porque há por estas bandas quem saiba a missa toda.
Poiares, terra do pão.
Estamos a menos de uma légua de Parâmio.
Lá em baixo, a pastora, mais o rebanho e os cães. E uma melodia de há uma eternidade…
— Toda a vida fui pastora.
Toda a vida andei com o gado.
Tenho um nó no meu peito, ó ai, de me encostar ao cajado.
Tenho um nó no meu peito, ó ai, de me encostar ao cajado.
Dona Rosa é pastora e gaba-se de ser pastora.
Faz das tripas coração para levar o rebanho ao pasto. Dia após dia… porque a coisa, aqui, não fia de outra maneira…
Faça sol ou faça chuva, com geada, com neve, mal o sol desponta no horizonte, a anciã assoma por entre montes e vales. Solitária como um lobo tresmalhado.
— O que custa mais é a solidão. A gente viver sozinha, não é? Por cá, passo os dias sozinha. Canto, choro, rezo… Rezo muito o tercinho. Rezo as minhas orações todas. E passo assim o meu tempo, não é? Mas é uma solidão. Não se vê ninguém. Não se vê ninguém pelo campo. Não se vê nada!
Os quatro cães de virar seguem-na — que é como quem diz, seguem o rebanho — maquinalmente.
— Ai, a puta da cadela. Ó Irís, ó Irís, ó Irís, ai sua marota. Rasgava a ovelha para as fazer vir para aqui…
Feitas as contas são 136 ovelhas e 100 cordeiros.
Na “loja”, que é o nome que dão ao curral, só ficaram os animais que acabaram de nascer.
Antigamente, havia sete ou oito rebanhos maiores do que este e outros tantos pastores.
— Eu sou a única pastora aqui. Os mais velhos já morreram. Já estão no Céu. Os mais novos não querem esta vida. Procuram vidas melhores…
Dona Rosa sai todos os dias com o rebanho. Sem pressas que o caminho é comprido.
E oito, nove, doze horas a calcorrear veredas e clareiras passam devagar.
— Penso em tudo. Nos filhos, nos netos, nos bisnetos, na vida. Na morte quando ela virá. Quando Deus me quiser levar estou ao dispor dele.
Deus ou a roleta do tempo não poupam nada nem ninguém. Nem a verdade. E, no fim de contas, tudo acaba em ficção: a morte é a morte.
— Canto muitas vezes a Cantiga da Mãe como já não tenho mãe. “Ó minha Mãe, minha Mãe. Ó minha Mãe, minha amada. Quem tem uma Mãe tem tudo. Quem não tem Mãe não tem nada. É. Sei-a toda.”
Os animais têm preocupações mais prosaicas: enchem o bucho.
Os cães, atentos, vigiam o movimento. E a pastora aproveita para orar.
— Eu rezo este terço das chagas do Senhor. Rezo o terço da Misericórdia. Rezo o terço vulgar que é as dez estações a Nossa Senhora e rezo o terço da chama de amor a Nossa Senhora. Todos os dias rezo estes terços…
— Porquê? Para quê?
— Porque… dá-me impressão que me dá outra vida, não sei. Não sei, pronto. Confio em Deus e em Nossa Senhora.
— E Deus confia na senhora?
— Ora aí é que eu não sei. Não é? Mas eu acho que sim… Eu acho que sim… (RI-SE)
— Acha?
— Acho. Acho que sim. Acho que sim porque eu chamo tanta vez por Ele… Chamo tanta vez por Ele…
A confissão é sincera.
Perdeu o marido há demasiados anos.
Reza, canta, chora…
É tempo de rilhar uma côdea. No saco tem um naco de bacalhau frito, pão e café.
O pior é o frio intenso, que se entranha, apesar do céu limpo.
— Diz-se que no Verão é viver de cão a vida de pastor. E no Inverno é vida de inferno. (RI-SE) É assim…
Sempre foi.
Lá ao longe, ali atrás da primeira colina, é Espanha.
A naturalidade, aqui, na raia é irredutível, mas não é o mais importante. Nunca foi.
— No tempo que houve lá a guerra, na Espanha, a gente também passou fome. E vinha, aqui, a Portugal. Era no tempo que se cozia nos fornos muito pão de centeio e eles vinham aqui. Traziam chocolates e trocavam os chocolates pelo centeio. E para levar para os filhos, pois. E então paravam muitos muitos em casa dos meus pais. Eles davam-lhes um cobertor e dormiam em cima de uns bancos e depois da madrugada é que eles saíam para se livrar da Guarda. Pois… A Guarda tirava-lhes os pães. Tirava-lhes o que levavam daqui. Naquele tempo houve fome na Espanha…
Os animais continuam a comer: malva, joio, língua de ovelha, carrajó, serradela, cardo molar…
A terra é generosa.
À imagem da água que por aqui corre.
— Temos a Fonte do Caílho que é a fonte milagrosa para as crianças encaílhadas. A criança que é ancaílhada põe as perninhas em ruz e não anda. É. Depois de ir à Fonte do Caílho fazer a oração, se a criança for encaílhada anda ao cabo de quinze dias. É. Se não for encaílhada não há nada a fazer. Só por médicos, não é? Pois… Mas o milagre é esse. Se for ancaílhada, a criança cura. A gente leva-as, vai por um caminho, sem falar, até à fontinha. Depois, lá, estão duas pessoas. Se houver madrinha, de preferência é a madrinha. E a outra pessoa. E põe-se uma do lado da fonte e outra do outro lado e diz:
— Toma lá esta criança. Esta criança ancaílhada.
E a outra responde:
— Dá-me a cá sã e salva.
E pega na criança. Depois, devolve-a outra vez nove vezes e nove Pais Nossos e nove Avé Marias.
— E a seguir, o que é que acontece?
— E depois, pronto, a gente rezou essa Avé Rainha, antes reza-se o Acto de Contrição, e benzer e pronto. E a gente sai com fé, não é?
— E a criança começa a andar… – indago.
— Se for ancaílhada, começa a andar. Logo passados dias começa a andar.
Parâmio.
A aldeia da deslumbrante pastora Carmelina Rosa Afonso e dos milagres que acontecem para acudir às desgraças das crianças.
Na Terra Fria o impossível só pertence ao passado. As negações são como as sentenças: inúteis…
Fotos extraídas de vídeo de João Franco/TVI
Reportagem originalmente emitida na TVI, em Março de 2018.
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