CARTAS DO VELHO DO RESTELO

Palavras de todos os dias

brown paper and black pen

minuto/s restantes


Agora

Experimente ouvir uma pessoa na televisão, na rádio, num contexto público ou privado, a falar durante quinze minutos. Quantas vezes disse «agora»? Com o sentido de quê? De «mas», de «por outro lado», de elemento de ligação de raciocínios quando tacteia em busca das palavras, de coisíssima nenhuma.

Exemplos deste (ab)uso que devemos evitar:

«Concordo consigo… Agora… em relação à crise, eu não penso que haja crise alguma.»

«Nada tenho contra a Paula… Agora… não me casava com ela.»

«Os extremismos têm crescido. Agora… a melhoria da qualidade das instituições e da percepção que os Portugueses têm delas é importantíssima neste combate aos extremismos e populismos.  

closeup photo of cutout decors

Amigo

Por preguiça, por macaqueação, por jactância («oh!, eu tenho muitos amigos, eu sou encantador»), por pudor em usar «um conhecido meu» (como se isso escondesse atritos e má vontade), por contaminação do mundo digital, em que aqueles que até podemos nunca ter visto na vida são «amigos» (repare-se que há tantas pessoas que têm milhares de «amigos» nas redes sociais e repare-se ainda na quantidade de vezes que ouvimos: «é meu amigo [nas redes sociais]», «não tenho a certeza, mas acho que somos amigos [nas redes sociais]»); por tudo isso, a palavra perde peso e solenidade — perde importância.

Se tudo é especial, nada é especial.

Se amamos tudo, não amamos nada.

Se tudo está sublinhado, nada está sublinhado, porque o efeito diferenciador se perdeu.

Se Fulano tem 50 mil «amigos», muito provavelmente não terá nenhum.

Porque é o diamante um bem tão valioso?

Porque é raro.

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Arrasar

É impressionante o número de ocorrências, na linguagem publicada, na oralidade (seja num contexto público ou privado), deste verbo. No jornalismo, no mundo digital (notadamente nos títulos dos vídeos), o verbo superabunda. Se a equipa ganhou confortavelmente a outra, a equipa arrasou. Se Fulano esteve melhor numa discussão do que Sicrano, Fulano arrasou. Se Fulano criticou outro ou alguma coisa, Fulano arrasou outro ou alguma coisa. Se uma pessoa publicou fotografias sensuais ou se escolheu uma boa indumentária, essa pessoa, claro está, arrasou.

Evento

Saberão os jornalistas que, antes do moderninho anglicismo «evento» (saco em que cabe tudo), não se sentia falta de vocábulos para descrever acontecimentos, iniciativas, certames, actividades, exposições, mostras, espectáculos? (Revisitem jornais «antigos».) Que a diversidade vocabular e a consequente precisão informativa eram outras?

A lógica é esta:

— Ó pá, não sei bem do que se trata…

— Se não sabes bem o que é, põe aí que é um evento.

Dá para jantares, encontros de antigos alunos, corridas, bailes, noites em discotecas, observação de aves, palestras, festivais da marmota, tertúlias, discussões, colóquios, simpósios, manifestações, acrobacias de golfinhos.

Quando não sabemos bem o que dizer, como definir, vamos ao saco das palavras e expressões que dão para tudo.

green ceramic statue of a man

Parafraseando Miguel Esteves Cardoso a propósito de outra expressão, quando dizemos «dentro do género», encerramos o assunto e o nosso interlocutor fica na mesma. O filme é bom? Dentro do género. Gostaste do professor? Dentro do género. Come-se bem lá? Dentro do género. Ele é giro? Dentro do género.

Pecado mortal das traduções: passar sempre event para evento. Sim, é só acrescentar uma letrinha.

Que dizer quando já temos os Grandes Eventos da Antiguidade e da Idade Média (colecção de DVD)? Que dizer quando lemos «eventos traumáticos», em lugar de «experiências traumáticas»? Etc., etc., etc.

Expectativas e seus parentes

«Anseio», «vontade», «desejo», «esperança», «previsão», «era o esperado»… alto lá! Tudo isso para quê? Hoje, bastam as «expectativas», que ainda têm os familiares «expectante», «expectável» e «expectar» a acompanhá-las diariamente.

«O que nós expectámos aconteceu. Era o expectável.»

three small figurines sitting in a row

O horror, o horror.

Repare ainda no seguinte: ora se usam as palavras «expectativas» e «expectável» com o sentido de aquilo que se desejava, ora com o sentido de aquilo que se previa. Amalgama-se tudo, é mais fácil. O que se transmite não vai ao encontro do que se pensa? Oh, purismos e preciosismos da treta.

Impacto

É oficial: já não há efeitos, consequências ou repercussões. Já não há choques ou embates. Só há impactos. Impactos que impactam. Impactos que são impactantes.

Experimente passar um dia sem ler e ouvir esta praga. Um dia? Uma hora.


Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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