No ar, qualquer falha pode ser a ‘morte do artista’, e aí pode-se confiar no rigor da Força Aérea. Já em terra, em frente ao computador e com papelada, a coisa parece já não ser bem assim. O Estado-Maior da Força Aérea (EMFA) somente este mês começou a colocar no Portal Base a informação dos 17 contratos relativos ao Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais de 2023. São meses de atraso em contratos de milhões que a EMFA diz dever-se a ‘falha técnica’, que não especifica nem é confirmada pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), que gere o Portal Base. Na verdade, a existir ‘falha técnica’, então é um problema crónico da Força Aérea: nos seus últimos 500 contratos divulgados no Portal Base, um total de 64 demoraram mais de um ano a ser publicamente conhecidos. Envolviam 69,2 milhões de euros. Estes atrasos têm estado a beneficiar de uma absoluta impunidade face à passividade do IMPIC e do próprio Tribunal de Contas.
Falha técnica – ou, melhor dizendo, para se ser rigoroso uma alegada “falha técnica”. É esta a justificação do Estado-Maior da Força Aérea (EMFA) para não cumprir os prazos de divulgação dos contratos para aquisição dos meios aéreos em 2023 no âmbito do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR). Os contratos foram sendo assinados em Maio e Junho do ano passado, mas somente agora em Janeiro de 2024 têm sido divulgados alguns destes ajustes directos. Mas ainda faltam mais.
Com efeito, de acordo com os registos do Portal Base, somente nas últimas duas semanas foram dados a conhecer quatro contratos com a Helibravo, um com a Gestifly e outro com a Babcock. Com a primeira empresa, os ajustes directos totalizam mais de 9 milhões de euros (sem IVA), enquanto o contrato da Gestifly atingiu os 3,8 milhões de euros e os da Babcocck cerca de 600 mil euros.
Assumindo que está “pendente da resolução de falhas técnicas encontradas nas plataformas ACINGOV e Portal Base aquando das tentativas de publicação”, fonte oficial do EMFA assumiu ao PÁGINA UM que foram assinados 17 contratos em 2023, faltando a “publicação de seis”, dos quais dois do consórcio Helibravo/Elitellina (no valor de um pouco mais de 10,8 milhões de euros) relativos a 10 aeronaves, outros dois da Gestifly (no valor de 9,1 milhões de euros) relativos a nove aeronaves, e outros dois da CCB (no valor de quase 18 milhões de euros).
Além do elevado montante destes seis contratos que o EMFA diz estarem em falta relativos ao DECIR de 2023 – um total de quase 28 milhões de euros -, na verdade ainda continuam ignotos mais. Com efeito, se o EMFA diz terem sido assinados 17 contratos e assume agora seis em falta, então faltarão conhecer outros cinco, uma vez que, numa pesquisa detalhada da totalidade dos contratos no Portal Base, por agora só lá estão seis. Portanto, os seis já colocados, mais os seis em falta assumidos pelo EMFA dá 12. Para 17 faltam, portanto, se a aritmética ainda é um ramo elementar da Matemática, cinco contratos.
No ano passado, em Junho, foi anunciado que se previa gastar 68 milhões de euros em meios aéreos de apoio ao combate aos incêndios, mas esse montante somente pode ser apurado após os contratos no Portal Base. Somando os contratos divulgados em Janeiro, e os seis que o EMFA refere estarem em falta, o montante vai em cerca de 51 milhões de euros. Mas ainda faltarão os tais cinco contratos para que haja mesmo 17.
O EMFA acrescenta que apenas recentemente se apercebeu de uma falha técnica, “que teve como consequência um atraso na publicação dos contratos mencionados”, mas não indica qual foi, em concreto, a falha, que diz ser extensiva não apenas ao Portal Base mas também à plataforma Acingov. O PÁGINA UM pediu esclarecimentos ao Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), entidade responsável pela gestão do Portal Base, mas não obteve ainda qualquer reacção.
Em todo o caso, estas falhas parecem ser crónicas numa instituição supostamente conhecida pela ‘disciplina militar’ de rigor. Numa análise do PÁGINA UM aos últimos 500 contratos publicados pelo EMFA – que apanham um período desde 27 de Fevereiro do ano passado e hoje – identificam-se quatro contratos em que se demorou mais de 1.000 dias a inserir-se a informação no Portal Base, um dos quais a aquisição de um boroscópio de medição no valor de quase 31 mil euros à Olympus, adquirido em Agosto de 2020 e que só deu entrado no Portal Base em Agosto de 2023.
Mas isto são só os casos extremos. Se se considerar os atrasos superiores a um ano, ou seja, 365 dias, encontram-se 64 contratos, e aí o montante sobe para os 69,2 milhões de euros. Com atraso superior a meio ano são já 212 contratos, envolvendo um montante total superior a 100 milhões de euros. Contudo, considerando que os prazos de divulgação genericamente previstos no Código dos Contratos Públicos são de 20 dias úteis, o EMFA estará num cumprimento inferior a 20% dos contratos.
Considerando os 15 contratos acima de um milhão de euros, de entre os 500 mais recentemente divulgados pelo EMFA, apenas em seis se cumpriram os prazos, sendo que nos restantes nove encontram-se três em que a demora foi superior a dois longos anos. Neste caso, destaca-se o contrato de fornecimento de combustíveis por cerca de três anos à Petrogal no valor de 57,3 milhões de euros. A celebração foi a 30 de Setembro de 2021, mas a informação só viu a luz no Portal Base no passado dia 16 de Janeiro. Portanto, uma demora de 838 dias.
Por sua vez, o contrato de fornecimento de electricidade com a Endesa assinado no antepenúltimo dia de 2021 acabou por somente ontem ser colocado no Portal Base. Teve um preço contratual próximo de 3,5 milhões de euros. Por fim, o contrato de limpeza com a Interlimpe, assinado em 1 de Junho de 2021 no valor de quase 1,2 milhões de euros foi apenas publicado no Portal Base no passado dia 18. Ou seja, um contrato que tinha um período de vigência de 730 dias, demorou 961 dias a ser inserido na plataforma. Portanto, serviu apenas para fazer História.
Perante este histórico, o ‘guião’ de divulgação dos contratos de meios aéreos para a próxima ‘época de fogos’. No ano passado terão sido contratadas 65 aeronaves, prevendo-se mais cinco para este ano, que o PÁGINA UM não conseguiu confirmar se incluem os quatro helicópteros comprados no âmbito do Programa de Recuperação e Resiliência.
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