ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Caminha: crónica dos lugares

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A cor não sobrevive ao tempo.

Não é que tudo tivesse aquele tom empastelado de areia compactada (naquele tempo). Não é que penas de tinta sépia esbatessem as nuvens, e a chuva estivesse sempre próxima, a enublar as vidas, enquanto carvão gasto, e espalhasse cinza pelos caminhos (daquele tempo).

É que os anos amarelecem as coisas, como o ar oxida a maçã mordida. Então, a cor, não sobrevive ao tempo. E no fundo, cá dentro, ficamos a cismar que as pessoas viviam assim, sem azuis, verdes, laranjas, rosas, vermelhos.

Quando toquei as cartas do território desde Vila Praia de Âncora até Caminha, passei logo as mãos pelo corpo da Serra d’Arga. Como quem acaricia. Quando fatiei aquela mancha, curva a curva, para empilhar cada camada como quem constrói um mundo (sobre o mundo, dentro do mundo), ganhei-lhe carinho.

Enamoro-me profundamente por tudo o que conheço. Até do feio. Sinto-lhe o suor, o esforço, o anseio, e não o respeitar é uma desonra. Minto: será desonra? Traição? Violência, talvez, pelo menos.

Por isso não sei se vos digo a verdade, mas em tudo, pelo caminho a Caminha, encontro beleza. Com carinho. Surgem casas, pendendo a cabeça ou os braços, de forma torta, desengonçada (têm as casas um rosto? Têm as casas mãos?). No fundo, se vivas e habitadas, até me aquecem a alma. Ali há gente, aquela casa é lar de alguém.

Passei curvas apertadas e cruzei aldeias. Por exemplo, Argas, onde um carneiro me olhou com ar inquisidor (avisando). Passei dias no Mosteiro, perdida entre ribeiros, um bosque implantado por força de vontade e escadarias transformadas em monte.

Passei noites num canto da Mata do Camarido, a ver se assim sabia o que era ser de Caminha, a raia, a irmandade silenciosa com Galiza, a Ínsua, Camposancos na saída do ferryboat.

Sabem, Camposancos foi muitas coisas. Um edifício, só que tanto foi colégio jesuíta, como armazém de cereais, como campo de concentração de Franco, ali, de olhos postos em Portugal. Casas que podem ser assim, cascas de vários espíritos. Manoel de Oliveira ainda estudou ali, há umas vidas atrás.

Venci a barra na mudança de maré a bordo de uma Gamela timonada por um senhor alcunhado de Garrafão. Fiz-me de forte, não sabia nadar, naquela altura, mas seria certamente imortal e, mais a mais, o Minho ali é nosso e brandura lusa não me ia encurtar a sentença.

Mas a cor não sobrevive ao tempo.

Talvez assim as memórias fiquem todas a preto e branco. E sépia (depende de lentes, papéis, químicos?).

De Caminha ficaram-me meses de ondulação nas vagas, matas auspiciosas, a energia de então, os pastéis de lá, o Mosteiro, a Arga de São João, a água, a neblina (a água, em névoa), Santa Tecla (a água, ainda), as pedras (com água), uma ruína a caminho de Vilar de Mouros, as azenhas (moendo água), os caminhos encharcados.

Sempre água.

A cada volta.

Mariana Santos Martins é arquitecta


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