A Velha Esquerda queria habitação e saúde para todos. A Nova Esquerda quer habitação e saúde para todes.
A Velha Esquerda considerava a Disney um instrumento do imperialismo que promovia os valores do capitalismo e das classes dominantes. A Nova Esquerda acha a Disney fofinha e inclusiva, vendo nela uma aliada (ou aliade) dos grupos discriminados (ou grupes discriminades).
A Velha Esquerda defendia as fábricas e quem nelas trabalhava. Para a Nova Esquerda, as fábricas são um grave problema quanto às alterações climáticas e constituem antros de repulsivos homens brancos heterossexuais cis que são racistas, misóginos, xenófobos, homofóbicos, transfóbicos, islamofóbicos e gordofóbicos.
A Velha Esquerda falava de operários e proletários. A Nova Esquerda fala em nome de conglomerados de minorias como se fossem monolíticas e como se lhe houvessem outorgado mandatos para as representar, excepto quando se trata da Palestina, porque nesse território não há mulheres nem homossexuais nem não-binários — há até os Queers for Palestine (não é piada), pelo que qualquer dia ainda veremos os Toureiros Veganos.
Antes do apedrejamento: o autor destas linhas foi sempre favorável ao casamento homossexual e até é vegetariano.
A Velha Esquerda queria que os trabalhadores tomassem conta dos meios de produção. A Nova Esquerda quer que haja diversidade de toda a espécie, mas apenas nos cargos mais remunerados, poderosos e mediáticos, porque os demais cargos estão cheios de «deploráveis», parafraseando a expressão («cesto de deploráveis») de Hillary Clinton.
A Velha Esquerda era soberanista, antiglobalização e anti-EUA. A Nova Esquerda é anti-EUA, mas importa, sem traduzir para as realidades de cada país, todas as lutas e todos os conceitos do país que alegadamente detesta. Acresce que a Nova Esquerda é globalista.
A Velha Esquerda lutava contra a existência de escravos no presente. A Nova Esquerda está mais preocupada com os escravos do passado, tendo até trocado o vocábulo «escravos» por «escravizados», e luta pela censura de palavras ofensivas em livros de autores mortos, por reparações históricas e pelo derrube de estátuas dos que pactuaram há séculos (na imaginação ou na realidade) com a escravatura, enquanto se aproveita dos escravizados dos TVDE para viagens de curta distância em que esses escravizados ganham cêntimos.
A Velha Esquerda falava de exploração. A Nova Esquerda fala de inclusão, empatia e discriminação.
A Velha Esquerda chegou a ser acusada de homofobia em 2015 (concretamente: de agressões verbais e físicas por pura homofobia) na sua maior festa anual. A Velha Esquerda afirmou ser a homossexualidade uma «coisa mesmo muito triste» (aspas de citação, ouça-se a entrevista de Carlos Cruz, de 1991, ao então secretário-geral Álvaro Cunhal). A Nova Esquerda, felizmente! (zero ironia), não fala assim (fala até em «orgulho gay» e em «género atribuído à nascença», algo bem diferente da orientação sexual, e que muitos insistem em confundir) nem agride ninguém LGBTQIA+ — excepto quando estão em causa Israel e a Palestina, como se viu no Finalmente, em que houve conflitos entre membros LGBTQIA+ e activistas pró-Palestina.
A Velha Esquerda via um homem de unhas pintadas e chamava-lhe depreciativamente «burguês» (entre outros impropérios hoje impronunciáveis num texto jornalístico), preferindo representar os homens de unhas sujas do trabalho. A Nova Esquerda não aprecia unhas sujas e, quando vê um homem de unhas pintadas, chama-lhe «minoria discriminada», «grupo oprimido». Algumas franjas da Nova Esquerda vêem até nisto o motor do progresso, como a Velha Esquerda via na luta de classes o progresso da humanidade.
Antes do linchamento: quem escreve estas linhas já foi, bastas vezes, com a cara e os lábios pintados a concertos dos The Cure, entre outros exemplos que poderia invocar (a vida privada não tem de ser transportada para os jornais), pelo que é inútil acusarem este escriba de perpetuar «papéis de género». Sim, os «papéis de género» podem ser castradores para muitos, designadamente para os homens, que foram mais limitados na sua socialização quanto à expressão de afectos e emoções (as mulheres são menos julgadas socialmente se se abraçarem, beijarem, chorarem na rua, se disserem que outra mulher é bonita, ainda que isto esteja a mudar), na indumentária, na maquilhagem, no que estupidamente se considera «roupa e coisas de mulher» (as mulheres usam calças e saias, pintam-se, e não são olhadas de lado por isso), no vasto rol de «profissões de mulher» (sim, também há quem entenda haver profissões de homem), etc., etc.
É precisamente sobre a desconstrução de «comportamentos e emoções de mulher», ironicamente anunciada no título, que os supracitados The Cure se ocupam na música com que terminam muitos concertos: Boys don´t cry, canção que pretendia desmanchar a abstrusa ideia de que os homens a sério não deveriam chorar nem ter uma série de pensamentos e comportamentos considerados femininos.
A Velha Esquerda queria agregar todos os que via como explorados. A Nova Esquerda quer segmentá-los e encontrar novas categorias identitárias até ao infinito, ou seja, até ao superlativo individualismo.
A Velha Esquerda falava de luta de classes, acidentes laborais e salários em atraso. A Nova Esquerda fala de escolher os espaços públicos em função do género com que cada um/e se identifica, de masculinidade tóxica, de descolonizar o pensamento (ela diz: «decolonizar», porque é colonizada pelo inglês, que suprema ironia) e da necessidade de novos pronomes para acomodar novos géneros.
De quando em quando, a Nova Esquerda, tal como a Velha Esquerda, gosta de usar métodos fascistas para combater aqueles a quem chama «fascistas», seja queimar cartazes ou livros. Haja alguma similitude em tanta diferença.
Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua
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