Jorge Nuno Sá, Presidente do Aliança

‘A extrema-direita e o Partido Socialista são quase um líquen; alimentam-se um do outro para sobreviver’

por Elisabete Tavares // Fevereiro 16, 2024


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Antigo presidente da ‘jota’ social-democrata, Jorge Nuno Sá desfiliou-se do PSD, no qual fora deputado, e seguiu as pisadas de Pedro Santana Lopes na fundação do Aliança em 2018, ‘herdando’ depois o partido quando o actual autarca da Figueira da Foz se cansou em não conseguir capitalizar em votos a sua popularidade mediática. Aos 46 anos, o líder do Aliança vai a votos, desta vez, coligado com o Movimento Partido da Terra (MPT), sob a denominação de Alternativa 21, e apresentando como ‘trunfo’ em Lisboa o antigo número 2 do Chega, Nuno Afonso, clamando, em simultâneo, por uma racionalização do debate político e por medidas de direita sem estarem baseadas em mitos. Esta é a quinta entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.



OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE JORGE NUNO SÁ, PRESIDENTE DO ALIANÇA, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES


É antigo líder da Juventude Social Democrata (JSD), também antigo deputado do PSD e é deputado municipal em Lisboa, pelo Partido Aliança, que integrou a coligação que deu a maioria [na lista de Carlos Moedas] à Câmara de Lisboa. Muito obrigada, Jorge, por ter aceitado este convite do PÁGINA UM.

Obrigado eu. Essa espécie de currículo, tendo em conta a opinião que as pessoas têm, é quase um cadastro [risos]. Com tanto cargo exercido… Mas também tenho, além disso, uma vida profissional que eu gosto sempre de dizer e de realçar, pois não vivo exclusivamente da política, o que é muito importante para mim.

Em todo o caso, os nossos ouvintes e leitores poderão consultar a sua biografia através de um link, para fazer ‘justiça’ e não haver o risco de pensarem que é aquilo que se chama o carreirista, ou ter os sucessivos “jobs for the boys” [risos].

[risos] Exactamente, agradeço.

Para ficar esclarecido, até porque, de facto, é importante, e estar a dar esta tónica mais na actividade política não é correcto. Sobretudo, como disse, pela percepção que existe…

Correcto é, porque tenho esta vida política e não a escondo. Mas eu gosto muito que as pessoas vejam isso, porque fico admirado quando às vezes… Não quero fulanizar, mas ultimamente, até há aí uma política que tem muito jeito e tal: nunca trabalhou na vida, nunca fez mais nada. Só vivem naquele circuito fechado. Eu contra mim falo – e desculpe já ter aqui começado a falar –, fui eleito deputado com 23 anos; era um miúdo. Não é que isso seja defeito. Nem acho que não deva haver deputados com essa idade. Mas, evidentemente que tinha uma visão da vida muito diferente da que tenho hoje aos 46 anos; e já tendo exercido outros cargos e trabalhado noutras funções e ter pagado ordenados, e ter empresas que correram bem e que correram mal, porque isso nos dá uma experiência de vida que é impossível ter aos 23 anos. O único defeito é quando se entra na bolha da política aos 19, 20, ou 23 anos, e não se sai dela; porque se vive num mundo artificial. E começa-se a falar das pessoas como um objecto, e que não se sabe muito bem qual é a vida deles. Quando eu era deputado, costumava dizer aos meus colegas – porque eu sou um bocadinho desbocado, para quem me conhece – que as alcatifas do Parlamento são muito grossas; e se as pessoas se habituam a andar só nelas, perdem o contacto com o chão e com a realidade. E muitas vezes, nos debates, fazem-se aquelas perguntas de algibeira: “sabe quanto é que custa o passe?”, ou “sabe quanto é que custa a refeição na cantina?”. E eles estudam só aqueles números para poderem responder à primeira. O problema é que não sabem a vida real das pessoas. E essa é que é a grande dificuldade. Isso acontece muito, e é generalizado, da esquerda à direita. Não vou dizer que isto é um problema da esquerda, da direita ou do centro, porque é generalizado; um problema da nossa classe política. Muitas vezes, desligada da realidade. E nós assistimos, às vezes, aos debates e parece que estão a falar de um mundo que não é aquele em que nós vivemos. Esse é que é o defeito.

Também há uma certa diabolização da política. Hoje, sente-se um grande divórcio entre a classe política e a população.

Sim. A vida política tem funcionado muito em circuito fechado. Contra mim falo. Às vezes, não se prioriza o contacto com as pessoas, ou só se prioriza quando é preciso ir buscar votos ou na campanha eleitoral. E, no intervalo, falha-se nisso. Eu, modestamente, tento combater um bocadinho isso. E quem tem lidado comigo – principalmente agora aqui na Assembleia Municipal e noutros cargos que desempenhei –, sabe que sou uma pessoa que vai ao terreno, que fala com as pessoas. Aliás, um dos princípios fundadores do Aliança era o princípio personalista, humanista, do contacto das pessoas. O nosso primeiro slogan era “das pessoas para as pessoas”. E tinha um bocadinho a ver com isto: com colocarmos a pessoa no centro da acção. Porque quando nós nos limitamos à macroeconomia… Eu não estou a dizer que não seja importante. Mas, e no caso concreto de Portugal neste momento, os índices macroeconómicos até são simpáticos. Nós temos uma redução da dívida pública abaixo dos 100%, que é uma coisa quase inédita. Temos temos tido superavits orçamentais, coisa que não existia, e a vida das pessoas está melhor. Esse é o problema; porque eu sei que nós temos de cumprir critérios internacionais, e quando nos pusemos de joelhos a pedir dinheiro para pagar contas, tivemos de nos sujeitar – em de 2011 a 2015, tivemos de pedir dinheiro emprestado para viver. E aí, temos de nos sujeitar às condições que nos impõem. Mas quando temos estas folgas, como temos neste momento, é preciso perceber se a vida das pessoas está melhor.

E de 2011, já vai um tempo.

Exacto. Mas há pessoas que gostam de ‘cristalizar’ em algumas épocas históricas para dizer que têm sempre razão. E os tempos mudam, e já mudaram muito; de 2011 até hoje, o mundo mudou. Aliás, nos últimos dois anos, o mundo mudou em muitas dimensões. Às vezes vemos debates na televisão, e falam na dívida pública e no PIB per capita… E em que é que isto se reflecte na vida das pessoas?

Até porque essas questões, como a dívida pública ou a questão do défice, também estão ligadas a outros factores que não têm propriamente a ver com a governação…

Claro. E não só com as opções políticas; têm a ver sobretudo com as próprias questões técnicas e tudo o que é a burocracia do Estado. Aliás, outra coisa muito interessante de se ver, é olhar para onde têm sido investidos os valores do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]. O PRR é dos maiores investimentos no país de sempre. É quase o segundo ouro do Brasil. Perto de 90% das verbas têm sido investidas na máquina do Estado. Portanto, continuamos a ter uma perspectiva de que o Estado comanda a vida. Isto tem chegado ao bolso das pessoas? Tenho dúvidas. Tem melhorado a qualidade dos serviços? Tenho dúvidas. Muitas vezes, perde-se na burocracia dos níveis intermédios de serviços e etc., e não chega àquilo que é o objectivo. Estamos a investir mais do que nunca na Saúde, como se tem dito muito, desde a pandemia. Há investimentos acima da média; e continua a haver filas de madrugada à porta dos centros de saúde e portugueses sem médico de família – eu sou um deles. Tudo isso se mantém. O problema não é só dinheiro. Eu lembro-me de, há muitos anos, quando o doutor Durão Barroso foi candidato a primeiro-ministro, fez-se uma Convenção no Coliseu. Eu era, na altura, da JSD [Juventude Social Democrata]. E na Convenção, o doutor Roquete, que tinha sido Presidente do Sporting, disse uma frase que é capaz de não ser original, mas foi a primeira vez que a ouvi e ficou-me gravada: “quando se deita dinheiro para cima dos problemas, há uma coisa que desaparece e não são os problemas”. Porque quando é um problema que não se resolve do ponto de vista estrutural, e só se atira dinheiro para o problema, o dinheiro desaparece e o problema não se resolve. E na Saúde, é isso que estamos a ver. Está-se a atirar dinheiro a rodos para o Serviço Nacional de Saúde. E se não houver reformas estruturais, e organização e reorganização de serviços, não adianta de nada; o dinheiro desaparece, os serviços continuam fracos, os profissionais desmotivados e as pessoas continuam sem terem os seus problemas resolvidos. Este é um paradigma de sociedade que temos de começar a pensar mudar. Não só do ponto de vista do investimento, mas muito e acima de tudo, do ponto de vista organizacional, e do ponto de vista “ao serviço de quê”. Porque os serviços públicos não podem estar ao serviço das estatísticas, mas sim ao serviço das pessoas. Se não estiverem, não servem para nada.

E daí, se calhar, também haver esse ‘divórcio’ da população, a sentir-se insatisfeita e a afastar-se da política. Aliás, vê-se sempre na elevadíssima abstenção.

Certo; porque, a certa altura, há a resignação, “para que hei-de votar, se isto não serve para nada?”

Olhando para soluções. O Aliança está, nestas eleições legislativas antecipadas, numa coligação com o movimento Partido da Terra [MPT], com o nome Alternativa 21, e a sigla “MPT.Aliança”. Estão a concorrer a quase todos os círculos eleitorais. Quer falar um bocadinho sobre isso?

Sim. Nós apresentámos candidaturas em todos os círculos eleitorais do país, também nas regiões autónomas e nas comunidades imigrantes. Tivemos um outro problema em alguns círculos eleitorais, alguns recursos que temos, porque coincidiu com a greve judicial e havia os problemas da entrega das listas. Mas tivemos candidatos em todo o país. Vamos ver como é que isto resulta, sendo certo que temos a noção de que, mesmo sendo uma coligação, a probabilidade de eleição em círculos pequenos é muito reduzida. Vamos apostar nos maiores círculos nacionais, como é evidente. Quando um partido concorre a eleições, o principal objectivo é a eleição, obviamente. “Viemos para participar”, ninguém acredita nessa história. Claro que queremos apresentar as nossas ideias, o programa, e manifesto eleitoral, mas o objectivo essencial é a eleição – não vamos escamotear. Houve aqui uma conjugação de sinergias de dois partidos, que estão presentes em muitas coligações autárquicas pelo país – é uma experiência que começou há dois anos –, entre os quais Lisboa, onde estamos inseridos na coligação Novos Tempos, que inclui também o PSD, o CDS e o PPM. Mas nós, na Aliança e MPT, acreditamos no projecto Novos Tempos. Achamos que esta AD agora criada é de outros tempos; mas isso é outra conversa, não quero estar a falar nisso. Mas achámos que devíamos criar sinergias de um centro-direita, [juntando] o Partido Aliança – um partido de cariz mais personalista e humanista – e o MPT – um partido que foi criado por Gonçalo Ribeiro Telles, muito no âmbito do ambientalismo, da Ecologia. E juntando estas vertentes num projecto de centro-direita, sem vergonha de o ser, que defende princípios de organização do Estado, de primado do humanismo e de Ambiente, que às vezes são associadas a outras áreas políticas, mas que nós defendemos sem qualquer receio; conjugando esforços e tentando a representação parlamentar, porque achamos que vale a pena. E falando agora num assunto que que devia ser discutido seriamente: há uma abstenção desmesurada. Mais de metade dos portugueses não vota, e é preciso perceber porquê.  Neste momento, há 20 e tal partidos inscritos no Tribunal Constitucional. Da extrema-esquerda à extrema-direita; há N soluções onde as pessoas se podem rever. Porque é que ainda não se reveem? Se calhar, por culpa nossa, das nossas mensagens não chegarem; ou por culpa da comunicação social, porque entrevista sempre os mesmos. E honra seja feita, estamos aqui com uma excepção. Mas vê-se na televisão o tempo de antena que é dado é completamente díspar, ao contrário de outras democracias consolidadas. Porque, em rigor, quando começa uma eleição, é como num campeonato de futebol: estamos todos com zero pontos. Só que isso não acontece, as oportunidades não são iguais.

(Foto: Américo Coelho)

Mas por algum motivo, também há um certo divórcio entre a população, os telespectadores, os leitores e os órgãos de comunicação social.

Certo. Mas deixe-me só dizer uma coisa. Se calhar, seria interessante, na reforma do sistema político, que se começasse a pensar qualquer coisa deste género… Na abstenção, não concordo que deva ter reflexo no resultado eleitoral; mas nos votos em branco, sim. Se uma pessoa vai à cabine de voto, e diz que nenhum dos partidos lhe serve, e vota em branco, é uma manifestação política – não é pura e simplesmente não votar porque não lhe apetece. Se os votos em branco começassem a ser cadeiras vazias no Parlamento, se calhar, começávamos a aprimorar algumas coisas. Se por 10% de votos em branco, ficarem 20 cadeiras vazias no Parlamento, talvez fosse uma possibilidade de começar a resolver. E poupava-se em ordenados e em subvenções públicas aos partidos. Era uma questão de pensar nisso. Dificilmente os partidos com assento parlamentar aprovarão uma coisa deste género, mas era uma proposta para começarmos a desbravar alguns caminhos. Quando se fala de abstenção, e uma parte é de quem não quer saber… Mas outra coisa também importante é, às vezes, as dificuldades no acesso ao próprio voto. Nós vivemos no século XXI; o nome da nossa coligação Alternativa 21 é precisamente por isso. Mas nós ainda votamos como se votava no século XIX: temos de ir à Junta de Freguesia, fazer aquele todo aquele ritual. Não faz sentido nenhum. Mesmo o próprio processo eleitoral: a entrega de listas em papel, não sei quantos duplicados serem pendurados na porta dos tribunais, quando temos tecnologia, e-mails, Internet, divulgação pública; até para maior escrutínio, maior facilidade, e maior compreensão das pessoas e dos eleitores. E isto não existe porquê? Porque é que se cria barreiras? Aliás, normalmente as abstenções até estão mais nas classes mais jovens. Depois, daqueles que votam, as opiniões podem divergir. E actualmente, há uma tendência mais para a direita, enquanto que há 10 ou 15 anos, era mais para esquerda. Mas muitos dos que não votam, maioritariamente é porque sentem que estão distantes, que estão inacessíveis. Porque é que não se quebram estas barreiras? Continuamos a funcionar como funcionavam as eleições da Primeira República, e já se passaram 100 anos. Porque é que tem de continuar a ser assim? Se eu estiver a passar o fim-de-semana no Algarve, porque é que tenho de fazer 600 quilómetros para votar em Vila Real ou em Bragança? Agora, já há o voto antecipado, que tem alguma procura. A forma de voto antecipado na semana anterior poder ser onde queremos, e que levou a muitos inscritos, devia ter feito soar campainhas, do género: “epá, fizemos uma coisa diferente e as pessoas aderiram”. Será que é por não haver estes métodos que as pessoas não votam tanto? Mas depois, não há nenhuma reflexão… Porque é que o voto antecipado foi um sucesso? Porque facilita. Eu sou licenciado em Viana do Castelo porque é a terra onde nasci e onde vivi grande parte da minha vida. Se eu estiver em Lisboa e fizer voto antecipado, voto em Lisboa; mas se for ao dia, tenho de fazer 400 km para votar. E isto acontece aos estudantes deslocados, aos profissionais deslocados. Porque é que não se facilita o acesso ao  voto electrónico? Eu não digo que se desvalorize o voto ao ponto de ser uma coisa absolutamente banal.

Não está a dizer que é para criar uma aplicação no telemóvel, como se fosse um jogo?

Sim, tipo o voto da “Máscara” da SIC ou coisas desse género… Não, não vamos por aí. Mas por exemplo, como as Pole Station, na Inglaterra, onde uma pessoa pode estar em qualquer ponto do país, dirige-se a um boletim de um ponto e vota lá. E o seu voto é encaminhado para o seu círculo. Porque é que as coisas não podem ser assim? A democracia parece… Nós estamos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril, e isto não deixa de ser curioso, porque notamos que há um imenso divórcio das pessoas com a participação democrática. Isto não preocupa ninguém? Aliás, qual a melhor forma de comemorar os 50 anos de democracia e de liberdade do que com três parlamentos dissolvidos, dois regionais e o nacional?

É simbólico?

Quando é baseado em casos de corrupção, de eventuais desvios de dinheiro… É este o estado da arte: os 50 anos da democracia são brindados com três eleições antecipadas nos três parlamentos. Ninguém acha isto estranho? Continuamos a seguir assim, deixamos o discurso dos problemas para quem berra, para os populismos fáceis?

Jorge Nuno Sá, como líder do Aliança, durante o debate dos ‘pequenos partidos’ na RTP para as eleições legislativas de 2022.

Ou para debates de 20 minutos…

Sim, debates de 20 minutos, onde se debate muito a espuma dos dias. Tivemos eleições há dois anos, com uma maioria absoluta que não se previa durante a campanha. E passados dois anos, estamos novamente em eleições. Quem for rigoroso e sério na análise – apesar de haver, como dissemos há pouco, níveis macroeconómicos que estão aparentemente melhores –, quando falamos dos problemas concretos das pessoas, as classes profissionais mais sacrificadas, como enfermeiros, polícias, professores… As questões nacionais para a Agricultura, as questões relacionadas com a Habitação, a inflação, eram as mesmas de há dois anos, numa escala pior. Pouco mudou. No entanto, houve uma maioria absoluta. O segundo maior partido, líder da oposição, continua a ser o mesmo, com grande votação. Aumentou-se os que berram muito no Parlamento, mas que pouco resolvem, e as coisas no país ficaram na mesma. Portanto, mesmo para o eleitor comum, devia pensar: “mas valerá a pena continuar a votar neste sistema ou nos mesmos”? A reflexão deve ser profunda, porque os problemas são os mesmos. Há dois anos, tive a oportunidade de participar num debate na RTP, com os partidos sem assento parlamentar, e fui o único que falei disto. Porque irrita-me um bocadinho perder tempo na vida. Gosto de fazer coisas, e irrita-me muito perder tempo. E mais de metade do tempo dos debates de 20 minutos entre os líderes de partidos era o “quem quer casar com a carochinha?”, “quem vai fazer coligação com quem?”. Quer dizer, passava-se metade dos debates nisto. Estamos quase a chegar ao mesmo ponto, sobretudo depois das eleições dos Açores. E, na altura, eu dizia que ninguém fala de duas coisas. Por exemplo, da crise inflacionista. Os bens de consumo – o arroz, o açúcar, o óleo, a farinha – estavam com aumentos de 25% a 30% há dois anos. Hoje, há aumentos de 100%, ou seja, os preços destes produtos duplicaram. Eu falo disto porque, tal como muitos outros, vou ao supermercado fazer compras; e já se sabia há dois anos, e não era por causa da guerra da Ucrânia, que ainda não tinha começado. Era mesmo por causa da sequência, evidentemente, das crises internacionais, da crise da covid-19, etc. As guerras na Ucrânia e em Israel agora só vêm agravar e acentuar o problema, mas isto já existia. E como é que se permite que os partidos que são responsáveis por elaborações de orçamentos no Parlamento, passem mais de metade do tempo a discutir com quem se vão casar ou de quem se vão divorciar, do que discutir estes problemas concretos? Na altura, eu lembro-me bem, quando ia a caminho desse debate, que havia por Lisboa espalhadas uma série de vacas em cartão, onde falavam dos preços… Em Dezembro de 2020, fiz um tempo de antena do Partido Aliança, onde falava precisamente do aumento dos custos de produção dos agricultores, e que não era esse o reflexo do aumento dos preços de consumo; antes pelo contrário. Continuavam a ser preços baixos pagos aos agricultores, enquanto continuava os aumentos do preço ao consumidor. Portanto, havia qualquer coisa que estava mal. Mas ninguém ligou nenhuma. Tivemos a ministra da Agricultura, se calhar, mais incompetente do último século. As coisas continuaram assim, e temos os agricultores nas ruas, e com razão. Só que não é nada que não se soubesse, não é nada de hoje! Eu não sou propriamente um ‘expert’ em agricultura, mas era uma coisa evidente: o aumento dos combustíveis, o aumento dos adubos, com a guerra da Ucrânia, o aumento dos preços da água, a manutenção do preço de compra ao agricultor por parte das cadeias distribuição… Alguma coisa tinha de rebentar um dia.

Em termos de propostas, o que é a Alternativa 21? No âmbito das próximas eleições. que propostas têm para algumas dessas questões, nomeadamente os baixos rendimentos das famílias, os problemas do custo de vida, a crise na Habitação e na Saúde?

Por uma questão de respeito institucional, não queria adiantar muitas medidas. Não é que não as tenhamos, mas à hora e dia que estamos a gravar – não sei se posso dizer, mas estamos a gravar na sexta-feira de manhã [dia 9 de Fevereiro] –, e temos hoje à tarde a reunião para aprovação do programa eleitoral. Sendo que estão envolvidos dois partidos e personalidades independentes, seria muito deselegante da minha parte estar a avançar algo. Se quiser falar comigo para a semana, terei todo o gosto em voltar a falar sobre isto.

Falemos no caso do Aliança. Que propostas gostaria de apresentar aos portugueses?

Sim, sobre isso posso falar com mais propriedade, porque estou mais à vontade sobre isso.

Que soluções e medidas podem ser tomadas?

Evidentemente; coisas muito simples. Há [por aí] um ‘leilão das pensões’, que se tem falado em coisas completamente irreais, de dizer que têm de ser de 1.000 euros. Aliás, como a questão do salário mínimo. Há uma coisa muito importante que eu aprendi há muitos anos, que é básica e que toda a gente percebe: só se pode redistribuir o que se ganha. Se não se conseguir colher na Economia, em impostos, que é daí que vem o dinheiro… O “dinheiro público” não existe. Margaret Thatcher dizia isto há 40 anos e parece que muita gente ainda não percebeu. Aquilo que existe é dinheiro dos contribuintes e dos impostos. E, portanto, o que nós temos de saber é como se aplica esse dinheiro, e onde se vai buscar. Para existir redistribuição, tem de haver riqueza. A doutora Manuela Ferreira Leite dizia, com graça, quando era ministra das Finanças: “eu não me importo nada que haja ricos que comprem iates; quando eles forem comprar iates, eu tenho é de os taxar para ir lá buscar as taxas suficientes para poder reintroduzir no sistema de Saúde, da Segurança Social, etc.”

Mas sabemos que quem tem mais meios financeiros, aquilo que acaba por fazer é colocar a sua riqueza noutras regiões onde sai favorecido em termos fiscais.

Mas tem a ver muito com isso… Também não adianta, e isto existe particularmente à esquerda, a ideia de que se pode estar sempre a aumentar impostos. E chega-se a um momento, está estudado – eu não sou propriamente fiscalista nem economista, nem especialista na área, mas sei que do que conheço e do que vejo – que se chama “exaustão fiscal”. Ou seja, a partir de certa altura pode-se aumentar o que quiser, que não se faz mais receita. Porquê? Porque quem tem meios foge com o dinheiro para outras paragens, e estar sempre a sobrecarregar a classe média não resolve problema nenhum, porque se está a criar dificuldades. Mas, evidentemente, os aumentos de rendimentos, de reformas e apoios sociais, custam dinheiro. Não temos de escamotear isto. Assim como também custa dinheiro, por exemplo, meter 3 mil milhões de euros na TAP. O que estamos aqui a falar é de prioridades.

Ou seja, de gerir bem o dinheiro dos contribuintes?

Sim, e de saber quais são as prioridades de investimento. E aqui coloca-se muito a questão: qual é o papel do Estado? E aí há uma divergência substantiva entre esquerda e direita. Quando a esquerda entende que o Estado deve ter um papel de actor económico, à direita entende-se que não, que o Estado pode ter um papel fiscalizador e regulador, mas não de actor económico. E eu sou de direita, sem qualquer ‘trauma’ nem dificuldade em assumi-lo. Sempre fui, aliás.

Portanto, pensa que foi mal aplicado o dinheiro da TAP? Aliás, já tornou público que acredita que o dinheiro poderia ter sido aplicado noutras circunstâncias.

Sim; durante a campanha, há dois anos, falava-se só de 400 milhões na TAP. Esta verba podia ser aplicada, por exemplo, a aumentar as pensões mínimas para um índice igual ao IAS.

Mas esse dinheiro da TAP já desapareceu…

Certo. E ao contrário da fantasia de que o vamos recuperar, o melhor é esquecer, acreditar que a TAP continuará a ser uma grande companhia, e desejar-lhe bom futuro. Não sendo eu propriamente um cliente da TAP, mas acreditando que é a companhia pode ter um papel… Vamos cá ver uma abordagem sobre a TAP, enquanto papel estratégico para Portugal. É um bocadinho o que se passa com a comunicação social, com  a RTP: interessa-nos ter uma companhia pública, ou um serviço público? É que as questões são diferentes: porque se nos interessa, na TAP, ter a ligação aos países de língua oficial portuguesa, e às nossas comunidades imigrantes, nomeadamente Venezuela, Canadá, parte dos Estados Unidos, Extremo Oriente, nós precisamos de ter uma companhia pública ou de ter um serviço público que o faça? Isto faz muita diferença. Uma questão é estarmos a atirar dinheiro para uma companhia pública que teve buracos sucessivos por má gestão. E não estou aqui a falar dos profissionais da TAP; temos grande tradição na manutenção e engenharia da TAP, grandes pilotos, etc. Não é isso que está em causa. Mas é o serviço que a companhia presta. Sobre a ligação às regiões autónomas, que hoje é muito falada: não é mais barato viajar na TAP. Muitos dos nossos concidadãos dos Açores e da Madeira não optam pela TAP para viajar. E o que interessa ao Estado: que o serviço exista ou que seja feito por uma companhia pública? É como a RTP. O que interessa é haver serviço público de informação ou haver uma empresa pública que o faça? Tem muito a ver com definirmos aquilo que queremos, porque eu não acho mal haver financiamento público para as ligações aos PALOP, às comunidades emigrantes portuguesas e às regiões autónomas, porque, de facto, temos de assegurar que estas ligações existem. Mas já me faz um bocadinho mais de confusão que tenha de ser uma empresa pública a fazê-lo.

Jorge Nuno Sá, o primeiro à direita, integrou a coligação Novos Tempos nas eleições autárquicas de Lisboa em 2021, sendo eleito deputado municipal.

Portanto, o que diz é que esta visão tem estado a retirar muito dinheiro ao país que poderia ser aplicado noutras coisas. Porque além da TAP, podemos falar de muitas outras empresas na esfera pública e muitos outros projectos.

Sim. Eu lembro-me quando houve a primeira intervenção de grandes privatizações de empresas diversas. Nós vivemos de crise em crise, mas falo da crise de 2001, em que o engenheiro Guterres saiu devido ao “pântano”. Havia dificuldades orçamentais, défice orçamental excessivo, e até uma salsicharia o Estado tinha, algures na região de Santarém, se a minha memória não me atraiçoa. Mas lembro-me que até uma salsicharia tínhamos! Que sentido é que faz? Isto não é Cuba, em que até os cafés são do Estado.

Já que está a tocar nesse ponto, e antes de avançarmos para outras medidas concretas, penso ser bom esclarecer isto: sente-se muito, sobretudo na comunicação social, uma certa diabolização da direita e um olhar para a ideologia liberal como sendo algo mau. E eu vejo muito isso em debates, e em artigos na imprensa. Faz algum sentido, nos dias de hoje?

Não faz, e até há um erro de percepção. A direita, nem toda é ultraliberal. Vamos lá ver se nos entendemos: a nossa raiz é conservadora. E isto pode parecer contraditório, mas estudar Ciência Política às vezes dá jeito. A raiz do liberalismo e do conservadorismo vem dos ingleses, de conservadores liberais. Eram conservadores nos valores, no Estado, e eram liberais na Economia. E depois houve algumas divergências de caminho. Mesmo em Portugal, a Iniciativa Liberal tenta ser um partido liberal puro, mas muitas vezes tem dificuldade em definir se é de direita ou de esquerda. É difícil para um partido de direita dizer que defende a eutanásia, por exemplo. Nem sempre a leitura pode ser tão simplista como pôr liberais à direita. Mas aquilo que, de facto, se mostra uma marca distintiva da direita é a intervenção do Estado na Economia, que deve ser mínima. Deve ser regulador, fiscalizador, e não actor; esta é a diferença principal.

Portanto, a gestão dos bens públicos deve ser feita numa abordagem mais racional.

Certo. E a gestão da TAP foi muito sintomática nos últimos anos. A Comissão de Inquérito e os WhatsApps da vida, e as indemnizações… Notou-se que havia um dirigismo do ministro de então, hoje candidato a primeiro-ministro, Pedro Nuno Santos, em que ele próprio quase dirigia a empresa como se fosse, não um CEO formal, mas, se calhar, uma espécie de chairman, que dava orientações para a empresa. E isto é completamente errado!

Mas aí tem a ver com aquilo que falava há pouco: a diferença entre pensar-se que o dinheiro é público, e quem está no poder controla as empresas como se fossem suas; ou se é o dinheiro dos contribuintes.

É exactamente a mesma base ideológica. E eu percebo que à esquerda se pense assim; que as empresas públicas têm de ser dirigidas pelos governos – como se viu em Portugal nos últimos 50 anos, com péssimos resultados, e com défices acumulados, com uma injecção de dinheiros públicos. Dinheiros públicos, que, tal como disse, saem do bolso dos contribuintes. Não sei se todos atentaram a isto, mas, num comentário bastante boçal, um dos agora acusados desta operação da Madeira, numa inauguração, uma jornalista pergunta-lhe, não sei se de uma forma ingénua ou propositada: “mas quem é que vai pagar isto?” E o senhor aponta para ela e diz: “é você”. E isto é sintomático daquilo que se pensa da gestão do dinheiro público; porque, de facto, é cada um dos contribuintes que o paga. E esta desresponsabilização da administração do dinheiro público é, para mim, assustadora. Eu não tenho nada contra a TAP…

Há medidas que  se podiam fazer, nomeadamente este aumento das reformas mínimas para um nível mínimo – o IAS, que é o indexante de apoios sociais e ronda os 500 euros para as pessoas –, que é considerado pelo Estado como bitola de cálculo para atribuição de apoios sociais. Não devia haver nenhuma pensão mínima abaixo disto. E não falo do salário mínimo, porque é um crescimento que os dinheiros públicos não aguentam.

Mas sem aumentar impostos, como se faz essa ‘ginástica’?

Esta é possível. Já propusemos, em tempos, aumentar em 50% o subsídio de alimentação dos funcionários públicos. Estas duas medidas somadas rondarão os 400 milhões de euros, que é menos de metade da primeira injecção de capital feita na TAP. Portanto, não me digam que este dinheiro não existe; é uma questão de gestão do dinheiro.

Ou seja, se quisermos, ele aparece. Nos Estados Unidos há o mesmo problema, porque também se criam milhares de milhões para determinados fins, mas para outros…

O dinheiro não se produz; não se imprime notas conforme precisamos. Mas é uma questão de saber onde podemos cortar, e onde podemos investir. Essa nossa proposta de aumento de 50% do subsídio de refeição dos funcionários públicos não é um aumento salarial. Mas além de ser um aumento que se sentiria mais directamente no bolso das pessoas, é também um dinheiro que se sente imediatamente na Economia. Porque estamos a falar de as pessoas usarem-no para consumo porque precisam, e também injectam directamente na Economia. E estas contas devem ser feitas. Eu tive o privilégio de estar na comissão municipal que acompanhou a Jornada Mundial da Juventude e falou-se muito de dinheiros públicos – muito, e mal.

Até houve um artista, Bordalo II, que fez aquela intervenção bastante polémica.

Sim, aquele artista que recebe pipas de dinheiro em ajustes directos nas suas obras pagas por entidades públicas; e, para os seus ajustes directos, ele não tem problema nenhum, só para os dos outros… Portanto, estamos a falar de coerência. Mas voltando à questão da Jornada. Antes, falou-se muito da Jornada, mas depois de serem apresentadas contas, tem-se falado muito pouco. De facto, foi investido dinheiro, mas o retorno económico e financeiro da Jornada é enorme. E parece que há vergonha de dizer isto. Eu não tenho nenhum problema: fui um grande defensor da organização da Jornada, porque eventos deste género trazem mais-valias tangíveis e intangíveis. As intangíveis têm a ver com o crédito do país. E já podemos voltar a isso. E as intangíveis têm a ver com o dinheiro que reverte directamente da iniciativa. Eu fartei-me de fazer contas nesta área. Houve uma série de inscritos internacionais e nacionais que vieram a Lisboa para a Jornada que pagaram à organização um valor, e desse direito a dormida, alimentação, etc. A alimentação foi fornecida por restaurantes locais, cadeias de supermercados, etc. Teve de se recrutar, inclusivamente, porque a oferta de Lisboa não chegava; estamos a falar de ter triplicado a população de Lisboa durante aquela semana. Só o valor do IVA das refeições pré-pagas é superior ao investimento, por exemplo, no famoso palco; que não tem a ver com o palco, mas com toda a infraestrutura que existia em Beirolas, do aterro que existia, que foi todo reformulado, e que hoje é um parque urbano ao serviço das pessoas na cidade. Mas só o IVA das refeições pré-pagas, paga isso. Sem falar de todo o resto da dimensão de gastos. Fale-se com os comerciantes. Claro que não foi nessa semana que as marcas de luxo da Avenida da Liberdade ganharam dinheiro, porque teve até a Avenida fechada, muita confusão na rua e esses clientes de gama altíssima desapareceram da cidade. Mas os pequenos comerciantes venderam tudo o que tinham e o que não tinham, desde água a bebidas e comida. Houve uma movimentação económica, aliás, como tem sido vista em todos os relatórios, muito superior ao investimento. E isso é um bom investimento público.

Mas não houve também alguns ataques que poderiam ter a ver com questões de ideologia, e o facto de ser a religião católica?

Sim, claro que teve a ver com o radicalismo jacobino, anticlerical e anti-Igreja Católica. Eu sou cristão apostólico romano. Mas acima de tudo, sou um grande defensor da liberdade religiosa. Se amanhã me disserem que as igrejas evangélicas querem fazer um grande evento em Portugal, eu acho que pode ser apoiado, na medida em que o Estado deve apoiar as religiões, desde que traga uma contrapartida. E a Jornada foi um grande negócio público. Aliás, que eu me recorde, e não sou assim tão velho, mas das últimas quatro décadas, foi a primeira vez que houve um grande evento que deu lucro. Nós já investimos milhões em estádios de futebol para estarem às moscas. Investimos em muitos equipamentos para vários eventos que dão prejuízo… Este foi tão criticado e foi um evento altamente lucrativo, e sem contar, depois, com aquilo que é intangível. Não sei se acompanha esta área, mas eu gosto muito de exposições e vou muito, até por questões profissionais. A Alimentaria, que era uma feira bi-anual para a área profissional do ramo alimentar, mudou de nome há dois anos ou três. E eu achei estranho; numa visita institucional que fiz à FIL, passou a ser “Lisbon Food Affair”. E a Alimentaria era de dois em dois anos para não conflituar com outra que existia, também bi-anual, em Barcelona. Portanto, eram complementares. Quando alteraram o nome para Lisbon Food Affair, começaram a ser concorrenciais com Barcelona; um passo arrojado, a fazer concorrência e a atrair os melhores. E eu perguntei aos responsáveis: “não acham arriscado ao fim de tantos anos, mudar a marca, deixar de ser Alimentaria e passar a ser Lisbon Food Affairs?”. E disseram que não, que foi o melhor investimento que fizeram, porque tinham de pôr o nome de “Lisboa” na Feira. Porque Lisboa e Portugal neste momento são marcas por causa da Web Summit. E a Web Summit foi trazida por governos que nunca foram apoiados por mim. Mas por causa da Jornada Mundial da Juventude e por uma série de eventos, Lisboa atrai investimento e capital. Este património e benefício intangível não é directo dos eventos, mas é um proveito para o país, e nós temos ganhado muito à conta disto. Claro, com alguns problemas, que depois temos de resolver. Mas não nos podemos esquecer, nem podemos ‘matar’ as nossas galinhas dos ovos de ouro, que depois se podem repercutir precisamente naquilo que falávamos: em apoios aos mais carenciados, aos mais desprotegidos, aos nossos profissionais. Nós temos classes, aliás, altamente desprestigiadas, precisamente por serem maltratadas pelo Estado – falo concretamente de professores, polícias, forças de segurança no geral – que têm estado nas ruas com toda a razão; como já estavam há dois anos, pelos mesmos motivos.

Foto de 2019, Jorge Nuno Sá com Pedro Santana Lopes, fundador do Aliança.

E se é verdade que Lisboa mudou, também houve uma questão que tem afectado bastante os lisboetas e os portugueses, em geral: o custo da Habitação, que está completamente incomportável. Que soluções o Aliança vê para esta questão?

Aqui, queria começar por dar um exemplo pessoal, mas o meu exemplo pessoal é verdadeiro, não é como a doutora Mariana Mortágua que falou de uma avó que parece não existir [risos]. E eu próprio fui vítima disso: tinha casa em Lisboa, o meu senhorio faleceu e os herdeiros opuseram-se à renovação e puseram as pessoas mais antigas na rua – eu já vivia lá há 12 anos – para poderem duplicar preço das rendas sem fazer qualquer investimento. Criou-se, na Habitação, aquilo que pode ter sido a tempestade mais perfeita nas crises, porque se juntaram várias dinâmicas ao mesmo tempo. Primeiro, a chamada “Lei Cristas”, sobre a qual eu tenho algumas reservas, mas não me oponho, globalmente, ao seu significado. Não fazia sentido termos rendas congeladas há 40 e 50 anos por um motivo simples: temos sempre a ideia de pensar nos senhorios como especuladores, gente com muito capital… Em alguns casos, é verdade; não são todos santos. Mas, como em todas as classes, não se pode estigmatizar e dizer que são todos uns vigaristas. Ver manifestações a dizer “morte aos senhorios” é inqualificável. Aliás, podemos falar também da radicalização e das fracturas sociais a que o discurso político tem levado nos últimos anos, que é uma coisa que eu não tolero em momento algum. Admitir-se a frase “morte aos senhorios” é entrarmos numa escalada irreversível. Houve muita gente – e nós sabemos disto – que, nos anos 1960-70, o aforro que faziam não era a poupança nos bancos, como hoje se usa, mas era comprar propriedade para depois terem ali a sua reforma. Muita gente que veio do interior do país para Lisboa trabalhar, em cafés e restaurantes, investiu em imobiliário para depois pôr a render para as suas reformas. E isto não pode ser esquecido, porque é uma vertente importante, e não compete a essa gente fazer caridade social. Isso compete ao Estado. E esta primeira parte da questão das rendas tinha de ser resolvida. O problema é que coincidiu com uma tempestade perfeita: um ‘boom’ de turismo, a questão dos vistos Gold nas áreas urbanas e uma diminuição na construção. Portanto, estes factores, todos conjugados, levam a um brutal aumento de preços, sem ter sido acompanhado de medidas que o prevenissem.

Para além de problemas estruturais, como por exemplo, os baixos salários, até para os jovens e as famílias, que não têm meios até para comprar uma casa…

Certo. Não houve capacidade – e aqui estamos a falar principalmente a nível municipal – de criar mecanismos que permitissem contrariar algumas destas tendências.

Neste caso, e concretizando, o Aliança também pensa que pode passar pelas autarquias a resolução do problema?

O Plano Especial de Erradicação de Barracas [PER], do Governo do Professor Cavaco Silva, faz agora 30 anos. Não sendo eu um cavaquista, acho que o PER é, talvez, a par de muitas outras iniciativas, a maior marca de política social do Professor Cavaco Silva.

E para quem não sabe, Lisboa tinha muitos bairros de casas muito degradadas.

Sim, as pessoas viviam as pessoas em condições degradadíssimas e houve um salto qualitativo brutal nos anos de 1990, de um Governo que teve coragem, e das câmaras que o acompanharam. A Câmara de Lisboa era liderada pelo doutor Jorge Sampaio, na altura secretário-geral do Partido Socialista. Algumas outras câmaras da região de Lisboa eram socialistas, do PSD… O PCP teve mais relutância, principalmente na Margem Sul, em aderir ao PER, e por isso fenómenos como o bairro da Jamaica se prolongaram até agora. Com muita culpa de quem gosta de viver da miséria e o Partido Comunista nisso tem algumas culpas no cartório. Mas é preciso um novo plano, corajoso. E não é com medidas que nós vemos serem anunciados com pompa e circunstância que depois resultam em pouquíssimos casos. As primeiras medidas da habitação do plano de rendas apoiadas, quando se ia fazer as contas por cada concelho, dava meia dúzia de casas por concelho. Estas medidas, além de não terem efeito, depois diluem-se de tal forma que não tem qualquer significado. Dou um exemplo concreto de Lisboa: Lisboa está a fazer, e o presidente Carlos Moedas bem, ao libertarem uma série de casas que estavam desocupadas, para poderem ser ocupadas de imediato. São quase um milhar de casas que estavam em condições degradantes, e estão a ser reabilitadas e repostas no mercado; e está a fazer o maior investimento de sempre em imobiliário. Isto faz sentido. Lá está: não sendo eu um defensor do Estado enquanto actor, o Estado tem de intervir no mercado quando há falhas; e neste momento tem. Não só criando condições de habitação pública, como tirando algumas barreiras à construção privada para que ela possa existir. E não estamos a falar de rebentar com tudo que é espaços verdes para construir prédios. Há muitas coisas que podem ser feitas, preservando uma qualidade de vida. E aí, em homenagem ao nosso parceiro de coligação MPT: visionários como Gonçalo Ribeiro Telles, que explicaram isto há muito tempo, da manutenção dos corredores verdes e das linhas de água, etc. Mas corrigindo erros, por exemplo, como construções em cave, que são inadmissíveis, mas criando condições para urbanização. Dou um exemplo concreto: terrenos vendidos pelo Estado para urbanização. Um exemplo paradigmático são os terrenos em Alcântara, que estiveram ali debaixo da ponte, durante anos esventrados a céu aberto e agora foram construídos prédios de serviços, essencialmente. O Estado vendeu aqueles terrenos para serem urbanizados, e demorou mais de 20 anos a licenciar as urbanizações – isto não pode acontecer. Este ‘monstro’ burocrático. Ainda por cima há quase uma questão de má fé, de ser o próprio Estado a vender para urbanizar, e depois não autorizar os licenciamentos. Como é possível um investidor privado gastar uma fortuna a comprar um terreno para urbanizar, e depois ter de esperar 20 ou 30 anos para poder concretizar o projecto? Ninguém aguenta isto.

Há também a pressão turística e das casas que são utilizadas para alojamento local…

Certo; se bem que aí há alguns mitos urbanos. E a forma como tem sido gerida esta ideia, de um dia para outro, proibir tudo, que leva a uma corrida às licenças, e que é pernicioso… Não nos podemos esquecer que o alojamento local e o turismo permitiram a reabilitação das nossas cidades em grande medida, e nós não podemos ser ingratos. O Estado tem de ser uma pessoa de bem e não pode usar os actores económicos à sua mercê, como bem apetece. Tem de saber controlar a amplitude das suas acções, e parece-me haver alguma leviandade em algumas decisões, e depois há um retrocesso quase histérico de dizer: “isto é que é o mal do mundo”, e não é. O mal foi não se saber programar as coisas. Na Habitação, tem de haver pacotes de medidas que fomentem a habitação pública, por um lado. E a possibilidade da construção da habitação privada; dar condições aos jovens, nomeadamente com a redução da carga fiscal, e aceleração de processos de licenciamento. Actualmente, o acesso ao crédito está muito dificultado, e não é só por uma questão da possibilidade do pagamento. É por uma questão, também, do próprio mercado financeiro ter evoluído de uma forma que não é possível a um jovem aderir ao crédito. Quando se exige 20% ou 30% de uma entrada inicial, se não forem os pais a pagar, qual é o jovem de 20 ou 25 anos que conseguiu aforrar para ter 20% ou 30% do valor de uma casa para poder investir de um momento para o outro? Isto não existe. O Estado podia aqui até ser garantia para alguns destes casos. Não tinha mal nenhum.

Jorge Nuno Sá, em 2019, no primeiro congresso do Aliança.

Até porque o mercado de trabalho também está diferente. Os contratos de trabalho são diferentes.

Claro. Como é evidente, vivemos num mundo cada vez mais flexível e não podemos criar regras que se tornem inflexíveis. Isto não é deitar dinheiro ao desbarato. Por exemplo, mais importante do que dar garantias à banca para poder continuar a fazer investimentos loucos e depois ir à bancarrota, se calhar era mais rentável o Estado dar garantias aos jovens que depois um dia vão pagar aquelas casas, e o que pagam em impostos e em outras matérias, revertem logo para o Estado. É sempre uma questão de prioridades e de investimento. E, neste momento, a Habitação é um problema nacional grave e não pode continuar a ser adiado.

E jovens vão saindo do país, enquanto temos um fluxo migratório que, aliás, faz parte também da política europeia de integração e de acolhimento. E aí, queria também ver se é verdade que existe um mito relativamente àquilo que são as posições dos partidos ditos conservadores ou de direita: de estarem contra a imigração, a inclusão e a tolerância e tudo o que tenha a ver com questões de género. São mitos?

São, em larga medida. E basta conhecer as pessoas. Isso tem muito a ver com a polarização da sociedade. Já há bocado abordámos, e vamos agora a esse tema. Mas quero dizer isto claramente sobre a imigração: eu tenho vida partidária pública há quase 30 anos, e sempre disse o mesmo. Nós temos de ser rigorosos na entrada para ser generosos no acolhimento. Não há aqui xenofobia nenhuma, nem racismo, nem treta nenhuma que queiram colar. Aliás, quem me conhece e sabe a minha vida pessoal, sabe perfeitamente que sou o último discriminador. Sou a última pessoa que podem chamar discriminador do que quer que seja. Agora, não adianta ter uma política de portas 100% abertas para depois ter as pessoas na miséria em Portugal. Houve aqui um movimento que foi travado em larga medida… Quando houve agora esta revolução dos transportes na Área Metropolitana de Lisboa, e criada a Carris Metropolitana, havia anúncios de muitas empresas fornecedoras de serviços a pedir motoristas de língua oficial portuguesa. De forma um bocadinho irresponsável, disseram aos ditos PALOP: “venham que temos trabalho”. Isto não pode ser assim. As pessoas não podem vir ao engano; porque depois tivemos a questão dos timorenses que foram todos dormir para tendas para o meio da cidade de Lisboa, porque não tinham os empregos prometidos. Não podemos enganar as pessoas. Evidentemente, precisamos de imigrantes. Isso, penso que toda a gente sabe, porque temos precisado de mão-de-obra. Eles pagam impostos. Temos de saber o que precisamos e para o que precisamos; e não temos de ter um controlador à porta a dizer: “este pode entrar, porque é branco, este não pode entrar, porque é amarelo”. Não podemos criar uma clivagem. Nós estamos aqui na Avenida de Roma, a fazer esta gravação, e do outro lado da rua existe um supermercado, e não digo a marca para não fazer publicidade, eu assisti, na semana passada, a uma cena que me chocou e indignou e fez pensar no país que estamos a construir com esta polarização política: uma senhora mais velha, uma funcionária não-branca, do estabelecimento, vira-se a certa altura com alguns palavrões, e diz: “volta para a tua terra, estás aqui à minha conta”. E a outra senhora responde-lhe: “sua velha, eu é que pago impostos para pagar a tua pensão”. Isto é uma sociedade que nós queremos? Aquela senhora mais velha de certeza que ganhou uma pensão por uma vida de trabalho, e tem todo o direito; e a outra senhora, nem sei se é imigrante ou se é uma portuguesa tão de gema como qualquer um de nós… a cor da pele não pode caracterizar, porque não é por aí… Mas esta agressividade, esta polarização da sociedade, não nos leva a lado nenhum. Eu sou de direita, e há um partido de direita em franco crescimento, não questiono, que consegue federar o descontentamento como ninguém. Para quê? Para ter 12 deputados que berram no Parlamento? Eu vou dizer isto, e é a primeira vez que vou usar esta frase: o PAN, com um deputado, foi mais eficaz ao longo desta legislatura do que o partido de extrema-direita Chega ao longo desta legislatura com 12 deputados. Por um motivo simples: o PAN com a sua deputada conseguiu aprovar algumas medidas legislativas – boas ou más, não estou sequer a discutir o mérito das mesmas –, conseguindo dialogar e conversar com outros partidos. Conseguiu levar para o seu eleitorado algumas conquistas. A direita radical não levou nada. Aquele tipo de discurso de ódio, de berro e de insulto permanente… As pessoas podem ficar muito satisfeitas, podem bater muitas palmas e delirar com isto. O problema, a consequência, é [que vale] nada. Qual é o resultado prático? Nenhum.

Mas nesta vossa coligação, na Alternativa 21, têm como cabeça de lista por Lisboa um fundador do partido Chega, Nuno Afonso, antigo braço-direito de André Ventura. E é candidato independente. Espera com isso que vá roubar alguns dos votos que eventualmente poderiam ir para o Chega, até por via desse ruído que normalmente existe?

O Nuno Afonso, que é vereador na Câmara de Sintra, é um quadro altamente qualificado. E é com muito gosto que o apresentamos a eleições, e que pode ser eleito deputado. E é uma direita de confiança e de diálogo, como já demonstrou na sua acção na Câmara de Sintra. Ele foi fundador do Chega, certo. Tal como eu, foi militante do PSD, e acreditava num projecto de direita que conseguisse construir uma alternativa. E ele chegou a uma conclusão simples e óbvia: com o berro e o grito constante, não se constrói nada; destrói-se. Cria-se esta sociedade polarizada na qual eu não quero viver. Não quero viver numa sociedade de permanente insulto, parece-me um jogo da bola Benfica-Porto todos os dias.

Como observadora, vejo também muito um instigar de polarização por via de partidos da esquerda. E bullying também.

Claro. Os cartazes ofensivos do Chega não ficam nada a dever aos cartazes do PSR do princípio dos anos 1990. Estamos a falar do mesmo tipo de abordagem.

E, aliás, só aqui uma nota: há jornalistas e comentadores que, apenas por questionarem determinados temas, são apontados logo como extrema-direita e outros termos depreciativos.

Claro. Precisamente. Os extremos são iguaizinhos, tocam-se. Eles são tão extremos que acabam por se tocar. Aliás, o próprio Partido Socialista tem beneficiado muito desta polarização da sociedade, porque faz insuflar o Chega e depois grita: “vêm aí os fascistas; nós somos os salvadores”. Na Biologia, há um ser que eu aprecio muito: o líquen, que vemos nas árvores, de manchas coloridas nos troncos das árvores. É um fungo e uma alga juntos; não é um ser, são dois seres completamente diferentes, mas não vivem um sem o outro. Neste momento, a extrema-direita e o Partido Socialista são quase um líquen; alimentam-se um do outro para sobreviver. E o Partido Socialista vai pagar com língua de palmo esta atitude. Deste diálogo não nasce nada, apenas se polariza a sociedade e se criam estes conflitos. Isto não leva a lado nenhum. Aliás, temos um mundo cada vez mais intolerante e o estado a que estamos a chegar é evidente: guerras a rebentar por todo lado, crise económica, pessoas a serem atiradas para as franjas, para a pobreza e para a miséria, porque se perdeu a capacidade de dialogar.

Mas a própria Comissão Europeia, e saindo um pouco do país, tem dado também alguns maus exemplos. E durante a pandemia, fez isso: puxar pela polarização, colocar pessoas e cidadãos uns contra os outros, e encetar por medidas que são muito pouco democráticas.

Isto é aquela velha clássica que vem dos romanos, que era juntarmo-nos contra o inimigo externo. E criar um inimigo externo muitas vezes para lutar contra ele, para reforçar o poder.  É o princípio errado da política. A política, a polis, é a construção da cidade, ainda com os gregos. A cidade só se faz em diálogo, em conversa; evidentemente, com divergência. E essa divergência pode ser dura. Quando eu falo sobre a intervenção económica do Estado, sei que tenho divergências de princípios fundamentais com a esquerda, com o Partido Socialista, o Partido Comunista, evidentemente, e mais com o Bloco [de Esquerda]. Mas as coisas têm de ser feitas em diálogo, para construir alguma coisa. Se a nossa luta é só de destruição, chegamos ao fim e não temos nada.

Estamos nos 50 anos da democracia, e já se vê até algumas correntes, e tenho lido artigos no estrangeiro, que até dizem que, se calhar a democracia não é o melhor para os governos poderem aplicar determinadas medidas e políticas que, na visão dessas pessoas, são urgentes. Acredita que a democracia está num ponto de viragem, mas no sentido de ser melhorada, ou entende que a democracia está em risco, por via de um recuo grande nos seus princípios nos últimos anos?

Não lhe sei responder de forma taxativa. E passo a explicar. Eu gosto muito da obra do doutor Francisco Sá Carneiro. Não sou como outros, que acham que o reencarnam; mas ele dizia uma frase que ainda hoje devemos ter atenção: “a democracia é difícil e exigente, mas dela não abdicamos”. Evidentemente, hoje, com as formas de participação directa, com os canais mais directos de comunicação, tornou-se ainda mais exigente a forma de comunicação transparente e límpida daquilo que são as opções democráticas. Isso é um facto. Não podemos continuar a assentar, com todas estas novas tecnologias, em modelos de séculos passados. Isso parece-me evidente. Mesmo os modelos eleitorais, e saindo de Portugal: os Estados Unidos têm um modelo eleitoral, que foi da Confederação, onde se arrisca que um candidato possa ter mais um milhão de votos, e o outro é que ganha as eleições… Isto não faz sentido nenhum nos tempos que vivemos.

E também há questão de quem pode votar…

Sim, ainda há essa dificuldade nos Estados Unidos, de quem pode votar, que nós não temos. Mas isto devia fazer-nos rever profundamente os mecanismos. A democracia esgota-se em si própria? Não acho. Aliás, quando se tenta criar limites à democracia, normalmente sai sempre asneira. A nossa Constituição, que é democrática, tem algumas coisinhas que não são democráticas. Toda a gente diz: “Ah, o preâmbulo é só simbólico”… Então, por que continua lá? Nós temos um preâmbulo de uma Constituição que diz que caminhamos rumo ao socialismo. Eu não me sinto minimamente revisto naquilo. Temos outra pequena questão: impedirmos constitucionalmente o referendo à reforma republicana de Governo. Porquê? Não há, neste momento em Portugal, uma questão aberta sobre Monarquia e República.

Portanto, é um optimista no sentido de ver que há espaço para melhorar a democracia.

Sim. Este referendo à forma republicana de Governo, não é que isso seja muito importante, mas por que tem a nossa democracia esta barreira? Temos medo de quê? Eu, não sendo republicano fervoroso, nem monárquico fervoroso… Países como a Suécia e a Inglaterra, que são monarquias, não se têm dado mal. E quando se diz que a coroa espanhola é mais barata que a Presidência da República Portuguesa para o bolso dos contribuintes, também é um argumento. Se daí depreendo que devíamos referendar a República? Não estamos nesse estado. Mas pergunto. por que é proibido?

Estamos num contexto em que as políticas feitas em Portugal têm um peso forte de Bruxelas…

Certo. A União Europeia é talvez a organização menos democrática em que participamos.

E também em outras organizações, Portugal está envolvido em tratados internacionais, como os da Organização Mundial de Saúde.

Certo. Nós, desde o nosso nascimento, gostamos de nos considerar como euro-críticos. Ou seja, não somos contra a integração europeia, mas há muitas coisas… Nós temos um Parlamento Europeu que é o único órgão ‘democratizado’ das decisões europeias, mas que deixa muito a desejar em termos de competências de facto, ou de representação. Temos todo um conjunto de burocratas que decidem o tamanho da sardinha que podemos pescar ou se podemos ter o saleiro na mesa ou não, que ninguém os elegeu para coisa nenhuma e que não prestam contas perante ninguém, mas que, de repente, nos alteram a vida de cima a baixo. E que nos custam dinheiro. Na área da Agricultura, esse é um dos problemas fundamentais; muitos dos custos à produção são altíssimos por causa das regras da União Europeia. Se elas estão bem, se calhar estão; mas têm de ser aplicadas também ao que vem de fora. Não podemos exigir a um produtor que produz maçãs na Beira que cumpra determinados padrões porque somos muito desenvolvidos e muito preocupados, e depois pomos a sua maçã a concorrer com a que vem da América do Sul sem qualquer controlo e taxação ou sem qualquer exigência no processo de produção. Isto é condenar a nossa agricultura a uma indigência absoluta e à falência dos produtores agrícolas.

Mais uma vez, aquela visão do burocrata que está em cima e que não olha para a realidade.

E que não pisou o chão, não sabe o que é que custa produzir uma maçã, nem o que custa engarrafar uma garrafa de vinho. Vive num mundo de Excel, de folhas, de planeamento e não vive o mundo real. E, portanto, nós, mesmo sendo pró-europeus – e não só pela geografia, mas isso condenava-nos a ser europeus, estarmos na Europa –,  não é a qualquer preço. Andamos longe daquilo que é o federalismo. Aliás, muito longe dessa tendência. Temos muito orgulho em ser portugueses. No outro dia, o doutor Durão Barroso dizia que achava estranho, e eu concordo com ele, as pessoas de direita terem às vezes vergonha de dizer que são patriotas e falarem em palavras como família. Eu sou um patriota, e gosto da minha pátria, não tenho medo de o dizer com as letras todas. Isto não me leva a ter de dizer que para isso tenho de ser contra imigrantes, contra isto ou aqueloutro. Não tenho de ter um discurso de ódio associado ao meu patriotismo.

Mas tem havido uma diabolização de determinados termos.

Certo. E depois terminamos naquelas discussões fantásticas, como a discussão das casas de banho. Quer dizer, o país não tem mais problema nenhum do que estar a discutir se as casas-de-banho são para homens, para mulheres ou para todos? Olhe, acabe-se com estas casas de banho colectivas, casas de banho individuais e qualquer um entra e usa. São discussões esotéricas que, às vezes, nos fazem perder 70 e 80% dos debates, e depois as pessoas continuam a ter dificuldade em pagar a conta da farmácia, da comida e ir ao supermercado. Às vezes têm de fazer opções entre alimentos e medicamentos. E perde-se só 10 minutos a discutir esses problemas, e depois passa-se uma hora a discutir as casas-de-banho e outras realidades. Temos tido os debates dos maiores partidos, e falam de tudo e mais alguma coisa e das coligações, para a extrema-direita e para a esquerda. O mundo está com duas guerras abertas, com a possibilidade de abrir uma terceira, e ninguém fala disso? Ninguém fala do enquadramento de Portugal no mundo, na nossa dependência externa? Não se discute isso porquê? Os cidadãos não podem ter opinião sobre isso… Os portugueses não podem saber com quem é que o seu país está metido e com quem está aliado, com quem é que está alinhado? Não pode ter uma palavra sobre isso, ou só vai discutir quem é que se casa com quem? Isto é o absurdo para onde estamos a levar o debate político.

É também muita ‘infantilização’ no debate público, não é?

Sim, é um bocadinho o jogo da claque. Vivemos quase numa claque deste e daquele. Eu desfilei-me do PSD ao final de 25 anos de militância. Por um motivo simples: um partido não é um clube de futebol. Eu sou adepto de alguns clubes da minha juventude, de Viana, porque os meus pais e os meus tios eram, e foi fundado pela minha família; porque há ligações afectivas e irracionais. Mas a política não é uma irracionalidade; são pessoas concretas sobre a vida das pessoas. E, portanto, não se pode basear em “são dos meus, são bons; são dos outros, são maus”. Tem de ser um debate sobre as questões concretas, e não é só pelos alinhamentos, porque é de um bom partido ou é do partido contrário. Se entrarmos nesta dicotomia, estamos no jogo de clubes. Isto deixa de ser política, e passa a ser clube. E um clube não tem lugar nesta discussão.


Pode consultar AQUI o programa do Alternativa 21 para as Legislativas de 2024.


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