HÁ VIDA DEPOIS DA MORTE

Le Coup de Grâce: cinco minutos de felicidade

por Clara Pinto Correia // Fevereiro 25, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Título

Le coup de grâce

Autor

MARGUERITE YOURCENAR

Editora (primeira edição)

Éditions Gallimar (1939)

Título em português

O golpe de misericórdia

'Texto de eleição' 

“À luz desta indulgência nova, os meus rigores, as minhas recusas, mesmo os meus sorrisos adquiriram aos seus olhos o aspecto de uma provação cuja importância ela não compreendera bem, de um exame em que ela não conseguira passar. Como um nadador esgotado, ela viu-se afundar a duas braças da margem, no instante em que eu teria, talvez, começado a amá-la. Tivesse-a eu agarrado, que ela choraria agora de horror lembrando-se de que não tivera a coragem de esperar por mim(1). Sofreu todos os tormentos das mulheres adúlteras castigadas pela ternura, e esse desespero agravava-se ainda com os raros instantes lúcidos em que Sofia se lembrava de que, enfim, não tinha de me reservar o seu corpo. E todavia a cólera, a repugnância, o enternecimento, a ironia, um vago remorso da minha parte, e da sua um ódio nascente, todos os contrários, enfim, nos colavam um ao outro como dois amantes ou dois dançarinos. Este laço tão desejado existia verdadeiramente entre nós, e o pior suplício de Sofia deve ter sido o de o sentir ao mesmo tempo tão sufocante e tão impalpável.

“Ela tinha simplesmennte atingido aquele estado de embrutecimento em que mais nada conta, e deixara de se inquietar com a salvação dos seus, ao mesmo tempo que de admirar Lénine(2).

“ -- Muitas vezes – disse ela aproximando-se de mim –, penso que é mau não ter medo. Mas, se eu fosse feliz – prosseguiu ela, e recobrara aquela voz rude e doce que me perturbava sempre como as notas baixas de um violoncelo -- , parece-me que a morte já não teria qualquer efeito sobre mim(3). Cinco minutos de felicidade seriam como um sinal que Deus me tivesse enviado. – Você é feliz, Eric?

“ -- Sim, sou feliz – disse eu constrangido, apercebendo-me subitamente de que estava apenas a dizer uma mentira.

“ -- Ah, é que você não tem ar disso – prosseguiu ela num tom de impertinência em que transparecia a antiga estudante – E é porque você é feliz que não lhe causa aborrecimento morrer?

“O avião inimigo revolteava ainda no céu esverdeado, e o silêncio estava cheio deste zumbido horrível de motor, como se todo o espaço não passasse de um quarto onde rodopiasse desastradamente uma vespa gigante. Arrastei Sofia até à varanda, como um amante numa noite de luar. Com o braço passado à volta da sua cintura, eu tinha a sensação de lhe auscultar o coração fatigado. Ela palpitava contra mim, e nenhum encontro feminino, prostituição ou acaso, me tinha preparado para aquela violenta, aquela cruel ternura. De súbito, um estrondo enorme deflagrou mesmo junto de nós; Sofia tapou os ouvidos como se este barulho fosse mais horrível do que a morte. Atrás de nós, a vidraça desfizera-se em estilhaços; ao entrar de novo no quarto, pisámos vidros partidos. Extingui a luz do candeeiro, como quem o acende depois de ter feito amor.”

Comentário de Clara Pinto Correia

Um legado de remorsos
Condensado em não mais que 99 páginas na versão portuguesa (a que li), O GOLPE DE MISERICÓRDIA é o mais belo, mais tortuoso, e sem dúvida o mais cruel e violento romance de Marguerite Yourcenar. Situado nas Balcãs em 1919, durante a guerra civil russa, recorda-nos que a maior violência de qualquer guerra é tornar impossível a limpidez do amor, que acaba por só poder expressar-se em actos de maldade extrema. Ninguém fica surpreendido quando, no final, Sofia chama o seu fiel jardineiro Michel e lhe pede que diga a Eric que faz questão de que seja ele a baleá-la. Ainda por cima, Eric falha o primeiro tiro, que apenas lhe destrói parte do rosto, “o que me impedirá para sempre de saber qual a expressão que Sofia teria adoptado na morte”. Ainda tem a presunção de pensar “que, ao pedir-me para que me incumbisse desse serviço, ela julgara dar-me uma derradeira prova de amor, e a mais definitiva de todas.” Só depois compreende que Sofia quisera, apenas, legar-lhe uns remorsos tais que ainda os sente por vezes. E conclui: “Com mulheres destas, cai-se sempre no laço.”

Yourcenar era historiadora. Como tal, se havia sentimento que certamente conhecia bem, era a depreciação e demonização constantes do universo feminino. Estas últimas considerações de Eric expressam-no melhor do que qualquer outro parágrafo escrito no século XX.

O raio que o parta.

Notas

(1) “Não ter coragem” é uma maneira interessante de resumir o que Eric quer dizer-nos. Na sua ausência, Sofia é violada por um dos oficiais que lidera a instalação das tropas em Kratovicé, onde a sua família reside. Neste momento já não tem nada, nem o seu cão Texas, que acaba de morrer. Quando Eric precisa de dar-lhe banho, e, por conseguinte, a vê nua, nota, “sobre o seio esquerdo, a longa cicatriz de uma facada.” Ela confessa-lhe ser o vestígio de “uma tentativa desastrada de suicídio”. Mas Eric continua a interrogar-se sobre se foi mesmo isso que aconteceu, ou se a cicatriz é o vestígio do que lhe fez “o sátiro lituano.” Depois de uma perda de virgindade destas, percebe-se bem porque é que Sofia se entrega indiferentemente a qualquer soldado – mas nunca a Eric.

(2) Neste ponto do romance já se percebeu que Sofia tem uma clara simpatia pelos bolcheviques, por quem acabará por vestir-se de homem e mudar de campo. Mas, por enquanto, ainda ninguém a leva a sério. Nem sequer o próprio Eric.

(3) Self-fulfilling prophecy. A narração está cheia delas, mas tão bem semeadas no diálogo que nunca vemos chegar um final que, no entanto, deveria ser óbvio.

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