Antes de me aventurar por assuntos mais densos, começo com uma história ligeira.
Jantava com um amigo numa mesa de duas pessoas. Passado pouco tempo, uma vintena de indivíduos ocupou uma mesa próxima de nós. Não falavam, gritavam, enchendo o restaurante de ruído. Expeliam boçalidades de dois em dois grunhidos. Os seus rostos cintilavam de estupidez. O barulho era tanto, que mal conseguíamos ouvir‑nos. Até o som do seu riso era alarve e boçal, assim como as suas frases, piadas, penteados e roupa. Perguntei ao empregado se podíamos mudar de mesa, mas estavam todas ocupadas.
Quando saímos do restaurante, comentei irritado com o meu amigo:
— Mas que bimbos do caralho, porra!
— Eu vi um bimbo.
— Só um?!
— Sim. Aquele que, quando tocou o telemóvel, nem sabia o botão para tirar o som. Ganda bimbo!
Fiquei com a boca em ó. O meu amigo (décimo dan de tecnofilia) ainda me conseguia surpreender. De toda aquela selvajaria, o meu amigo só retivera que um não sabia tirar o som do telemóvel: eis o único critério na sua cabeça que permitia detectar um energúmeno.
Outro episódio: falava com um amigo num café, e, em dado momento, fiquei em silêncio. Acto contínuo, ele começou a dizer: «Ꞌtou? Ꞌtou? Ꞌtou?»
O meu amigo, de tanto falar ao telemóvel, pensou que eu, ali ao lado dele, me tinha transformado num telemóvel e ficado sem rede ou sem bateria…
Já passei o jornal a uma amiga para ler uma notícia e reparei que ela mexia com os dedos no papel para ampliar a letra, como faz no telemóvel. Contou-me outra, acredite quem quiser, que já deu por si a clicar no canto superior de uma página de papel, como se estivesse a fechar uma página da Internet.
Disse-me um amigo que, quando foi obrigado a usar uma singela esferográfica para preencher uns papéis, ficou assustado com a sua irreconhecível caligrafia, dado que não escrevia fora do computador e do telemóvel fazia decénios.
Já vi uma pessoa a tentar entrar no meu prédio carregando no comando que abre a garagem. Cruzámos olhares, e o indivíduo deu um pequeno salto quando teve o clarão.
Jacques Ellul, um visionário que deve ser lido, avisou-nos: o caminho da sociedade tecnológica é o caminho de uma sociedade que privilegia crescentemente o reflexo em detrimento da reflexão. Ellul dava o exemplo do homem que conduzia a alta velocidade na auto-estrada. Só lhe era exigido que tivesse reflexos, pois uma reflexão a cento e cinquenta quilómetros por hora poderia ser fatal.
Mas tudo isto é nada quando lemos notícias atrás de notícias de jovens que se suicidaram por não conseguirem a selfie («autofoto» em português) perfeita, que morreram ao tirar uma selfie com armas ou em cima de rochas, de influenciadores que morreram durante ou depois de vídeos ao vivo no TikTok a fazer proezas como ver quem bebe mais, de criaturas que mataram e tiraram selfies com os assassinados. É possível fazer uma enciclopédia com estas notícias.
Por que razão quase toda a gente tem cara de parva quando tira uma autofoto? (Perdão, uma selfie.)
A propósito: chegará o dia em que os portugueses que não têm uma selfie com o Presidente Marcelo serão uma minoria?
«Três em cada quatro jovens afirma [afirmam] já ter pensado em mudar a sua aparência por causa das redes sociais», revela-nos Teresa Amaro Ribeiro, em 9 de Junho de 2023, no Expresso.
A tecnologia é uma força poderosíssima e avança sem referendos ou eleições. Invadindo todos os cantos e recantos, não poderia deixar de fora o modo como comunicamos. Sem sequer dissecar a substituição das palavras pelos emojis e outros quejandos, deixo uma observação sobre os efeitos da tecnofilia na linguagem, pública e privada, algo comprovável e comprovado dia após dia após dia após dia: há um uso constante de conceitos da informática e da tecnologia para tudo e mais alguma coisa — o programa do partido XYZ precisa de um upgrade; esta é a altura de fazer um reset ao metabolismo, de fazer um reset ao sedentarismo e aos maus hábitos, o Governo precisa de fazer um reset; o seu discurso, Senhor Deputado, é, em matéria de imigração, um copy-paste do discurso de Le Pen; lemos até que Liz Truss é uma versão 2.0 de Margaret Thatcher. Há, diga-se, versões 2.0 de tudo. E, claro, aconselhamos os outros a mudar o chip, lemos que a equipa ou o dirigente político mudaram o chip, que Fulano mudou o chip no discurso ou num dado comportamento.
O transumanismo em curso reflecte-se na linguagem.
Já reparou como, hoje em dia, as pessoas são tal qual os computadores: a toda a hora, elas dizem que estão a «processar»? «Espera, ainda estou a processar», ouço, no mínimo dos mínimos, uma vez por semana.
O próprio conceito de lar é transferido para a tecnologia: entramos em salas de conversação, em que temos inúmeros amigos, com cem aspas de cada lado, abrimos janelas. No período dos confinamentos, tivemos a aplicação (perdão, a app) designada Confession: A Roman Catholic App para os católicos confessarem os seus pecados.
Alguém nas obscuras hierarquias nos pergunta como nos sentimos, de modo que, partilhando publicamente um átomo da nossa interioridade, atenuemos a solidão, afaguemos a vaidade, aliviemos a tralha que acumulamos e alimentemos a bisbilhotice. Já tive um telemóvel que me perguntava assim que o ligava: «Como está hoje?»
Parafraseando George Orwell, o que está diante do nosso nariz é precisamente aquilo em que é mais difícil reparar. As ressonâncias religiosas na linguagem tecnológica não são poucas — estamos «ligados», estamos na «Rede», «salvamos» e «convertemos» documentos. Uma conhecidíssima marca tecnológica tem até o símbolo que associamos ao pecado original.
Se, noutro século, Hegel entendeu ser a leitura do jornal a oração matinal do homem moderno, hoje, especialmente para as novas gerações, as «novidades» das redes sociais, o acto de consulta das inúmeras mensagens e notificações de toda a espécie são a nova oração matinal, ou… a prece de todas as horas. Por que razão toda a gente se sobressalta quando verifica o tempo que passou na Internet ou nas redes sociais? Porque o vício mascara o tempo cronológico. Khrónos, ensinaram-nos os Gregos, étimo em que assentam a «cronometragem», o «cronómetro», a «cronologia», a «cronobiografia», o «cronograma» (entre outros), é a ditadura da medição do tempo pelo relógio, conceito diferente de kairós, outra forma de tempo.
No mundo laboral, sublinhe-se, o direito a desligar deveria ser um direito constitucionalmente consagrado.
E a vida eterna, perguntarão alguns?
Um excerto da imprensa (entre outros de semelhante jaez): «Elon Musk, por exemplo, está a trabalhar num projecto para ligar o cérebro humano a um computador. A ideia é “libertar” o cérebro do corpo, quando este estiver envelhecido, e abrir a porta para uma vida digital… eterna.»
Mais um paradoxo hodierno: nunca houve tantos canais de comunicação, enquanto os dados da saúde mental (cá e lá fora) são crescentemente tenebrosos, mormente entre os mais jovens, assim como dificilmente encontramos um período em que as pessoas se digam sentir tão sozinhas, pese embora a pletora de canais de comunicação que habitam. No Expresso, em 30 de Maio de 2023, lemos: «Estudo revela que 86% dos jovens portugueses estão viciados nas redes sociais […] 80% dos jovens prefere[m] comunicar pelas redes sociais, em vez de pessoalmente. Dois em cada cinco jovens reconhecem que as redes sociais têm impacto negativo na sua saúde mental.» Em 12 de Junho de 2023, o mesmo jornal revela-nos os dados de um estudo da OMS: «Segundo um estudo da Organização Mundial da Saúde, divulgado no ano passado, 28% dos adolescentes portugueses sentem-se infelizes e 9% dizem-se “tão tristes que não aguentam mais”.»
Uma notícia do The Guardian merece a nossa máxima atenção. Conseguimos estar sozinhos com os nossos pensamentos? Parece que não. A experiência relatada pelo The Guardian consistia em estar sentado, sozinho, numa cadeira, sem distracções sensoriais. A única possibilidade de distracção era um botão que dava um choque eléctrico.
Dois terços dos homens carregaram no botão que dava um choque eléctrico, descrito como doloroso, durante os quinze minutos em que permaneciam sentados consigo mesmos.
Um deles deu o choque eléctrico a si mesmo cento e noventa vezes.
Fala-se muito da necessidade de conviver (ou de socializar, como se diz hoje, ainda que este último conceito no sentido de «conviver» seja uma total invenção recente) e de saber interagir com os outros. Fala-se menos da sobredosagem de estímulos, da velocidade e instantaneidade como inimigas da memória (e temos hoje estudos que demonstram que o consumo de redes sociais e da Internet deterioram a memória e a qualidade do sono, enquanto diminuem drasticamente a capacidade e o tempo de atenção a um assunto), da reflexão e da decisão acertada, e sobretudo da incapacidade hodierna de sabermos estar sozinhos. Tinha razão Pascal ao entender que os problemas do Homem nasciam da incapacidade de estar sozinho num quarto.
O Inferno nem sempre são os outros. O Inferno também somos nós.
Pós-escrito: propus ao Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa (ILLLP) a inclusão dos verbetes «tecnofilia», «tecnófilo» e «tecnodeslumbrado» (esta última da minha alta recreação) no Dicionário da Língua Portuguesa (DLP).
Citações do Unabomber por mim traduzidas
«Quando uma nova tecnologia é introduzida como uma opção que um indivíduo pode ou não aceitar, isso não quer dizer necessariamente que PERMANEÇA [maiúsculas do autor] opcional. Em muitos casos, a nova tecnologia muda a sociedade de tal maneira, que as pessoas acabam por se ver forçadas a usá-la.»
Technological Slavery: The Collected Writings of Theodore J. Kaczynski, a.k.a. “The Unabomber” (Feral House, 2010)
«A sociedade de hoje tenta socializar-nos num grau maior do que qualquer sociedade anterior. Os especialistas dizem-nos até como devemos comer, fazer exercício físico, fazer amor, criar os nossos filhos e assim por diante.»
Idem, ibidem
«Quando se introduz uma inovação técnica, as pessoas normalmente tornam-se dependentes, de modo que deixam de conseguir passar sem ela, a não ser que seja substituída por alguma inovação ainda mais avançada. Não se trata apenas de os indivíduos se tornarem dependentes de um novo produto tecnológico, trata-se também, e em maior grau, de o sistema, no seu conjunto, se tornar dependente dele. (Imaginem o que ocorreria ao sistema actual se os computadores, por exemplo, fossem eliminados).»
Idem, ibidem
«Imaginem uma sociedade que sujeita as pessoas a condições que as fazem sentir-se terrivelmente infelizes, e que depois lhes dá as drogas para remover a infelicidade. Ficção científica? Já acontece de certo modo na nossa sociedade. [O autor instiga-nos longamente a pensar quantas pessoas conseguiriam aguentar a vida numa sociedade tecnológica hodierna sem recurso, por exemplo, à indústria do entretenimento ou a antidepressivos, e como uma sociedade tecnológica hodierna conseguiria domar o comportamento humano, garantindo a coesão social, sem recurso a antidepressivos, técnicas de videovigilância, propaganda de larga escala, indústria do entretenimento, etc.]»
Idem, ibidem
«A selecção natural favorece sistemas de autopropagação que procuram a sua vantagem de curto prazo, com pouca ou nenhuma consideração pelas consequências de longo prazo.»
Anti-Tech Revolution: Why and How (Soregra Editores, 2016)
«Estudantes de acidentes industriais sabem que o sistema tem maior probabilidade de sofrer uma desagregação catastrófica quando (i) o sistema é altamente complexo (pequenas disrupções podem produzir consequências imprevisíveis) e (ii) inextricavelmente ligado (o desmoronamento de uma parte do sistema propaga-se rapidamente a outras partes). O sistema mundial tem sido altamente complexo por um longo tempo. O novo elemento introduzido é o sistema mundial ser agora inextricavelmente ligado. Isto é o corolário da existência de rápidas e mundializadas redes de transporte e comunicação, que tornam possível que o desmoronamento de uma parte do sistema mundial se propague rapidamente a outras partes. À medida que a tecnologia avança e a globalização galopa dominante, o sistema mundial torna-se ainda mais complexo e inextricavelmente ligado, de modo que uma desagregação catastrófica do mesmo deve ser esperada mais tarde ou mais cedo.»
Idem, ibidem
«Na minha vida nos bosques, encontrei certas satisfações que esperava, como liberdade individual, independência, um certo ingrediente de aventura e uma vida de baixo stresse. Também obtive algumas satisfações que não tinha compreendido profundamente ou previsto, ou até que chegaram a mim como surpresas completas. Quanto mais íntimo te tornas com a Natureza, mais aprecias a sua beleza. É uma beleza que não consiste apenas em imagens e sons, mas na apreciação do todo. Significativo é que, quando vives nos bosques, em vez de apenas os visitares, a beleza se torna parte da tua vida, em lugar de algo que apenas observas de fora. Relacionado com isto, parte da intimidade com a Natureza que adquires é a nitidez dos teus sentidos. Na vida da cidade, tendes, de certa forma, a virar-te para o interior. O ambiente que te circunda está inundado de imagens e sons irrelevantes, e ficas condicionado a bloquear a maior parte deles. Nos bosques, a tua percepção das coisas vira-se para o exterior, para o ambiente circundante, já que ficas muito mais consciente do que se passa em teu redor. Por exemplo, repararás em coisas inconspícuas no terreno, como plantas comestíveis e rastos de animais. Se um ser humano passou e deixou apenas uma pequena parte de uma pegada, provavelmente darás conta. Sabes os sons que chegam aos teus ouvidos: isto é o canto de pássaro, isto é o zumbido de moscardo, isto é o início da corrida de veado, isto é uma pinha arrancada por um esquilo e que aterrou num tronco. Se ouves um som que não consegues identificar, isso prende imediatamente a tua atenção, mesmo sendo tão débil, que seja dificilmente audível. Este alerta, esta abertura dos sentidos é dos maiores luxos de viver próximo da Natureza. Não consegues entender isto, a não ser que o tenhas experimentado. Outra coisa que aprendi é a importância de ter trabalho com propósito relevante. Ou seja, trabalho com propósito realmente importante – assuntos de vida e de morte. Não descobri verdadeiramente o que era a vida nos bosques até que a minha situação económica era tal, que tinha de caçar, colher plantas e cultivar um jardim para comer. Durante parte do tempo em Lincoln, especialmente entre 1975 e 1978, se não tivesse êxito a caçar, não tinha carne para comer. Do mesmo modo, não tinha vegetais se não os tivesse colhido ou cultivado. Não há nada mais prazeroso do que o preenchimento e a autoconfiança que esta auto-suficiência traz. Vivendo próximo da Natureza, descobre-se que a felicidade não é maximizar o prazer. É tranquilidade. Quando desfrutaste longamente da tranquilidade, adquires aversão à ideia de um prazer muito forte – um prazer excessivo cria uma disrupção na tua tranquilidade. Aprende-se ainda que o tédio é uma doença da civilização. Penso ser fundamentalmente tédio as pessoas terem constantemente de estar entretidas ou ocupadas, porque se não o estão, algumas ansiedades, frustrações, descontentamentos e outros quejandos começam a vir à superfície, e isso fá-las sentir-se desconfortáveis. O tédio é quase inexistente quando te adaptas à vida nos bosques. Se não tens trabalho que precisa de ser feito, podes sentar-te por horas não fazendo nada, apenas ouvindo os pássaros ou o som do vento ou o silêncio, observando as sombras a mover-se enquanto o Sol viaja, ou simplesmente observando objectos familiares. E não te aborreces, estás simplesmente em paz. Uma coisa que descobri quando vivia nos bosques é que ficas de tal modo, que não te preocupas quanto ao futuro, não te ralas com a morte, se as coisas estão bem agora, tu pensas “bem, se eu morrer na próxima semana, que importa?, as coisas estão bem agora”. Julgo ter sido Jane Austen quem escreveu num dos seus romances que a felicidade é sempre algo por que esperas, não algo que possuas em determinado momento. Isto não é sempre verdade. Talvez seja verdade na civilização, mas quando saltas fora do sistema e te readaptas a uma diferente forma de viver, a felicidade é algo que tens aqui e agora.»
Entrevistas do autor às publicações periódicas Blackfoot Valley Dispatch e Earth First!
Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua
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