Entidade do Ministério da Saúde usa argumento falso, e à margem da lei, para manter relação de 30 anos

Administração Central do Sistema de Saúde mente: não há jurisprudência do Tribunal de Contas sobre ‘contratos perpétuos’

a wooden statue with a white hat on top of it

por Pedro Almeida Vieira // Fevereiro 28, 2024


Categoria: Res Publica, Exame

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“A jurisprudência invocada não existe” – é assim, de forma taxativa, que o Tribunal de Contas põe por terra os argumentos (falsos) da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) que tem um contrato desde 1994, no tempo de Cavaco Silva, com a sociedade de advogados BAS, em cujo escritório tem ‘residência profissional’ Diogo Lacerda Machado, o amigo de António Costa no epicentro da Operação Influencer. A ACSS insiste na legalidade do processo, agora usando outros argumentos, e diz ainda que coloca os contratos no Portal Base, mas sem os expor ao público, uma atitude surpreendente se considerarmos que essa plataforma serve apenas para uma coisa: informar o público.


O Tribunal de Contas nega que haja qualquer jurisprudência sobre a possibilidade de renovações contratuais sem limite de tempo como o contrato ‘perpétuo’ da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) com a sociedade de advogados BAS, onde Diogo Lacerda Machado – o amigo de António Costa que está no epicentro da Operação Influencer – tem o seu escritório. A reacção do Tribunal de Contas, hoje enviada no decurso de uma notícia de ontem no PÁGINA UM, permite assim concluir que esta entidade tutelada pelo Ministério da Saúde, e presidida por Victor Herdeiro, usou um argumento falso para continuar a manter uma avença mensal de serviços jurídicos desde 17 de Fevereiro de 1994, ainda no tempo do Governo de António Costa. O contrato está, assim, à margem da lei.

De acordo com a informação ontem revelada, a ACSS justifica a contínua renovação do contrato com a BAS – que representa esta entidade num diferendo com o PÁGINA UM para tentar não cumprir uma acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de acesso a uma base de dados de internamentos hospitalares – “com base em jurisprudência do Tribunal de Contas”, que alegadamente determinaria que os contratos celebrados ao abrigo de um diploma de 1999 não estariam sujeitos a qualquer limite de vigência.

Um argumento que se revela completamente falso.

Victor Emanuel Marnoto Herdeiro, presidente da ACSS.

Fonte oficial do Tribunal de Contas, presidido pelo juiz conselheiro José Tavares, foi peremptória, quando solicitada a comentar a informação integral da ACC: “A jurisprudência invocada não existe”, acrescentando que, “pelo contrário, a jurisprudência do Tribunal em matéria de contratação pública é no sentido de procedimentos concursais, regularmente renovados”. E adianta ainda que “os contratos em causa [que se iniciaram antes do Código dos Contratos Públicos] estão sob o controlo do Tribunal de Contas, embora não sujeitos a fiscalização prévia até ao montante de 750.000 euros”. O contrato com a sociedade BAS é de 54 mil euros por ano.

Mais do que este caso, a existência desta interpretação pela ACSS à margem da lei indicia que possam existir muitos mais casos de contratos públicos de prestação de serviços teoricamente vitalícios na Administração Públicas, escondidos até do Portal Base. Conforme o PÁGINA UM revelou ontem, ninguém na Administração Pública sabe (ou quer dizer) quantos procedimentos destes existem e quais os montantes.

Instada a comentar as declarações taxativas do Tribunal de Contas – e sem margem para outras interpretações –, ou seja, não há jurisprudência que sustente a renovação do contrato ‘perpétuo’ com a sociedade de advogados BAS, a ACSS insiste na legalidade da contratação. Numa longa argumentação, a entidade presidida por Vitor Herdeiro diz ser “absolutamente legítima a contratação (sucessiva) de serviços jurídicos de patrocínio judiciário (objeto deste contrato) por ajuste direto, independentemente do valor”, argumentando com interpretações de uma sentença do Tribunal de Contas que não se aplica ao caso em concreto, e invocando mesmo uma directiva que também não se aplica.

Informação que renova novamente um contrato de avença entre a ACSS e a sociedade BAS que começou no Governo de Cavaco Silva invoca jurisprudência do Tribunal de Contas como fundamento. A jurisprudência não existe.

Por exemplo, no caso da directiva referida pela ACSS (Diretiva 77/249/CEE do Conselho), refere-se que existe uma excepção na contratação de serviços jurídicos para os casos de uma “arbitragem ou conciliação realizada num Estado-Membro ou num país terceiro ou perante uma instância internacional de arbitragem ou conciliação, ou — em processos judiciais perante os tribunais ou autoridades públicas de um Estado-Membro ou de um país terceiro ou perante tribunais ou instituições internacionais”, ou ainda em casos de “aconselhamento jurídico prestado em preparação” de determinados processos” de qualquer dos processos referidos na subalínea i) da presente alínea, “, ou ainda “ou “quando haja indícios concretos e uma grande probabilidade de a questão à qual o aconselhamento diz respeito se tornar o objeto desses processos, desde que o aconselhamento seja prestado por um advogado”. Ora, para a ACSS, a sociedade de advogados BAS tem sido a representante legal desde 2022 no processo que corre no Tribunal Administrativo de Lisboa, intervindo em processos que exigem um contrato regular.

A ACSS diz ainda que, como o contrato com a BAS é anterior ao Código dos Contratos Públicos, “tem procedido ao registo de todos os procedimentos na plataforma [de contratação pública], mas os mesmos não são visíveis para o público”. Mas não explica a fundamentação legal nem o motivo ético para não os colocar acessíveis no Portal Base, sabendo-se que esta plataforma foi concebida com um único e singelo objectivo: a transparência da gestão pública – algo que, tudo indica, não integra os pergaminho do conselho directivo da ACSS, a começar por invocar, como verídica, jurisprudência do Tribunal de Contas que não existe. Mas, em Portugal, aparentemente, isso (ainda) pode fazer-se sem penalizações.


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