Recensão: Beira(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção

Uma bela aliança entre a escrita e a Natureza

por Natália Constâncio // Março 14, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Beira(s): Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção

Autoras

ANA CRISTINA CARVALHO & CRISTINA DA COSTA VIEIRA (eds.)

Editora (Edição)

Edições Colibri (Dezembro de 2023)

Cotação

20/20

Recensão

Beira(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção é o segundo volume de uma coleção publicada em papel e online dirigida por Ana Cristina Carvalho, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Dedicada à Literatura Portuguesa e à representação literária da paisagem e do Ambiente, esta obra é antecedida de Alentejo(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção (2021), a que se seguirá brevemente o n.º 3, que terá como base de estudo a região do Minho, Douro e Trás-os- Montes.

O livro em foco resulta de uma parceria entre a CICS.NOVA-FCSH e a UBI (Departamento de Letras), tendo sido organizado e editado por Ana Cristina Carvalho e Cristina Costa Vieira. As editoras reuniram 18 investigadores de 13 universidades e institutos politécnicos e vários centros de investigação e cultura, numa cooperação autoral e institucional consagrada às Beiras. No seu conjunto, os investigadores analisaram cerca de quatro dezenas de obras de ficção de 15 escritores da Literatura Portuguesa. E, muito embora estejamos perante um livro de abordagem académica (com um painel de revisão científica de uma dezena de investigadores nacionais e estrangeiros), demonstra aptidão para cativar um público amplo, interessado nas questões ambientais e literárias: apresenta uma imagem de capa magnífica da autoria de Nuno Santos e cada capítulo é anunciado por fotografias a preto e branco alusivas à geografia a que se refere.

Antes de prosseguirmos com a análise da obra que nos propusemos, convém (re)lembrar ao leitor que a descrição de uma paisagem literária não traduz uma paisagem objetiva, captada pela retina ou pela lente de uma câmara fotográfica. Ainda que esta noção desconstrua ou abale a idealização do leitor, a verdade é que o autor de uma obra literária realiza uma construção verosímil do universo que (re)cria – um texto/produto que edifica um espaço geográfico empírico, e suscita aos leitores a ilusão de referencialidade. Não obstante, o mundo prefigurado num texto literário é sempre um constructo – mediatizado por palavras e apela (de forma direta ou indireta) à imaginação do leitor. Tomemos como base a problematização axial equacionada entre a noção de verba e res, divulgada por inúmeros teóricos, de que sobressaem Erich Auerbach (1972) ou Northrop Frye (1990). Se tivermos em conta a perspetiva semiótico-comunicacional, a realidade e a linguagem precedem o texto literário (sistema semiótico secundário) e os seus códigos, porque os universos literários são construídos e fundados na e pela linguagem. 

Ao atentarmos nos preceitos defendidos e propugnados pelos geógrafos, de entre os quais aludimos ao artigo “Thinking Space”, de Neal Alexander, percebemos que a Literatura pode educar-nos/ensinar-nos sobre a relação estabelecida entre os humanos e o ambiente circundante (2015: 3-6). Tomemos como paradigma o dealbar do mundo moderno: os seres humanos afastaram-se da terra, relegando-a, num evidente alheamento ecológico, e enaltecendo, pelas vozes de um Whalt Whitman ou de um Álvaro de Campos, a preponderância da tecnologia e das máquinas. Para trás deixam Gaia, a deusa-mãe, personificação da Terra. Contrariamente, outras vozes, de entre as quais se destaca Miguel Torga, enquadram a sua poesia ou as suas narrativas num ambiente telúrico, num canto laudatório da terra. Se tomarmos como paradigma este enquadramento, os artigos insertos no volume em estudo procuram, acima de tudo, compreender de que forma a natureza e a paisagem das Beiras surgem representadas na Literatura Portuguesa, pelo olhar dos escritores, nos enunciados instituídos. Sim: importa realçar que as narrativas são edificadas por palavras e as paisagens que nelas figuram traduzem o labor artístico dos autores que pintam, demiurgicamente, quadros com paisagens de uma Geografia Literária enraizada no território nacional.

No livro Estruturas Antropológicas do Imaginário (1989), Gilbert Durand destaca a importância da terra, enquanto berço, morada e sepultura dos humanos. A natural serenidade com que nos acolhe em vida iguala a simplicidade com que nos alberga na morte. Estudiosa da tradição popular portuguesa, na obra Falas da Terra, Natureza e Ambiente na Tradição Popular Portuguesa (2004) Ana Paula Guimarães cita, frequentemente, uma quadra alusiva a esta condição:

“Eu sou devedor à terra/ A terra me está devendo / A terra me paga em vida/ Eu pago à terra em morrendo”. 

Na coleção em foco, cruzam-se diversas áreas do saber, que envolvem a Arte Literária, as Ciências Naturais, as Ciências Sociais e o Turismo Literário. A indissociabilidade entre o meio biofísico e o universo populacional emerge, pari passu, das ficções trazidas à colação pelos respetivos investigadores, que entretecem a sua análise com as perspetivas literária, ecológica e ambiental patentes nos autores cujos textos ostentam. E, pela voz dos escritores – cuja visão os investigadores procuram dissecar – subtilmente pesponta a celebração de um elo de relações simbióticas, que unem terra-povo-língua, emoldurando-os numa geografia vivencial e afetiva que pretende veicular um prisma inserível na Ecocrítica, como base de partida para um estudo que proporciona um terreno interdisciplinar de princípio ecológico. 

O volume inicia-se com dois excertos de extraordinária vivacidade pictórica, retirados da obra A Beira (num relâmpago), de Teixeira de Pascoaes, prosseguindo com a apresentação de excertos do romance Finisterra, de Carlos de Oliveira (1921-1981), que escolheu como material da sua obra a imagética paisagística da região da Gândara. Guilherme d’Oliveira Martins inaugura a sequência de capítulos evocando António Alçada Batista. No primeiro capítulo, Jorge Costa Lopes alude à influência da filosofia heideggeriana no romance Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, mostrando a importância da terra e o facto de os humanos não estarem preparados para a profunda transformação do mundo causada pelos meios tecnológicos. O ensaísta debruça o olhar sobre três romances inscritos numa geografia romanesca que tem por referência as várias Beiras e destaca o diálogo “obsessivo” que entre Homem e espaço (montanha e aldeia) se evidencia: “Porque o “homem pode subir alto, mas as raízes não sobem. Estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos” (1965: 39-40).” 

Partindo dos conceitos de “Ecologia da Paisagem e Metafísica da Paisagem”, António Queirós demonstra de que forma o património paisagístico das Beiras irrompe nos grandes nomes da Literatura Portuguesa. Serões da Província (1870) e Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), de Júlio Dinis, são objeto de estudo por parte de Fernanda Vicente, cuja análise textual enfatiza, sobretudo, a paisagem enquanto objeto de contemplação e criadora de estados de alma. Henrique Almeida elabora um percurso aquiliniano que engloba A Via Sinuosa (1918) e contos e novelas de geografia sentimental, evidenciando “o sentido épico da terra”. 

No capítulo 5, Ana Cristina Carvalho reflete sobre A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, sublinhando que a obra “abre com um Pórtico – uma lídima lição de história natural e humana, num estilo claro e poético, sobre a serra da Estrela” – e que a estrutura “bifocal do romance ‒ nas tensões do universo rural e nas difíceis relações sociolaborais operárias ‒ pode aproximá-lo do neorrealismo no sentido em que a aspiração de fuga à miséria das condições de vida por parte do protagonista vem a unir-se a uma aspiração coletiva, após ele ganhar consciência da classe operária a que pertence.” (2023: 124). Para além da condição climocrítica, a autora do ensaio procura destacar as condições sub-humanas a que estavam sujeitos os pastores da Nave e os operários da Covilhã, num tempo de iliteracia e miséria que os hostiliza.

Indo ao encontro da clássica e vetusta tradição que remonta a Esopo ou ao poeta latino Virgílio, Maria de Lurdes Barata realiza uma abordagem literária da obra de Miguel Torga bifurcada na representação contrastiva aldeia/campo e cidade. A alusão ao Mondego – rio de enfoque literário que evoca a pena camoniana – permeia o acervo de títulos da ficção literária portuguesa. Anabela Sardo e Ana Albuquerque expõem a relação literária de Manuel Alegre com “a paisagem da modernidade” e a paisagem humana do “lugar-origem”, ao debruçarem-se sobre o conceito de imagotipo de Águeda e o seu rio, fonte de sustento no Portugal salazarista dos anos 40 do século passado. A Coimbra do Bairro do Olival e dos “quintais floridos” e do Mondego agonizando sob “a blasfémia do calor de Agosto”, estão no centro da cartografia física e social desenhada por António Apolinário Lourenço, tendo como base Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1993), romance de Fernando Assis Pacheco. Maria Mota Almeida e Teresa Branquinho focam a sua atenção nos escritores Tomás e Branquinho da Fonseca, remetendo para a paisagem do Caramulo, tendo como base analítica ficções que refletem o rigor do clima serrano. 

Margarida Alpalhão demonstra como o saudoso professor de Literatura Helder Godinho estava certo na sua abordagem analítica, ao descortinar na aldeia e na cidade elementos fulcrais da “constelação imagética” de Vergílio Ferreira. O olhar atento de Maria Ilhéu contempla o rio, a principal nervura e expressão primordial das “paisagens aquáticas” das narrativas castrianas. Glória Bastos incide a sua atenção sobre a figuração do espaço geográfico das Beiras em três títulos da série ficcional juvenil Uma Aventura, estabelecendo uma ponte entre as obras e o turismo literário, e concluindo existir na série “um propósito de divulgação das topografias” que servem de cenário a cada livro. O volume encerra pela mão do geógrafo Rui Jacinto, num itinerário que propõe uma rota dedicada à(s) Beira(s).

Como pudemos constatar, a onomástica citada é impressionante. Na obra Univers de la Fiction 1988: 167), Thomas Pavel chama a atenção para o facto de a ficção remeter para a criação de mundos – imaginários – que têm por base o universo real, que tomam de empréstimo. O trabalho desenvolvido por estes críticos – filiados em áreas científicas que englobam a Geografia e as Ciências do Ambiente, as Humanidades e, em particular os Estudos Literários - coloca-nos ante uma visão paisagística e geográfica emoldurada a partir da escrita literária que vai da Mata da Margaraça aos esteiros da laguna de Aveiro, a feérica cidade portuguesa flutuável. 

Estamos perante uma coleção inédita que enriquece o panorama editorial português nos campos da divulgação ambiental da interdisciplinaridade, e única a nível europeu, sendo que os seus estudos e reflexões valorizam as imagens literárias da paisagem humanizada e da interdependência histórica entre o ser humano e os recursos naturais, incluindo o Clima. E vão ao encontro dos estudos preconizados no âmbito do projeto Atlas da Paisagens Literárias de Portugal Continental, atualmente coordenado por Natália Constâncio (IELT-NOVA-FCSH) e Daniel Alves (IHC-NOVA-FCSH).

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