Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
64 – Álibis mais furados que penico de tiro-ao-alvo
O chinês voltou a sorrir. Ou melhor dizendo, sorriu de outro modo. Sim, um riso mais brejeiro, latino, correu-lhe pela face redonda. Certamente estava se divertindo muito e também ele queria tirar sua lasquinha daquele pobre policial brasileiro.
– Não matei a velhinha, meu! Eu apenas topei o desafio que ela me fez. Mandei o gás, exatamente como ela pediu.
– De todo modo, o senhor é aqui o sujeito que mais tem jeito de bandido. – Aroeira levantou-se. – Aliás, tem cara de frio assassino oriental.
– Não discordo, mano, mas não posso ser responsabilizado pelo conjunto da obra. Eu assumo só a parte do pulmão. Mas tem um detalhe sórdido: é quase certo que dona Miguela já estava morta quando mandei o gás.
Aparvalhado, Aroeira voltou a sentar-se e, com uma pungência hamletiana, interrogou-se ou interrogou-nos em voz alta:
– Que devo fazer? Prendo todos ou mando todos embora? Um alega que foi o outro, e assim por diante. É o maior jogo de empurra que vi na minha vida.
Suspirou fundo e depois de encarar os escritores, com olhos úmidos de lágrimas que desejavam se libertar, acrescentou:
– Acho que vocês vieram ao Brasil com o fim único e exclusivo de me enlouquecer. Prefiro os bandidos brasileiros!
Resolvi dar apoio moral ao desolado policial:
– É isso aí, doutor Aroeira. Perto desse povo, bandido brasileiro é fichinha. Aqui é só tiro na cara e facada no bucho. Não tem essas firulas de veneno e zarabatana!
Com um breve gesto de cabeça, o policial me agradeceu e a seguir apontou um dedo para Dax Chamber:
– E o senhor aí, que tentou se fazer de invisível, calado o tempo todo, por acaso, não se meteu no assassinato de dona Miguela de Alcazar?
– Bah, tchê, tô fora! Sou o único inocente. Nunca vi tanta gente malvada junto. Olha, vou te dizer uma coisa: já na chegada ao hotel eu notei que a velhota castelhana estava em pânico, mais sobressaltada que cozinheira de hospício.
– Como assim?
– Perguntei pra ela: “Por que tu tá tão encagaçada, Miguelita?” Ela me respondeu: “Bah, Dax, sinto que vou morrer aqui nesta cidade muquirana”. Como a coitada da velha chorasse de fazer barro, pedi a ela que se acalmasse. Aí, ela se lamentou: “Dax, tu ganha muito mais dinheiro do que eu”. Eu respondi que isso não tinha importância porque dinheiro na minha mão dura tanto quanto cuspe em ferro quente.
– Quer dizer que o senhor era amigo íntimo dela?
– Não muito. Ela era dissimulada. Quando queria enrolar alguém, ela arrodeava mais que cachorro com pulga na cola. E tinha mau hálito, a vivente, fedia mais que arroto de urubu.
– Mas ela lhe disse alguma coisa concreta sobre o seu mau pressentimento?
– Necas, delegado. A pobrezinha estava desanimada, mais caída que orelha de perdigueiro. Pra consolar a coitada, eu disse: “Não te preocupa que tu ainda vais escrever um livro que preste”. Pra quê? A mulherzinha ficou mais braba do que touro laçado pelos bagos. Aí, ela me disse: “Por que você não aproveita que está aqui no Brasil e vai à merda?”
– Só isso? O senhor não tentou depois, por nenhum meio, matá-la?
– Bah, claro que não! Se tivesse tentado matá-la, acertava de primeira. Americanos são eficientes em tudo que fazem. Não sou como essa gente aqui que fica apresentando desculpas mais esfarrapadas que camisas de pobre. Os álibis deles são mais furados do que penicos de tiro-ao-alvo. Eu, se fosse o senhor, prendia todos eles. E ficava famoso no mundo todo. Mas, infelizmente, acho que o assassinato foi cometido verdadeiramente por uma pessoa de menor importância…
– Como assim? – Aroeira agitou-se. – O senhor tem algum suspeito?
– Não! Suspeito é coisa para quem tem dúvidas, tchê. Eu conheço o assassino, sei o nome dele.
65 – Ameaça velada de boicote à compra de bananas
Vagarosamente, o americano estendeu seu braço esquerdo. Depois espichou o indicador. A seguir, sempre lentamente, foi girando o braço. Deteve-se quando na sua mira estava a carantonha de Manoel Joaquim Batota.
– Foi o portuga! – gritou Dax. – Ele está mais quieto que guri cagado porque sabe quem tem culpa no cartório. Foi ele quem meteu arsênico na comida da castelhana.
– Bem sacado! – exclamou Aroeira.
E de imediato pôs a mão no ombro do gerente do hotel. Por fim, tinha um criminoso. Sorriu feliz. Não, mais que isso. Exultou como Arquimedes ao descobrir que banheira, quando cheia, transborda se alguém entra nela.
– Considere-se preso! – disse o policial. – É você o principal culpado, sem dúvida. Agora, vejo tudo muito claramente. Sem dúvida, a morte da velha decorreu do rango envenenado. Depois, já agonizando, lambeu estricnina, recebeu o golpe na cabeça e a zarabatana no pescoço. O veneno inodoro, obviamente, só foi injetado no apartamento depois da porta ter sido fechada, quando a velha já estertorava. O enfarte, acredito eu, decorreu também do almoço. Sim, tudo partiu de você.
Estarrecido, diante daquela reviravolta que o levava ao inferno, Manoel Joaquim Batota abriu a boca, mas não conseguiu emitir uma só palavra. E a seguir, enquanto torcia as mãos dramaticamente, seu rosto foi assumindo um assustador tom arroxeado.
Senti muita pena do pobre lusitano. Resolvi então me intrometer na conversa:
– Delegado, acho mesmo que o seu Batota é inocente!
– O que sabe você, gaúcho? Que sabem fazer os gaúchos além de ordenhar vacas e roubar ovelhas?
– Perdão, doutor Aroeira, mas a verdade confirmada pela estatística é que portugueses só matam sardinha. Nem bacalhau matam mais, deixaram o serviço sujo e cruel para os noruegueses. O senhor, por acaso, já prendeu um português?
– Pensando bem, nunca, nenhum – admitiu o delegado. – Mas tudo me leva a crer que o almoço envenenado pelo cidadão português desencadeou o falecimento da bruxa velha. Havia arsênico na comida, segundo o laudo. O resto veio depois, de cambulhada.
Voltei-me para o gerente do Imperial Hotel da República e o interroguei:
– Seu Manoel, reflita antes de responder: o senhor, por acaso, encontrou com alguém pelos corredores do hotel enquanto levava a comida para dona Miguela?
– Acho que não – respondeu o lusitano, quase chorando.
– Pense bem! – insisti. – O senhor corre o risco de ir parar atrás das grades. Quem estava por perto do senhor, no restaurante, enquanto preparava a comida?
– Ah, sim, o senhor Chamber! – o português exultou. – Ficou ao meu lado, o tempo todo, a recomendar-me quanto deveria colocar no prato. Disse-me que era próximo de dona Miguela e que sabia exatamente aquilo que ela gostava de comer. Ah, fez também questão de pôr o sal. E foi bastante. Disse-me que a senhora espanhola era apaixonada por comida bem salgada.
– O senhor não terá confundido o saleiro com um potinho de arsênico? – perguntou Aroeira ao americano.
Dax moveu-se inquieto na cadeira e defendeu-se:
– Bah, esse português é mais falso que idade de mulher. Ele jamais vai conseguir provar o que disse aqui. Mas, mesmo que tivesse provas, de que valeriam elas? Pelo que sei, até hoje nenhum americano foi condenado num país latino-americano. Não daria certo pra vocês.
– Por que não daria certo? – perguntei.
– Porque pararíamos de comprar bananas e a economia de vocês afundaria em uma semana.
– O duro é que esse gringo safado tem razão – suspirou Aroeira. – Se prendo ele, tomo um inquérito disciplinar pelos cornos.
– Mas então o senhor não vai prender ninguém pela morte de Miguela de Alcazar? – indignei-me. – Esses sujeitos vêm pra cá, cometem um múltiplo e bárbaro assassinato e não lhes acontece nada!
– Como não acontece nada? – perguntou o policial, ofendido.
E deu então o mais poderoso dos seus muito murros naquela pobre mesa:
– Todo mundo em cana! Todos para o xilindró! Assassinos!
Como aquela situação estivesse mais parecendo uma cena de manicômio, eu ainda tentei reagir:
– Mas, doutor Aroeira, eu e o português não participamos do crime!
O delegado olhou-me fixamente e sentenciou: – Esses bandidos estrangeiros não poderiam ter cometido esse crime sem a ajuda de cúmplices locais!
66 – Fecham-se as cortinas
À meia-noite, chegamos à penitenciária da Papuda. Lá, fomos enfiados os oito – os seis escritores, Batota e eu – em um enorme xadrez onde já se encontravam os três assassinos, os seis assaltantes e os nove sequestradores presos naquele dia.
Antes da uma da madrugada, começaram a pipocar telefonemas na casa do secretário de Segurança Pública de Brasília. Eram vários embaixadores credenciados junto ao governo brasileiro, indignados, gritando cada um em um idioma diferente.
Homem público sério como lápide, o secretário da Segurança Pública resistiu o máximo que pode. Acho que quase meia hora.
Por volta das duas da madrugada todos os escritores estrangeiros estavam de volta ao Imperial Hotel da República. Lá, arrumaram suas malas e, na companhia da defunta Miguela de Alcazar, embarcaram pouco depois em um jatinho fretado com destino a São Paulo, de onde voariam depois para seus países de origem.
Quanto a Batota e eu, bem, nós dois ficamos em cana por uma semana inteirinha, isolados em duas pequenas selas, submetidos a uma dieta que nos ajudou bastante na redução do peso.
No dia seguinte ao da misteriosa morte de Miguela de Alcazar, o delegado Jerônimo Aroeira e seus agentes, aqueles sujeitos mal-encarados que haviam roubado as garrafinhas de bebida do hotel, foram até a sede do meu jornal e lá, em breve conversação, recomendaram ao Medalhão que nada publicasse sobre o tal Congresso porque, de fato, na verdade, ele não havia se realizado.
Manoel Joaquim Batota recebeu visita semelhante dez dias depois, ao reassumir a gerência do Imperial Hotel da República. Talvez por ser ele estrangeiro, os policiais foram ainda mais enfáticos na sua admoestação. Fizeram saber ao lusitano que ele, se abrisse o bico sobre o tal Congresso, acabaria comendo capim pela raiz. Aliás, quando me informou dessa ameaça, disse-me o bom Batota:
– Os gajos disseram que me iam lerpar…
– O significa essa palavra horrorosa?
– Lerpar é o mesmo que arranjar acomodação no Hotel dos Pés Juntos para ser tratado pelo doutor Torrão.
Foi por isso que não cheguei a escrever uma só palavra da tal reportagem que iria me tornar planetariamente famoso.
Aquele tempo, final dos anos setenta, foi bastante ruim para a imprensa brasileira. Mas agora, quase meio século depois, resolvi reviver aqueles dias. Liguei um velho gravador e escutei as muitas fitas gravadas na época. Reli também todas as minhas anotações, E, por fim, me entreguei ao teclado do computador.
Foi assim, senhoras e senhores, que nasceu este livro, que é o meu testemunho sobre o Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais, infelizmente não realizado em Brasília.
Pena que não existam fotos para provar a autenticidade da minha história. Lembram que o fotógrafo do jornal só iria ao hotel no dia seguinte?
Pois bem, visitei ainda os arquivos da Polícia, mas não encontrei lá nenhum laudo sobre a morte de uma mulher chamada Miguela de Alcazar. E, obviamente, não localizei as fotografias tiradas pelo lambe-lambe da Perícia.
Pois bem, o Batota já não está mais por aqui.
Dias atrás, visitei o Imperial Hotel da República para saber notícias dele.
– O senhor Batota reformou-se – disse-me o atual gerente do hotel, também lusitano, de Quinta de Comichão, na Guarda.
– Reformou-se? – me espantei. – Como assim? O Batota parou de meter medo nas pessoas com aquele seu gigantesco canivete?
– Sim, aposentou o canivete. Não precisa dele em Portugal. Mas reformar-se, em Portugal, é o mesmo que aposentar-se por aqui. O senhor Batota voltou para a terrinha, mais especificamente para a aldeia de San Tiago de Piães, em Cinfães, e por lá, como um “brasileiro” de Eça de Queiroz, cultiva rosas numa casinha erguida no alto de um outeiro.
Se agora eu divulgo este meu relato é porque, como dizia o falecido Medalhão, a verdade, como defunto afogado, sempre acaba vindo à tona.
Já a morte de dona Miguela, defunta no seco, nunca pode ser esclarecida.
FIM
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).