RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Troquei a arma por uma máquina de costura

por Rui Araújo // Março 22, 2024


Categoria: Exame

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NOTA: Esta reportagem contém imagens que podem chocar o público mais sensível.


Um país a saque…
(Foto: Rui Araújo)

Bria.

República Centro-Africana.

É o maior campo de deslocados do país.

É o PK3 – o quilómetro 3, para quem sai da cidade. Mesmo os lugares onde a vida não presta têm nome.

O PK3 surgiu do nada há quatro anos.

90.000 pessoas refugiaram-se nesta terra desolada. (Foto: Rui Araújo)

E, hoje, vivem, aqui, mais de 90.000 pessoas – incluindo muitas crianças.
Nações Unidas e organizações não governamentais fazem o que podem… Não chega!

São cristãos (a maioria da população do país), que com as abominações da guerra procuraram refúgio neste monte desolado.
O conflito começou em finais de 2012.
Uma crise interna seguida de um golpe de Estado regional transformou-se rapidamente numa guerra civil (étnica e religiosa), que opõe, hoje, as milícias animistas e cristãs anti-Balaka aos rebeldes muçulmanos da Seleka.
O dispositivo civil e militar da ONU – a MINUSCA –  tenta preservar o essencial: as vidas. Da população e dos meninos soldados…
Os grupos armados recrutaram e raptaram milhares de crianças.

MAHAMAT DAMINE
16 ANOS – EX-GUERRILHEIRO
Entrei para o grupo armado FPRC por causa dos acontecimentos. Eles massacraram a minha família. Os meus pais! Via muitos velhos a sofrer. É por isso que entrei para o grupo armado. Queria salvar as pessoas que estavam a sofrer…
Tinhas 11 anos…
Sim, tinha 11 anos.
— E ficaste cinco anos…
— Eu fiquei cinco anos no grupo armado FPRC…
— A guerra é o quê para ti?
— A guerra? Brincamos muitas vezes à guerra, mas a guerra não é boa. O que eu constatei na guerra… Vi muitos homens morrer. Mulheres. Crianças… A guerra não é boa.
— Mataste também?
— Sim, também matei.
— Sabes quantos?
— Sim, eu sei.
— Quantos?
— O máximo foi 11. 
(RI-SE)

BAKITA OUSMA
12 ANOS – EX-GUERRILHEIRA
Há 4 anos foste para o FPRC. Porquê?
— Foi porque mataram o meu pai e a minha mãe que eu fui para os grupos armados.
— E ficaste lá muito tempo?
— Fiquei lá só um ano.
— Eras cozinheira?
— Sim, era.
— E como era a vida lá?
— Estava na selva.
— E que mais?
— Já não tinha família…
— E depois, um dia foste-te embora… Porquê?
— Sim, já não tinha nada…
— E como é que te foste embora? Fugiste? Foste embora como?
— Fugi para a selva.
— E, hoje, és livre com a ajuda de Esperança e da MINUSCA. Tens um sonho? Qual é?
— Quero ser comerciante. Quero fazer negócios…

Jovem guerrilheiro no interior da RCA. (Foto: Rui Araújo)

11 mil crianças foram libertadas pelos grupos armados nos últimos 5 anos.

Em 2019 o número de meninos soldados é uma incógnita.

Hoje, é dia de mercado e dia do Senhor.

6 e 50 da manhã.

É a hora da missa. Redentora ou nem por isso, pouco importa.

Cada um traz o seu banco ou cadeira. A igreja da paróquia de São Luís de Bria fica ali ao lado.

Alguns, poucos, aparecem de traje domingueiro…

O que conta é a santa oração… a partilha da desgraça e da angústia, mas sobretudo da esperança.  

A celebração é efectuada dentro e fora do barracão. É o que há para tantas almas…

O calor é tanto que nem se presta atenção. Ninguém arreda pé. Penitência e fé andam de mãos dadas…

Os pobres dão uma nota ou uma moeda. Os que podem.

A seguir, é o momento crucial da comunhão. Da salvação sem glória…

Fim da liturgia. E princípio das imprecações de boa-fé…

BRUNO KONGBO

ABADE DE BRIA

Foi a fuga da guerra… Foi a guerra que os levou a fugir para se refugiarem, aqui, neste lugar do PK3. Se olhar para eles, se os vir, pode sentir o que estão a viver nos confins do seu  corpo e nos meandros da sua alma e do seu espírito também. Estas crianças terão um futuro se esta guerra terminar. E como a guerra está a acabar, creio que estas crianças terão um futuro. Mas no preciso momento em que lhe falo, nem as escolas funcionam sequer… As crianças são numerosas neste campo e pode, por exemplo, encontrar 400 alunos numa única sala de aulas. Quatrocentos alunos. Como… como acompanhar essas crianças? Não há água potável. Nem centro de saúde. A comida. A escola. Tudo… tudo deixou de funcionar. Olhe… Olhe…. Olhe…

As tréguas com Deus raramente deixam um sabor tão amargo na boca.

No PK3 não há água potável, não há luz, não há esgotos, não há…

Comida, é só às vezes…

Fonte: PNUD

É impossível arrepiar caminho sem olhar primeiro.

Imaginar a desgraça é pior do que vê-la… quem o diria…

A população da RCA – um dos países mais ricos de África – vive na miséria. (Foto: Rui Araújo)

Calcorreamos as veredas.

Olhamos.

A banca do merceeiro.

O carregador de telemóveis…

A latrina…

A roupa a secar… e o céu, que, aqui, fica longe.

Na penumbra um homem tenta esconjurar o sofrimento ou perdeu a razão. Uma vida amortalhada… mais uma.

Um recém-nascido deixa correr as horas, que, aqui, já deixaram de medir…  

Fora do campo PK3, mesmo do outro lado do caminho, está o atelier de costura dos ex-combatentes anti-Balaka – o nome que dão às milícias cristãs. Anti-Balaka quer dizer em sangho, uma das duas línguas oficiais do país, “anti-catana” ou “anti-balas de AK-47”.

Com a ajuda das Nações Unidas, que lhes deu a formação e as máquinas, desafiaram o destino e ganharam.

As blusas, as camisas, as cuecas e os fatos são feitos à medida do freguês.

Preços: as camisas simples ficam a 3.000 francos (4,50 euros) e os boubous (é o nome que dão a uns fatos) custam 15 mil francos (23,00 euros)

A clientela é, essencialmente, feminina.

ANDRIENNE POUMALE

CLIENTE

— Isto, aqui, custa 5.000 francos CFA (7,69 euros).

— 5.000? (7,69 euros)

— Sim. Estás a ver a diferença, não estás?

— Muito bonita…

— Sim.

Obrigado.

— Obrigada. Muito obrigada. O teu nome qual é? O seu nome…

— Rui.

— Eu sou a Andrienne Poumale.

Metemos conversa com os quatro ex-guerrilheiros.

Outras tantas histórias de sofrimento, esforço incansável e de esperança…

ZACHARIE MBIAPOU

EX-GUERRILHEIRO E COSTUREIRO

— Eu penso que… perdi tudo o que tinha. Agora, procuro recuperar esses bens. A situação ainda não assentou, mas pouco a pouco acabará por assentar…

Aqui há gente que não consegue pedir esmola e recusa o absurdo.

Escutamos, pasmados ou envergonhados, os desabafos e as reflexões de uns e outros…

PIERROT MANDATA

EX-GUERRILHEIRO E COSTUREIRO

— E qual é o balanço que faz, hoje, desses anos de guerra? — indago.

— O balanço é negativo… O balanço é negativo para os dois lados porque andámos inutilmente a matar-nos uns aos outros e o problema nem era nosso. Isto é um problema do governo. Depois, com o tempo, percebemos que andamos a matar-nos uns aos outros inutilmente. Somos irmãos de uma mesma Nação… Foi a política que nos separou para provocar este conflito…

— Não é um problema de religião que está na sua origem?

— Não é um problema de religião nem um problema de etnias… É a má governação que desencadeou tudo isto. E propagou-se…

— Há bons nesta história ou são todos maus? Os Seleka como os Balaka…

— Os Seleka como os Balaka… ambos são maus. Os dois lados são maus…

As guerras são todas sujas. E nem os mais devotos ou, tão simplesmente, bem intencionados escapam à levada do fanatismo e da morte…

HERMAN MANDAZO

EX-GUERRILHEIRO E COSTUREIRO

— Tinha 15 anos e fui capturado pelos do Exército de Resistência do Senhor (LRA). Levaram-me para nos formarem. Deram-me a arma para ir capturar outra criança para ser formada. Éramos muitos. Havia muitas crianças. Lá… podias até encontrar crianças do zero aos 18 anos se fosses lá. Podias encontrá-las… Nós íamos, não sei se posso dizer…

— E a guerra? Como era a guerra?

— Sim. Fomos para a guerra para apanhar… Se queres entrar numa vila, podes dar de caras com os militares ou sei lá o quê. Fazemos a guerra para apanhar pessoas. É preciso ficar com o dinheiro e matar… E apanhar mais pessoas, levá-las para a selva para serem formadas pelos rebeldes.

— Viste a morte de perto?

— Eu vi.

— E qual é a sensação?

— Dói-me.

— Mataste pessoas?

— Sim. Matei pessoas.

— Contaste quantas foram?

— Eu não contei. O que fiz pertence ao passado. Eu não posso contar isso.

— Agora estou orgulhoso de mim porque deixei a arma e arranjei uma máquina de costura para trabalhar. Se tiver algo para comer e para o resto, fico contente.

Os remorsos… Os abalos morais não resolvem nada, mas não deixam de ser penosos…

Há grupos mistos de ex-combatentes que estão a ser formados, aqui, pelas Nações Unidas, mas a situação em Bria continua instável para não dizer caótica…

EVARISTE GONGA

EX-GUERRILHEIRO E COSTUREIRO

— O mais difícil é o problema da paz. Dizem-nos, aqui, que tudo acabou, mas lá fora a guerra continua… Se sairmos daqui para irmos para lá, há outras coisas que sucedem lá. Mas nós, aqui, não temos força para fazer algo…

— Com os Seleka…

— Sim.

— Não se pode sair da cidade livremente…

— Pois.

Os grupos armados controlam 80% do território.

As próprias Forças Armadas da RCA reconhecem que o Estado só manda em 20% do país.
Documento classificado das FACA (Fonte: Arquivo de Rui Araújo)

Bria está nas mãos dos rebeldes também.

As milícias cristãs Anti-Balaka controlam estas duas áreas  – a da esquerda é o PK3.

É uma cidade sem presença do Estado: não há Forças Armadas (as FACA), não há Polícia, não há Gendarmerie.

Guerrilheiros cristãos anti-Balaka. (Foto: Serviço Secreto /Arquivo de Rui Araújo)

O grupos armados muçulmanos – ex-Seleka, palavra que significa em sangho “Aliança” – ocupam outros bairros.

O RPRC (etnia Goula) domina Bornou.

A UPC Gobolou, à direita.

O FPRC – o maior grupo armado do país – faz o que quer na zona central do burgo.

Há ainda umas dezenas de mercenários russos na cidade.

Acampamento de mercenários do grupo russo Wagner na RCA. (Foto: Serviço Secreto/Arquivo de Rui Araújo)

Têm um hospital e um tradutor. Fica perto da prefeitura.

Aldeão desarmado abatido por mercenários do grupo russo Wagner em Ouaka, na RCA. (Foto: Movimento de guerrilha/Arquivo de Rui Araújo)

Segundo um serviço de informações ocidental, as instalações serviriam também de cobertura para a espionagem apesar de haver diariamente filas de espera com dezenas de doentes.

Mercenário do grupo Wagner abatido por guerrilheiros mal armados entre Galougou-Dimako, no eixo de Boyo. Os mortos e os feridos de Putin foram posteriormente recuperados por um helicóptero, em Ouaka. (Foto: Movimento de guerrilha/Arquivo de Rui Araújo)

Os mercenários russos (do grupo Wagner e não só) andam a passear de espingarda automática AK 47 nas ruas de Bria, mas também os há noutras cidades como Bambari.

Wagner – um grupo russo de mercenários activo também em vários países de África. (Foto: D.R.)

Bria é o retrato de um país . O facto de não haver  Estado é uma explicação…

As casas dos cristãos ficaram em ruínas.

Os camponeses desertaram o lugar, reduzido, agora, a um monte de ruínas e terra devoluta.

ERIC NGUERENDJI

CAMPONÊS

— Agora, a casa ardeu com as rebeliões. É por isso que nós… que nós fugimos e estamos a acampar na igreja.

Nós, os camponeses, sofremos muito. Não há nada para comer. Ficámos sem tecto… Não há… mesmo a água para beber é insuficiente. Olhe para isto! Temos de beber a água do charco. As crianças têm sofrido por causa disso. Não há direito.

A perversão poupa as aparências…

Os grupos armados controlam 12 das 16 prefeituras do país.

O FPRC – ao contrário das milícias cristãs – tem cadeia de comando, organização e armamento.

É imperativo confrontar o responsável militar do principal grupo armado da República Centro-Africana com as acusações e as dúvidas.

Pelo menos… tentar.

Bria.

Casa do general Ali Ousta.

É o chefe de Estado-Maior do FPRC (um movimento que defende a partição do país).

Nas traseiras, a criada prepara o jantar.

Na parte da frente, dois rapazes garantem a segurança de AK 47.

GENERAL ALI OUSTA

CHEFE DE ESTADO-MAIOR DO FPRC

— No Norte não há estradas. Não há escolas. Não há hospitais. Não há electricidade. O governo esqueceu-se do Norte desde a independência…

— Acha que o papel da Comunidade Internacional, da MINUSCA, é positivo?

— A chegada das forças internacionais e da MINUSCA está rodeada de mentiras. Em vez de protegerem o país, vieram lutar contra os grupos armados. (Não era essa a sua missão).

— São os recursos deste país? Um país muito rico: diamantes, ouro, urânio, etc. São os recursos que constituem, hoje, a principal causa do conflito?

— O que penso é que as pessoas mandadas para cá para nos protegerem andam a roubar as riquezas do país…

— No estrangeiro, quando se fala nos grupos armados, fala-se frequentemente de crime, de extorsão, de raptos, roubo, violações. Fala-se de coisas verdadeiramente sombrias… É tudo mentira?

— Senhor jornalista, tudo isso são mentiras. Quem diz isso são as pessoas que não gostam dos grupos armados e fazem relatório falsos. Penso que as forças internacionais têm os meios de que precisam para cumprir a sua missão, mas estão a ver alguém a ser abatido ao lado deles e não mexem uma palha. É a isso que chamam proteger a população?

— Tem alguma opinião sobre Portugal e os militares portugueses que estão na República Centro-Africana?

— Ouvimos dizer que os portugueses andaram aos tiros em Bambari. Se os portugueses integram as forças da MINUSCA devem proteger a população e ter em linha de conta os direitos dos grupos armados. Os portugueses não devem aparecer e começar aos tiros contra os grupos armados. Se é o Estado centro-africano que os leva a combater os grupos armados, devem cingir-se ao seu dever que é proteger a população e não combater os grupos armados.

— Havia a presença da UPC na cidade com barreiras. Foi uma das razões, havia armas na cidade, em Bambari…

— Não. Não devem usar a força! Devem dialogar.

A MINUSCA considera Ali Ousta um interlocutor válido.

Estrutura do 2º principal grupo de guerrilha – ALI OUSTA, o meu interlocutor, é o chefe militar.
(Fonte: Documento classificado da ONU/Arquivo de Rui Araújo)

Destino: Ngoubi. No eixo Bria – Ippy. 96 quilómetros de picada ocre. E de torreira…

Direcção sudoeste.

A patrulha da MINUSCA, hoje, é gabonesa: 14 soldados paraquedistas chefiados por uma jovem tenente.

O FPRC tem dois postos montados no nosso troço.

Primeiro encontro inesperado: um casal que vai procurar diamantes.

E mais ruínas. As memórias emparedadas desapareceram. Ficaram os calhaus e as cinzas, que sobraram da voragem do fogo e da violência…

Segundo encontro: o nosso garimpeiro e a mulher desistiram dos diamantes, aparentemente.

A mota não anda. Tem um pneu furado.

PK7.

Primeira barreira do grupo armado FPRC.

Metemos conversa com quem manda… com o dono das circunstâncias.

HASSAN RAHAMA

CHEFE DE POSTO DO FPRC NO PK7

— Nós não temos dinheiro… Não temos salário. Como é que comemos? É isso mesmo. É por isso que as bicicletas que passam e os veículos que passam, as motos que passam, até mesmo um boi, há bois que passam por aqui, têm de pagar. Pagar uns tostões para nós vivermos. É só para podermos comer…

— E chega? Esse dinheiro é suficiente?

— É isso. É só para vivermos… — acrescenta o guerrilheiro ao lado.

Para viverem? — pergunto-lhe.

— Para vivermos como tropa. Nós somos muitos. 25 ou 30 pessoas para garantir a segurança… E não há nada para comer. O governo abandonou-nos. Por bicicleta, pedimos 500 francos. 500 francos por barreira. O veículo 1.000 francos ou o… depende. É apenas em função da carga…

Há rebeldes não querem aparecer, mas não sancionamos a  ordem.

Andamos para diante.

A coluna transporta remédios e alimentos para a aldeia de Ngoubi.

O posto de saúde é isto.

Seis salas esconsas, que parecem mais abandonadas do que outra coisa.

Damos com uma moto.

Duas carteiras.

Acolá, um frigorífico.

Ali, camas, poucas.

Doenças e fome… o cenário é, desgraçadamente, o mesmo nas cidades e neste lugar remoto.

ALAIN DEFARANDJI

MÉDICO

— É raro encontrar-se algo para comer. E se há comida é muito cara… porque em todos os sítios há barreiras. As pessoas não podem ir para os campos. Há a guerra que continua. Há fome… Há muitas infecções… A SIDA propaga-se. As mulheres, as raparigas, como não têm dinheiro nem trabalho entregam-se sem protecção, sem preservativo, para arranjarem dinheiro. Isso também é o preço da pobreza.

Os militares do Sri Lanka iniciam a operação de propaganda.

A comida oferecida a cada criança é um iogurte tépido e dois rebuçados.

A fila imposta é cruciante.

As fotografias são para recordação póstuma da entrega da esmola ….

NANDIKA SALGADO

FORÇA AÉREA DO SRI LANKA – MINUSCA

— Hoje, foi preparada uma doação de medicamentos para os pobres desta aldeia. Por outro lado, para além da doação de remédios arranjou-se uma doação de comida. Muito obrigado. E… Eu sou o Salgado do Sri Lanka. Sou o coronel Salgado e penso… tenho a certeza… sou de origem portuguesa… 1600… século 16. Portanto, sou… Obrigado.

Mudança de cenário.

Escolhemos o eixo Boungou por cálculo.

Uma courela comunitária cheia de camponesas.

Alegria e generosidade. E coragem.

Maravilhosas mulheres…

Mais adiante, um rio sem ponte, com borboletas deslumbrantes e uma jangada para travessias baratas.

Boungou.                              

A aldeia da reconciliação.

Boungou.

1.898 habitantes.

A escola para os 248 miúdos está a ser edificada com a ajuda da MINUSCA. Daqui a semanas estará pronta. Terá capacidade para seis turmas. O estabelecimento mais próximo fica a 28 longos quilómetros.

Cristãos e os muçulmanos (de 10 etnias) vivem, aqui, em paz. E amparam-se uns aos outros.

Imagens insólitas.

Um rapaz dá largas à imaginação. Uma jante de bicicleta e um pátio árido: não precisa de mais nada.

Duas raparigas brincam com afinco. Ignoro o nome do jogo das pedras. E não pergunto. Perguntar é revelar-me.

O miúdo volta.        

O caminho que ainda lhe falta percorrer pode ser longo e árduo, mas valerá a pena. Ele não tem passado. Só futuro…

Comprido e penoso caminho…

Paramos em Ngoungoua, por acaso.

Este aldeão aqui recusou pagar 200 francos para poder passar a barreira dos rebeldes do FPRC e levou uma sova.

Está a morrer por 30 cêntimos de euro, que é o que cobram a um peão.

Apesar de tudo está com sorte. A coluna tem ambulância. E o nosso destino é Bria, onde há hospital.

A extorsão ou o jugo perverso nem sempre se traduz em morte….

Poucos recusam pagar!

Os devaneios são inúteis. É como os ressentimentos.

A única coisa que conta para os grupos armados – já que não têm ideologia ou programa político – é simplesmente o lucro imediato (sonante e a qualquer preço).

A demissão das consciências não poupou as Nações Unidas…

Aquartelamento da MINUSCA (ONU) em Bria. (Foto: Rui Araújo)

Em Nova Iorque, o Conselho de Segurança da ONU mudou o mandato da missão multinacional MINUSCA.

O parágrafo sobre a “exploração ilícita e o tráfico de recursos naturais” da resolução votada em 2017, desapareceu, entretanto, da resolução adoptada a 13 de Dezembro de 2018.

É a luz verde para a rapina organizada do país.

Doravante, a MINUSCA deixou de ter legitimidade ou competência para atacar as redes de traficantes e impedir o rapinanço do ouro, dos diamantes… e de todos os outros recursos naturais deste país…

No ano passado, pelo menos 2 milhões de meio de habitantes (mais de metade da população) precisaram de ajuda humanitária.

PHILIPPE PAIGNON

COMERCIANTE

— Não queremos guerra. A guerra não resolve nada. A guerra não resolve nada. Queremos que a paz dure 100 anos. 100 anos. Queremos 100 anos de paz na República Centro-Africana.

— Obrigado.

100 anos! — repete o homem, como quem não quer a coisa.

Em Bria é mais fácil dar com as boticas de cheché do comércio de diamantes do que com uma bomba de gasolina. Não há nenhuma…

Bomba de gasolina improvisada na cidade de Bria. (Foto: Rui Araújo)

O combustível é vendido nas bancas, na rua.

Um litro de gasolina chega a custar 1.500 francos CFA. (2,30 euros)

Mercado de Bria.

As poucas comerciantes que teimam em aqui ficar vegetam…

Os preços são relativamente acessíveis, mas não há dinheiro.

Óleo de palma : 1.000 francos o litro. (1,52 euros)

Sabão: 100 francos os pequenos (0,15 euros) e 200 (0,30 euros), os grandes.

Uma lata de dougá, que é o nome que cá dão ao pimento moído: 2.000 francos. (3,04 euros)

Os miúdos…

Estes andaram na guerra com os grupos armados.

Uns, foram recrutados.

Outros, raptados.

Tinham 12, 9 ou 8 anos de idade.

Foram combatentes, informadores, mensageiros, guardas de barreiras, cozinheiros ou escravas sexuais.

A MINUSCA e a associação não-governamental Esperança estão a promover a reinserção…

Escutar para crer…

KOYO HAROUNE

17 ANOS – EX-GUERRILHEIRO

— Tinhas 9 anos quando foste para o FPRC. Porquê?

— Porque os rebeldes (cristãos) que se chamam anti-Balaka mataram o meu irmão mais velho.

— Os cristãos…

— Sim.

— E ele tinha 36 anos…

— 36 anos.

— E tu foste para o FPRC para fazer o quê?

— Porque os anti-Balaka mataram o meu irmão mais velho. Foi por isso que fui para o grupo armado.

— Querias vingar-te?

— Sim. Eu queria vingar-me.

— E foste soldado com 9 anos de idade…

— Com 9 anos de idade.

— E o que fazias lá?

— No grupo armado? Eu só matava as pessoas. Ia para o terreno…

— E viste muitos mortos?  

— (RI-SE) Sim. Eu matei muita gente.

— Muita gente?

— Muita.

— Muitas pessoas são quantas?

— Eu não conto… Eu não conto.

— E matar. É o quê?

— Matar? Eu mato com armas.

— AK-47. Kalashnikov…

— Kalashnikov. Com foguetes RPG…

— E o que se sente a primeira vez que se mata alguém?

— O quê?

— O que sentiste a primeira vez?

— Não me fez nada.

— Nem depois?

— Nada.

— E vingaste-te?

— Sim, é verdade. Vinguei-me!

As crianças eram sistematicamente manipuladas pelos chefes dos grupos armados.

Tácticas usadas: incitamento do ódio religioso e racial e encorajamento da vingança.

MUBARAK CONTRAO

13 ANOS – EX-GUERRILHEIRO

— Mubarak Contrao. 13 anos. Tinhas 9 anos quando foste para o FPRC. Como é que as coisas correram?

— Correram bem. Quando eu fui para lá… As coisas correram bem. Vivi quatro anos no grupo armado. É assim… Os rebeldes mataram o meu próprio irmão. É por isso que eu quis vingar-me.

— E conseguiste vingá-lo?

— Não consegui vingá-lo.

— E como era a vida lá durante esses 4 anos?

— Nesses quatro anos, a vida foi dura. Eu não podia ficar no grupo armado. É assim. Saí.

— O que era o mais díficil lá?

— Lá, nunca se parava. Eu não aguentava. Ninguém era bom. Não dormia. Eu não podia…

— E… a guerra. Era como?

— A guerra é violenta. Eu não suportava. É por essa razão que me fui embora.

— E a tua guerra lá era o quê?

— A guerra contra os anti-Balaka (cristãos). Sofremos um ataque muito complicado. Fui ferido na mão. Foi por isso que preferi sair do grupo armado. Não aguentava…

—Há bons e maus?

— Há maus.

— Só maus?

— … (ACENA)

— E… há alguma coisa que lamentas? Há algo que tenhas feito e, hoje, lamentas? Hoje, não o fazia…

— Algo que tenha feito lá? Eu não fiz nada lá… A única coisa foi eu matar uma pessoa… Lamento.

No campo ao lado é o princípio de outro jogo.

Outro desafio para ganhar…

Apesar da presença no país de uns 11 mil e tal homens da MINUSCA e da assinatura de 8 acordos de paz a situação permanece instável.

5 de Janeiro de 2019. 

A Força de Reacção Rápida portuguesa é projectada para Bambari.

Os rebeldes da UPC controlam a cidade…

Montaram barricadas para impedir a MINUSCA de patrulhar…

Passados poucos dias, 140 paraquedistas portugueses e duas companhias nepalesas do NHRPB expulsam a UPC do quartel-general de Adji, um bairro muçulmano de Bambari.

Os combates, que chegam a Bokolobo, uma vila a 60 quilómetros da segunda cidade do país, vão provocar dezenas de mortos…


NOTA:

Reportagem emitida originalmente na TVI, em 3 de Junho de 2019 [VER AQUI].

Nota: Esta reportagem tem uma segunda parte: “Nome de código BEKPA-II”.


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