O resultado das eleições de 10 de Março não deixou ninguém indiferente. O grande vencedor das eleições foi o Chega, que, para além de ter passado de 12 para 50 mandatos, contribuiu para uma surpreendente redução da abstenção. Pessoas que nunca tinham sequer votado, ou que não votavam há muito, sentiram-se mobilizadas pelo partido de André Ventura. Nestes casos, contam-se muitos jovens, que, saturados com a situação do país, depositaram no Chega a sua fé numa mudança.
Agora, o futuro afigura-se imprevisível, mas se há efeito que devia brotar destes resultados eleitorais, é este: o travar de um discurso que insiste numa visão maniqueísta e simplista, onde os eleitores do Chega são perigosos fascistas, reacionários, ou estúpidos. No contexto actual, a ideia de que quase 1.200.000 portugueses votaram no Chega porque são antidemocráticos é demasiado curta, preguiçosa, e ignora a heterogeneidade deste universo de votantes.
Por vezes, vemos também uma postura elitista e sobranceira que pretende diminuir os eleitores do Chega, e a sua inteligência, apelidando-os de ignorantes e boçais. Os arautos da inclusão terão, afinal, algum preconceito para com as camadas menos letradas da população?
Muitos consideram ingénuo acreditar que o Chega será a mudança que diz ser para o país, e de facto, até agora, temos poucos motivos para crer que o partido de André Ventura terá qualidades superiores aos partidos que nos têm governado. Contudo, aplicando-se o mesmo raciocínio, não deveria chamar-se com o mesmo fervor de incautos aos milhões de portugueses que continuam a votar no Partido Socialista [PS], depois de anos a fio de fraca governação?
É até muito mais lógico confiar o voto a quem ainda não tem “cadastro”, do que a um partido, ou a um “bloco central” que, de forma reiterada, já deu provas de que não o merece. E, embora tenha perdido muitos dos votos obtidos em 2022 – cerca de meio milhão -, o PS nem sequer foi fortemente penalizado nestas eleições. A sua desvantagem em relação à Aliança Democrática foi tão exígua que, se o PSD não tivesse concorrido em coligação com o CDS-PP, provavelmente Pedro Nuno Santos seria dado como vencedor – pelo menos, pondo de parte o assinalável crescimento da direita. Ora, como é que os eleitores socialistas podem merecer a complacência daqueles que condenam quem dá um voto de confiança a quem nunca governou?
Quase duas semanas depois das eleições, há alguns efeitos visíveis. Há quem se mostre agora mais disposto a tentar compreender o ponto de vista de quem pensa, e vota, num sentido diferente, e a dialogar e a criar pontes. Outros, infelizmente, parecem agarrar-se com o mesmo – ou ainda mais – afinco a uma visão dicotómica do mundo, em que de um lado estão os bons, e do outro os maus.
Para estes últimos, não deveria ser difícil perceber os motivos que levaram ao crescimento do Chega, que são mais que muitos, e até legítimos, por muito que lhes seja confortável enterrar a cabeça na sua ideologia e recusarem-se a ver óbvio. É evidente que os eleitores do Chega não são criaturas temíveis e medonhas, que devemos enxotar a todo o custo. Muitos, talvez a maior parte, são pessoas normais, insatisfeitas (e quem pode estar satisfeito?), que viram neste partido uma possibilidade de inversão de rumo. Se viram bem, é discutível. Mas, então, que se discuta, e se debata, com mais abertura e respeito mútuos, e menos chavões e epítetos ocos.
Também é pertinente reflectir sobre a vitória do Chega dada pelos emigrantes, e que nada tem de paradoxal, incoerente ou hipócrita, sabendo nós que estes portugueses foram obrigados a emigrar, precisamente, devido às políticas do centrão. É, pois, natural que tenham batido com o pé, votando no partido que se diz antissistema. Além disso, a forma lamentável como o Partido Socialista tem (des)tratado os emigrantes teria de ter consequências. O contrário é que seria de estranhar.
Finalmente, se queremos combater esta cultura de trincheiras, é preciso reprovar a atitude antidemocrática e deplorável de um outro vencedor destas eleições: o Livre. Rui Tavares, arrolando os argumentos mais mirabolantes, tentou fazer tábula rasa do voto de mais de um milhão de portugueses, conspurcando o partido de André Ventura como se este não contasse para nada. Mostrou a essência do seu partido: um lobo em pele de cordeiro, porventura o mais perigoso à esquerda, de tão cínico e dissimulado.
Sempre debitando palavras vãs e evocando a defesa da democracia, esta esquerda dita “moderada”, “fresca” e “cosmopolita”, revelou-se o seu oposto. Engendrando uma bizarra e sinistra teoria ao melhor estilo democrático, numa espécie de “vamos a eleições até que a esquerda consiga maioria para governar”, Rui Tavares comprovou que de democrático, tem pouco, e de divisivo, tem muito.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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