CARTAS DO VELHO DO RESTELO

O curioso percurso de Fábio Fausto…

brown paper and black pen

minuto/s restantes


O povo era quem mais ordenava, o povo era sábio, mas as coisas mudaram, e não poucos saíram da toca: afinal, o povo é medíocre, provinciano, boçal e estúpido. Em certas cabeças bem-pensantes, dizer mal do povo já não parece mal. Pelo contrário: parece bem. É chique. É cosmopolita. Mostra superioridade moral, intelectual e civilizacional. Há até nesses bem-pensantes quem veja os novos pobres como entes diferentes dos pobres de outrora: eles são, dizem-nos, a expressão máxima da mediocridade. Raras vezes, a aporofobia terá ido tão longe.

Valerá a pena dizer que esse discurso só reforça o que alegadamente querem combater?

Bem, estou aqui para falar de Fábio Fausto.

grayscale photo of man with shop bags walking past beggar siting on sidewalk

Fábio Fausto começou a carreira a fazer piadas sobre gajas, mamas ou falta delas, louras (que eram sempre burras), homossexuais, pobres e racializados (na época, a nomenclatura era outra). Havia quem o considerasse engraçado, havia quem o considerasse vulgar, mas Fábio Fausto tinha êxito comercial.

Com os ventos do tempo a mudar, Fábio Fausto metamorfoseou-se num racista e machista em desconstrução. Hoje, dá prédicas que recebem muitos gostos e aplausos sobre os pensamentos malsãos dos homens e da sociedade, sobre as categorias mentais dos homens (que dividem as mulheres entre «putas» e «santas», afirma), e — aspecto mais irritante — gosta de policiar e moralizar os outros por coisas menos graves do que ele repetidamente fazia. A sua redenção de faceto boçal machizóide fez, qual Hulk rasgando a camisola, emergir um pregador feminista. A essa conversão, juntou-se outra: depois de muito descolonizar o pensamento, renasceu como anti-racista com a cartilha hodierna.

Com a pletora de informação que tomba a toda a hora, se o que aconteceu há duas semanas aconteceu «há muito tempo», o que aconteceu há bastantes anos… não aconteceu, de modo que o Fábio Fausto actual não é confrontado com o Fábio Fausto pretérito quando faz o papel de inquisidor.

A propósito de Fábio Fausto, alguém se lembra das declarações do Anjo Torquemada quando discutia o aborto com Paulo Portas? (O escriba destas linhas é insuspeito de ter simpatia por Paulo Portas e votou «sim» no referendo do aborto.)

Aqui vão as declarações do Anjo Torquemada:

«Não me fale de vida, não tem direito a falar de vida. O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Não tem a mínima ideia sobre o que isso é. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança.»

five children smiling while doing peace hand sign

Além de uma insinuação desprezível sobre a vida sexual de Paulo Portas, o Anjo Torquemada usou o mais estapafúrdio argumento: só quem tinha pelo menos uma filha (e gerada pelo próprio) poderia invocar o argumento do direito à vida.

Quando a máscara dos Anjos Torquemadas cai, o rosto visível costuma assustar.

Voltemos a Fábio Fausto.

O Fábio Fausto de outros tempos ainda mora, porém, na cabeça de alguns (muito poucos, é certo). Dentro dessa minoria que se lembra do pretérito Fábio Fausto, há quem acredite que o pecador viu a luz; há quem veja mero oportunismo e gestão da carreira; e há até quem julgue ter Fábio Fausto mudado por acreditar ser assim que «saca umas gajas» (há quem garanta que, num contexto privado, ele fale assim, mas seja-lhe dado o benefício da dúvida, coisa que ele não dá aos outros).

Talvez, quem sabe?, a resposta esteja em Freud: não odiamos nos outros aquilo que nos é distante, mas o que nos é interiormente próximo. Para o Pai da Psicanálise, o ódio não era o oposto do amor — a indiferença era o oposto do amor, pois ela, ao contrário do ódio e do amor, não tinha associada o vínculo ao objecto amado/odiado. Talvez, quem sabe?, a resposta esteja na síntese de Hermann Hesse: «Se odeia uma pessoa, odeia nela algo que faz parte de si.»

Regressemos a Fábio Fausto, ainda que dele não tenhamos saído. A sua cronologia nas redes sociais é fascinante: na era dos confinamentos, andava muito indignado com a falta de civismo e humanidade, vituperando ajuntamentos e aqueles que não usavam máscara ou não praticavam o devido distanciamento social. Era uma questão de cidadania, dizia, ainda que frequentasse ajuntamentos lúdicos sem máscara. Quando se deu a invasão da Ucrânia, Fábio Fausto pôs a bandeira da Ucrânia. Mais recentemente, pôs a bandeira da Palestina e a bandeira do arco-íris (outra conversão), ainda que na primeira não haja possibilidade de bandeiras da segunda. Para que não restasse um grânulo de dúvida, inscreveu também nas redes sociais que era «antifascista». Pelo meio, tornou-se ainda num grande activista da habitação, dos transgénero e do clima.

Versões prováveis do Fábio Fausto

O que mais impressiona em Fábio Fausto, que não se distingue pela cultura geral, é conseguir apresentar-se como especialista instantâneo de todos os assuntos: epidemiologia, História da Ucrânia, conflito israelo-palestiniano, alterações climáticas, todas as ramificações das questões de género, todas as especificidades do mercado da habitação.

Da minha parte, faço o enorme esforço de dar o benefício da dúvida a Fábio Fausto, mas, com novos ventos a soprar pela Europa (havia quem estranhamente entendesse haver uma singularidade lusa que nos tornaria imunes a tais ventos), se as coisas virarem muito (da minha parte, confesso que a AfD é, desses partidos, o que mais me infunde terror, vejam o que é esse partido e o que propõe para crianças com deficiência), suspeito de que Fábio Fausto não sacrificará tudo para lutar pelos seus mutantes ideais. Não estou a ver Fábio Fausto no Tarrafal. Não, ele não é desses. Se/quando o paradigma mudar, não me admiraria de o ver com a bandeira de Portugal nas redes sociais, a cantar o hino nacional e a exaltar os Descobrimentos, com a inscrição «Deus, Pátria e Família». Dirá então ser um antifascista em desconstrução.

Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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