RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Da Rússia com amor: Os diplomatas expulsos, espiões e os outros que se seguem…

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A invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada a 24 de Fevereiro de 2022, levou a uma vaga de expulsões de diplomatas em vários países — incluindo Portugal. Não foi a primeira vez.

Viagem pela história recente, pelo jornalista Rui Araújo.


O governo português expulsou 10 “funcionários” russos considerados “personæ non gratæ” no passado dia 5 de Abril de 2022. O ministro dos Negócios Estrangeiros, João Cravinho, considerou que foi “a decisão adequada” porquanto desenvolviam actividades “contrárias à segurança nacional” que eram “contraditórias com o seu estatuto diplomático”.

A expulsão de, pelo menos, 394 russos nos países ocidentais desde o início da invasão da Ucrânia, em Fevereiro de 2022,  é sobretudo uma operação concertada dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da União Europeia (UE).

Com efeito, 24 dos 30 Estados membros da OTAN expulsaram agentes secretos russos. Alguns Estados europeus, que não integram a organização (como a Suécia, a Áustria ou a Irlanda), fizeram o mesmo.

A expulsão de diplomatas genuínos e de espiões (permitida, aliás, pelo Artigo 9.º da Convenção de Viena desde 1961) não é inédita, mas esta é quantitativamente a mais importante desde o final da Guerra Fria.

A anterior ocorreu em 2021. A República Checa expulsou 63 diplomatas russos. Os oficiais dos serviços de Informações estão associados a duas explosões num paiol de munições, que fizeram dois mortos.

Em 2018, os EUA e seus parceiros da OTAN expulsaram dezenas de diplomatas e espiões russos depois de Moscovo ter recorrido a substâncias químicas (agentes nervosos) para assassinar o agente duplo, Sergei Skripal, ex-coronel do serviço russo de informações militares GRU, e a sua filha, em Salisbúria (Grã-Bretanha).

Os serviços britânicos associaram este caso ao homicídio, em 2006, do ex-agente do KGB (denominado FSB em 1995), Alexander Litvinenko, que foi assassinado com polónio-210 (radioactivo), em Londres.

Foram, então, expulsos mais de 150 oficiais de Informações em 20 países.

O MNE não divulga a identidade nem a natureza das actividades dos 10 russos expulsos de Portugal, denominados propiciamente “funcionários”. Também não se pronuncia sobre uma eventual retaliação russa (expulsão de diplomatas portugueses em Moscovo).

Tanto a embaixada da Federação da Rússia (Lisboa) como o ministério russo dos Negócios Estrangeiros (Moscovo) não responderam às perguntas da CNN Portugal.

PORTUGAL 1982

É a maior vaga de expulsões que teve lugar em Portugal. No espaço de três meses, em 1982, o governo da Aliança Democrática (AD) exigiu a “partida antecipada” de 16 diplomatas da então URSS e de outros países do Leste.

A Europa expulsou nesse ano 25 dos 34 representantes da União Soviética acusados, então, de espionagem. Um ano depois, em 1983, este número subiu para 148.

21 “diplomatas” do Leste foram obrigados a deixar Portugal entre Abril de 1974 e 1982 ao abrigo do artigo 9.º da Convenção de Viena. URSS, 12; RDA, 3; Polónia, 3; Checoslováquia, 2 e Cuba, 1.

Flagrante delito de espionagem – A Leste nada de novo…

Lisboa, Abril de 1980.

Igor Alexandrovich Evlampiev, Tenente-Coronel da Força Aérea e Adido Militar da União Soviética, estaciona o Citroën CX prateado na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa. A mulher, Nelly, e o neto acompanham-no. Depois de verificar que não está a ser seguido, Evlampiev atravessa a artéria e penetra com a família no supermercado Pão de Açúcar. Depois das compras, o casal regressa ao apartamento na Rua Eiffel, número 15.

O espião Igor Evlampiev e Nelly, a mulher, em Lisboa. (Foto: D.R.)

Evlampiev volta a sair. Para evitar ser seguido — e quiçá por uma questão de hábito — opta pelo itinerário menos directo. Começa por um passeio na zona da Feira Popular. Em seguida, mete-se no carro e desaparece. Cerca das 19:30, abandona o veículo e dirige-se a uma das paragens de autocarro de Entrecampos. Ao fim de um quarto de hora, muda de lugar. Entra no supermercado Modelo e queda-se entre portas, a olhar para o exterior. A seguir, dá mais uma volta. Entra no automóvel e regressa a casa.

Foi muito certamente para reconhecer um local ou avistar-se com algum “contacto” e o encontro falhou… — conclui um seguidor da Divisão de Informações (DINFO) do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA).

Passada uma semana, Evlampiev vai de novo às compras com a família ao mesmo supermercado. Enquanto Nelly e o neto enchem o carrinho de compras, Evlampiev passeia com ar preocupado. Procura detectar eventuais seguidores, em vão.

Apesar do peso dos anos, o espião soviético (nascido a 24/9/1928) sobe as escadas até ao primeiro andar, sem grande esforço, carregando os sacos. Espreita pela janela e sai cinco minutos mais tarde. Deambula pelas ruas da capital mais de meia hora e estaciona o carro no mesmo local da semana anterior. Dirige-se à mesma paragem da CARRIS, os olhos pregados no relógio. Está adiantado. Pelo sim pelo não, dá uma volta à praça e mergulha na boca do metropolitano da Avenida da República. Desce até ao cais e dá meia volta.

O espião Igor Evlampiev: duas vezes no mesmo local em dias certos. (Foto: D.R.)

Envolto numa samarra castanha, um português de meia idade, conhecido do serviço de Informações, caminha a passos lentos, mas compassados, rumo a Evlampiev. Um militar da DINFO assiste à cena. Os dois homens disfarçam, mas têm encontro marcado. Ao cruzar-se, estacam e abraçam-se efusivamente. Aí, Evlampiev espalma a mão larga no ombro do seu “contacto” e obriga-o a mudar de sentido. Andam, assim, uma centena de metros até se separarem brusca e friamente. Esboçam apenas um discreto cumprimento de despedida e cada um segue o seu caminho.

Evlampiev terminara a sua jornada de trabalho e até certo ponto a sua actividade em Portugal. Tinha sido apanhado em flagrante delito de espionagem. Cometera o erro de estar duas vezes no mesmo local em dias certos. O excesso de confiança é imperdoável, sobretudo para uma alta patente do serviço militar de informações GRU.

O espião foi, entretanto, promovido a Tenente-General e destacado para Paris. Exerceu as funções de Adido Militar. Foi a sua terceira presença em terras de França (1960-1964, 1969-1974 e depois de 1980), acompanhada de perto pela Direction de la Surveillance du Territoire (DST), a contra-espionagem francesa e a DINFO, entre outras.

Em 1982, o governo da AD expulsou 16 diplomatas de países do Leste (oito da ex-URSS e outros tantos do Bloco do Leste) por razões que os militares consideraram politicamente correctas, mas tecnicamente erradas. 

Com efeito, os 16 agentes estavam “marcados” assim como os seus respectivos contactos enquanto que os inevitáveis substitutos implicavam o recomeço de todo o processo de investigação e localização.

Aeroporto da Portela, 4 de Maio de 1982: os “diplomatas” checos abandonam Portugal. (Foto: ANOP)

Contra-espionagem – uma operação dos checos

Corre o mês de Fevereiro de 1982. 

Os “diplomatas” checos Jan Janik e o seu adjunto Ladislav Kolackovsky instalam-se, tranquilamente, no Grande Hotel Batalha, no Porto, e contactam pessoas ligadas ao PCP. Os dois homens recebem as “visitas” durante escassos minutos. Não lhes interessa perder tempo com palavreado inútil nem mendigar intimidades que sabem de antemão impossíveis.

Os militares da Divisão de Informações (DINFO) do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA) que efectuam o seguimento, associam os encontros à situação política do momento e decidem apertar a vigilância. Os checos abandonam a capital nortenha na manhã seguinte e dirigem-se a Viseu, onde se instalam no Hotel Grão Vasco. Janik e Kolackovsky mandam chamar os seus “contactos” e a cena do Porto repete-se.

Os checos não estão contentes com a forma com que a Greve Geral (marcada para 12 de Fevereiro, a primeira desde a Revolução dos Cravos) convocada pela CGTP (com a oposição da UGT) está a ser preparada. Fazem algumas “sugestões” práticas. Os planos existem. E são para ser seguidos à letra. Garantem que não há lugar para amadorismo e que já estão fartos de brincadeiras. A “palestra” é escutada pelos militares da DINFO.

O embaixador da República Socialista da Checoslováquia, Jan Janik, e o seu secretário, Ladislav Kolackovsky, são expulsos de Portugal a 4 de Maio de 1982, considerados “personæ non gratæ”. Um motorista da delegação checa, Stanislav Kejmar, é aconselhado a sair do país nesse mesmo dia.

Os checos tomam medidas de retaliação e expulsam de Praga o embaixador Baptista Martins.

1982 — Nem todos os espiões são expulsos. O indivíduo de óculos à direita na foto é um deles. (Foto: ANOP)

Um caso de espionagem que podia ter tido repercussões semelhantes ocorreu pouco tempo depois. 

Dois outros “diplomatas” checos, o Adido Militar e Aeronáutico, Tenente-Coronel Vladimir Mohyla, e o seu adjunto, Major Vladimir Mitás, tentaram aliciar militares portugueses para obter documentos secretos da OTAN. Pertenciam à StB checa (Státní Tajná Bezpečnost), o departamento de segurança do Estado, mas…

Portugal — o antigo paraíso dos espiões

Portugal já não é o paraíso dos espiões da Segunda Guerra, mas ainda continua a ser um país aberto para muitos operacionais dos serviços secretos estrangeiros (incluindo os do Ocidente!) com cobertura diplomática ou consular e não só.

“A Direcção da contra-espionagem do SIS é a DO 3, que sofreu mudanças significativas há uns anos, quando uma directora foi afastada a pretexto da sua mentalidade de Guerra Fria. Na DO 2 e na DO 4 também houve algumas mudanças…”, disse uma fonte ligada ao mundo das Informações que solicitou o anonimato.

Segundo o SIS, “em Portugal, existem dois Serviços de Informações: o Serviço de Informações de Segurança (SIS) e o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED)”. O SIS “atua em território nacional, contribuindo para a salvaguarda da segurança interna através da prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem (NDR: “clássica”), da criminalidade organizada, da proliferação e das ciber-ameaças, bem como da prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido.”

Para o serviço português de Informações, “o reconhecimento da necessidade de criar um sistema de informações foi largamente influenciado pela sucessão de atentados registados em território nacional:

• Em 1979 o atentado à Embaixada de Israel que se saldou em um morto e vários feridos;

• Em 1981 o assassinato do adido comercial da Embaixada da Turquia por um comando arménio;

• Em 1983 regista-se o assassinato de Issam Sartawi, em Montechoro/Algarve e em Julho desse mesmo ano um comando arménio ataca a Embaixada de Turquia, do qual resultam 7 mortos (NOTA: Uma história mal contada até hoje…).

O referido contexto, coadjuvado pela primeira revisão constitucional, de 1982, pela extinção do Conselho da Revolução e pela subordinação do poder militar ao poder civil, bem como a publicação da Lei de Defesa Nacional tornaram-se factores decisivos para a futura criação de um sistema de informações nacional, que se viria a constituir à luz da Lei-Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa (Lei-Quadro 30/84)”.

O SIS iniciou funções em Fevereiro de 1986, sob a Direcção de Ramiro Ladeiro Monteiro.

Há quem questione, por exemplo, o facto de um serviço de Informações ter nas suas funções a pesquisa de dados sobre criminalidade organizada, independentemente da reconhecida qualidade dos seus homens e mulheres.

A sabotagem, hoje, está, por outro lado, sempre incluída no terrorismo.

Os objectivos da actuação do SIS baseiam-se num conceito OTAN com décadas.

E depois do adeus – a retaliação continua

A retaliação de Moscovo começou pouco depois das primeiras expulsões de agentes secretos russos do Ocidente.

Foram considerados “personæ non gratæ” diplomatas da Alemanha, Bulgária, Holanda, Japão, Missão da União Europeia em Moscovo, Noruega, Polónia. A lista não é  exaustiva.

Portugal é o país que se segue?


Reportagem originalmente publicada na CNN Portugal a 6 de Maio de 2022.

NOTA POSTERIOR DO JORNALISTA: A actuação do GRU e FSB em Portugal continua a ser uma realidade. Militares portugueses foram, aliás, alertados para a vulnerabilidade do país face a uma operação russa nos… 


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