1. UM PONTO DE PARTIDA
Segundo Fernando Pessoa, sendo o nosso espírito romano-árabe, foram os árabes que nos civilizaram[1]; em troca, ainda segundo ele, o pagamento que fizemos a esses árabes nossos maiores foi o crime de os expulsarmos[2].
Mas, porque os deuses não dormem, um mal ainda maior nos esperava: no ano em que se cumpriam quatro décadas da expulsão dos muçulmanos e dos judeus por D. Manuel I, já no sinistro reinado de D. João III (em 1536), foi instituída a Inquisição em Portugal. Esta nova realidade – só extinta três séculos mais tarde, no seguimento da Revolução Liberal de 1820 –, por si só, «leva ao êxodo ou à obnubilação das populações de muçulmanos (e de judeus), provoca no país uma sangria de valores humanos, culturais e económicos, que mesmo os proventos dos Descobrimentos não logram nunca compensar. A longo prazo, acabará por vir ao de cima uma decadência de que o país não mais recuperará, inteiramente, até aos dias de hoje»[3].
Quanto ao espírito romano, cresce no outro lado do Atlântico a corrente histórica que vê “lá bem antes”, na mentalidade do “homem cordial”[4], a principal causa do atraso histórico do Brasil: «na mentalidade que se firmou e se reproduziu em Portugal, logo após a queda do Império Romano»[5] – a mesma que na burocracia tinha reproduzido o predomínio da pessoalidade sobre a aplicação da lei, do privilégio sobre a igualdade, do coração sobre a razão[6].
Em suma, na parte que agora interessa, do tempo dos últimos romanos, ter-nos-ia ficado assim a lógica da cordialidade e dos privilégios, ou seja, dos favores.
2. A ERA DAS TREVAS
Se tivermos por boa a tese, depois de expulsos (ou convertidos à força) aqueles que nos educaram[7], seguiram-se três séculos em que o espírito (cordial) dos Portugueses foi calcado aos pés de uma Igreja soberana e, por isso mesmo, “inimiga do pensamento”[8]. Ficaram assim os Portugueses, até aos duros primeiros 50 anos do século XIX, privados da companhia daqueles seus educadores[9], mas também – terrível castigo! – efectivamente privados da possibilidade de aprender, porquanto o nefando Index Lusitano lhes proibia o acesso não só a uma imensidão de livros aí expressamente arrolados (mais extenso do que qualquer outro)[10], como a livros de línguas inteiras (especialmente as que transportavam a corrente da igualdade e da liberdade que então se abria ao Ocidente, entre os séculos XVII e XVIII)[11].
Um efeito directo – e uma evidente prova – desta nossa triste condição foi o de que, a partir de então (salvo talvez na Música[12], onde o canto popular, o ostinato e depois o Fado nos podem ter salvado), nos tornámos especialistas na arte de copiar: ideias, doutrinas, movimentos, instituições, leis e códigos administrativos[13], constituições, personalidades, modas e sapatos – tudo, em suma, passou a ser importado (por vezes, em segunda e terceira mão), e importado normalmente de Paris. Uma segunda consequência foi a de que apenas os emigrantes mais qualificados (os ditos “estrangeirados”)[14] podiam de alguma forma socorrer-nos como “mestres de recurso”, diante do «abismo da miséria e da ignorância portuguesa»[15].
3. A GRANDE RUPTURA
Ora, voltando àquele momento final da nossa era das trevas, para Vasco Pulido Valente, o regresso à aprendizagem começou a fazer-se no início do século XIX, não pela via do pensamento, por óbvia impossibilidade, mas pelo efeito transformador da reacção popular às invasões francesas. «A mudança veio de fora. A invasão de Junot (a mais durável), a invasão de Soult (a de menos consequências), a invasão de Massena (a mais destrutiva) e até a tardia invasão de Marmont desfizeram o antigo regime»[16]. «Napoleão, embora perdendo, revolucionou o país, como revolucionara a Europa. A invasão e a guerra, por assim dizer, “provocaram” o “liberalismo” em Portugal. Um produto exógeno, que não podia ser aceite pacificamente»[17].
Sobre a dureza e o caos da primeira metade do século XIX[18] – porventura o século a que a historiografia moderna mais atenção dedicou – não cabem dúvidas:
- No plano simbólico, o Rei e a Corte tiveram (ainda que com grande instinto político) de se refugiar no Brasil, situação que se arrastou até 1821;
- No plano político, o país – que, desde 1815 até 1822, passou a ser uma união real: o Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves[19] – era, para todos os efeitos, um protectorado inglês;
- No plano material e social, as carências eram de toda a ordem, incluindo o facto de as “elites” terem igualmente emigrado para o Rio de Janeiro, cidade que desde então não deixou de prosperar, a grande benefício do Brasil e da sua rápida e notável independência;
- Já no plano cultural, foi, no entanto, no segundo quartel do século XIX que alguns historiadores e literatos (a começar por Garrett e Herculano), deram início à recuperação dos laços com a antiga pertença árabe da Nação[20].
Num contexto como esse, se as lutas populares sem trégua (aos franceses), o pronunciamento de 1820, a contra-revolução, o(s) golpe(s) de Estado[21], os anos de guerra civil, a revolução de 1836, as incontáveis intervenções militares[22], as mortes, os confiscos, os abusos sem-fim, as ditaduras, as revoltas e os protestos dos povos foram muitos e se as práticas da importação (de ideias, de modelos e de constituições) não foram em menor número, não se pode dizer que um tal período pudesse ter sido propício a uma (superior) aprendizagem colectiva, que não a resultante das grandes transformações operadas por tais factos.
Em compensação, a segunda metade do século XIX[23] foi o único período em que os Portugueses, desde a instauração a Inquisição até ao 25 de Abril de 1974, puderam, individual e colectivamente, respirar um pouco de alívio e aprender realmente outro tanto:
- Em termos institucionais, 1852 representa um ano a todos os títulos marcante[24], na pacificação das diversas correntes “liberais”, com a estabilização constitucional do sistema, sob a cobertura do 1.º Acto Adicional à Carta Constitucional de 1826;
- No plano político – apesar da acumulação de poderes no Rei (progressivamente atenuada, por múltiplas razões, pelo menos até à frustrada tentativa de a recuperar no final do século por D. Carlos), apesar do voto limitado e da inautenticidade do sufrágio[25], apesar da ausência de igualdade formal e do défice de garantia jurisdicional –, o chamado “rotativismo”, a política de melhoramentos materiais, bem como a lenta evolução das instituições liberais permitiram introduzir no país as primeiras noções de uma de “democracia limitada”[26], não muito distinta (salvo na qualidade da relação entre poder e sociedade) daquela que se praticava na generalidade dos países da Europa continental;
- No plano da cultura cívica, deve começar por notar-se, face à grave carestia hoje reinante, que foram muitas as centenas de jornais que então vieram à luz; alguns grandes oradores (como José Estêvão) deixaram a sua marca na instituição parlamentar, instituição que todavia até hoje não conseguiu ainda alcançar o lugar que lhe é devido, diante da primazia de facto do Poder Executivo[27];
- No plano material, o grande e inesperado governante do século veio a ser Fontes Pereira de Melo, um militar e engenheiro;
- Do ponto de vista intelectual, não faltaram neste período as provas de um ressurgimento nacional, de que as Conferências do Casino, a Geração de 70 ou os esforços de Alexandre Herculano ou de Oliveira Martins foram evidentes sinais;
- Finalmente, do ponto de vista individual, os direitos fundamentais do cidadão – que demoraram na realidade 160 anos a implantar-se[28] –, que não passavam de “direitos de papel” (na Constituição de 1822, nas duas primeiras vigências da Carta Constitucional e na vigência da Constituição de 1838), puderam finalmente ver algum tipo de realização e garantia, nomeadamente no que respeita à liberdade de culto, à liberdade pessoal, bem como às liberdades de expressão, de imprensa e de reunião.
4. UM PASSO APENAS: DA I REPÚBLICA AO ESTADO NOVO
Chegados ao século XX, com a I República, o mínimo que se pode dizer é que a fase de aprendizagem liberal, que já entrara em relativa crise nos finais do século XIX, sofre um novo e generalizado retrocesso[29]:
- Uma Constituição nascida num regime com partido único (e o único período da nossa História em que o poder político esteve concentrado nas mãos de um único órgão do Estado), sem que se tenha realizado sufrágio efectivo em mais de 40% dos círculos nas eleições para a Assembleia Constituinte e com esta a desdobrar-se abusivamente, no final, em Câmara dos Deputados e Senado;
- Num regime sem legitimidade nem legitimação popular, com as primeiras eleições gerais (com sufrágio mais restrito do que na Monarquia) realizadas apenas em 1914;
- Num regime que hostilizou desde a primeira hora, como nunca, a liberdade religiosa (com medidas que seriam tidas por intoleráveis no século XIX);
- Num regime que recorreu tanto à mentira (desde logo, relativamente às promessas em matéria de sufrágio universal e de direito à greve) como à violência organizada, e onde, por tudo isso, se regressou às intervenções militares, a rupturas constitucionais (como a de Sidónio), aos assassinatos políticos, mas sobretudo à desinstitucionalização de um sistema desequilibrado desde o início[30] e que, poucos anos volvidos, quase todos os Portugueses aspiravam por derrubar.
E assim foi plantada a semente de onde, sem surpresa, nasceu o golpe de 28 de Maio de 1926, a Ditadura Militar e, poucos anos depois, o Estado Novo de Salazar, com a grande diferença de Afonso Costa[31] ter conseguido, num ano, promulgar toda a sua obra.
Quanto a Salazar[32], relativamente ao tema aqui tratado, não há muito a dizer. Salazar sempre foi um declarado inimigo da democracia e da liberdade[33], sobretudo da liberdade de pensar, dando primazia, pelo contrário, ao princípio da autoridade e à ideia de um Estado forte[34]; assumidamente conservador e autoritário, antiparlamentar e anti-partidos, como governante, «acumulou mentiras sobre mentiras»[35], como homem, era frio e, segundo um seu eterno opositor, Salazar «não era português»[36], o que não significa que não tenha deixado profundas marcas no espírito dos portugueses que lhe sucederam, nem que não tenha sido ele próprio produto (do bafio) dos séculos que o precederam.
5. O 25 DE ABRIL DE 1974
Não admira por isso que o golpe militar de 25 de Abril de 1974 tenha sido recebido com o júbilo reservado ao momento pelo qual há muitos séculos o Povo Português aguardava – o que talvez não era de esperar foi a rápida instrumentalização do espírito do 25 de Abril, por forças radicais minoritárias, tanto na sociedade (como se viria a comprovar nas eleições para a Assembleia Constituinte), como dentro das Forças Armadas (como se comprovou definitivamente em 25 de Novembro de 1975).
Como instante fundador do novo regime, três notas podem ser referidas ao seu significado: (i) como acontecimento histórico, o 25 de Abril de 1974 talvez se possa aproximar da Aclamação de D. João I, nas Cortes de Coimbra, pelas três Ordens do reino[37]; (ii) do ponto de vista dos valores, por contraste com a ditadura então derrubada, o 25 de Abril veio proclamar a Liberdade e a Democracia; (iii) do ponto de vista da cultura política, em comparação designadamente com o que se passou depois na Espanha, há quem continue a ver na evolução social a que o 25 de Abril deu imediatamente lugar um aumento do envolvimento político dos cidadãos, da tolerância e da atenção para com os mais fracos (Robert Fishman).
Com a queda do Estado Novo, os dados estavam lançados para mais um interregno constitucional; ora, na linha dos anteriores[38], também este “período de excepção” (como, com grande premonição, lhe chamou o Programa do Movimento das Forças Armadas) viria a ser marcado pelo autoritarismo, pela concentração de poderes e pela típica criatividade negativa dos Portugueses nestas fases (a imposição do rumo ao socialismo, a ideia da sociedade sem classes, a Aliança Povo-MFA, o poder popular, as nacionalizações, incluindo a do sector da comunicação social, a reforma agrária, etc. etc.), que viria a ser incorporada (mais ou menos à força) na Constituição[39], e cujas marcas vieram a exigir mais de uma década para serem dela removidas e para a correspondente estabilização do regime, naquilo que alguns autores consideram, com razão, “um processo constituinte longo”.
6. APRENDIZAGENS DOS ÚLTIMOS 50 ANOS
Num exercício paralelo, intitulado “O que aprendemos sobre a economia portuguesa em 50 anos de democracia”, Ricardo Paes Mamede retirava pelo menos duas lições: uma, a de que grande parte do que se passa com a economia portuguesa, dada a importância central do contexto externo, depende de factores que não controlamos; outra, a de que apesar de Portugal ter feito muito em 5 décadas para um crescimento sustentado, «aprendemos em diversas ocasiões que as nossas instituições ainda carecem de regras e mecanismos que assegurem uma governação responsável, menos sujeita à captura por interesses particulares e que esteja ao serviço do bem comum»[40].
Regressando a Robert Fishman, um cientista político que sempre olhou com extrema benevolência para o caso português, no último estudo que lhe dedicou, sem deixar reiterar a sua paixão pela Revolução dos Cravos e pela herança cultural dela derivada, pondera agora algumas objecções, nomeadamente diante de dados relativos a desigualdades sociais significativas, a importantes casos de corrupção, ao declínio da participação política ou à crescente predisposição do povo português para depender de um líder forte[41], admitindo no final que outros estudiosos possam de facto questionar a sua «narrativa de relativo sucesso»[42].
Importa, portanto, ir mais fundo, para o que pediremos apoio a um ilustre constitucionalista italiano, Gustavo Zagrebelsky, segundo o qual todos os regimes políticos têm um extracto e um substracto: «O extracto é a superfície, o substracto é a substância. O extracto é frágil. O substracto pelo contrário tem muitas coisas pesadas: valores e interesses, relações de poder e de submissão, interesses e necessidades, esperança e desespero, crenças e ilusões, mitos e ingenuidades, amizades e inimizades, altruísmo e egoísmo, legalidade e corrupção, cultura e ignorância: em suma, é por assim dizer o sangue misto que corre nas veias da sociedade»; em segundo lugar, «a cada regime político corresponde um certo tipo de sociedade, pois o extracto deve estar apoiado num substracto coerente»; ora, se a todo o regime político corresponde na verdade um certo tipo de sociedade, um regime democrático «pressupõe uma sociedade democrática»[43]. Eis-nos, por conseguinte, num terreno mais propício à análise da nossa difícil questão, tendo em conta que aprendizagem da democracia tanto pode dar-se ao nível das instituições, como ao nível da sociedade.
O remate deste meu exercício, a executar por tópicos, não podia em todo o caso dispensar o contributo dos historiadores, complementado pelo esclarecimento que pode ser colhido por uma (das muitas) explicações teóricas sobre a mecânica do funcionamento da democracia, no caso, a de Nadia Urbinati[44].
Sem ignorar a relevância dos contextos específicos, a autora entende a democracia representativa como “diarquia da decisão e da opinião”, no sentido de que na democracia se articulam dois níveis: o nível da decisão (que envolve as instituições e os procedimentos) e o nível da opinião (que pressupõe uma esfera pluralista do ambiente de formação da opinião). Papel relevantíssimo nessa explicação diárquica vem a ser desempenhado pelos “mediadores” (entre os planos da decisão e da opinião), com destaque para os partidos políticos, os meios de comunicação social e as universidades – por sinal, todos eles em crise, mais ou menos visível neste momento.
Assim:
- Antes de mais, quanto ao extracto, não pode decerto ignorar-se o pano de fundo do desajustamento entre as profundas mudanças tecnológicas entretanto ocorridas e a capacidade de aprendizagem e de adaptação institucional disponível, nem o contexto de “desconsolidação democrática” dos últimos anos, visível um pouco por todo o mundo[45].
- Por outro lado, quanto ao substracto, é evidente o quanto a sociedade portuguesa se transformou ao longo destes 50 anos, não só ao nível dos valores e dos costumes (tendo agora nós das leis mais “progressistas” que há), mas desde logo ao nível demográfico, face ao impressionante envelhecimento da população.
- No plano histórico geral (Rui Ramos), e assim também no plano constitucional, quanto ao vigor, capacidade de aprendizagem e capacidade de transformação do sistema político, é possível definir duas grandes épocas, nestes 50 anos: a época anterior a 1995 e a época posterior a 1995: (i) na primeira época (ou seja, nas duas primeiras décadas), a partir da semi-democracia (Sá Carneiro) que lhe fora deixada pela atribulada Constituição de 1976, e com o apoio de três revisões constitucionais necessárias, o sistema político conseguiu: afastar o elemento militar do regime e submeter as Forças Armadas ao poder político democrático; remover o objectivo do socialismo (bem como a referência à sociedade sem classes); superar com sucesso dois programas de resgate financeiro; entrar na CEE e integrar a União Europeia; alcançar maiorias absolutas de governo; ajustar a Constituição económica às novas realidades, entre as quais a da inevitável abertura da comunicação social e a política das reprivatizações; garantir o crescimento económico e transformações materiais significativas – tudo isso sem faltar ao respeito pelas “regras do jogo” e passando por grandes consensos entre os três partidos do (então dito) arco da governação, especialmente em 1982, 1985 e 1989; (ii) na segunda época (em que nos encontramos), o rosto do sistema político é totalmente diferente: as revisões constitucionais ou foram voluptuárias ou estão ainda por concretizar; as reformas políticas (pelas quais ainda se lutou nos anos 90) foram adiadas sine die; se em 1978 e 1985, o Partido Socialista aprendeu as lições de realismo que os pedidos de ajuda financeira lhe trouxeram, em 2015, seguiu a via inversa: a de enveredar, pela primeira vez, na “fantasia” de um 25 de Abril às avessas (com a igualdade social à cabeça e com a democracia e a liberdade no final)[46]; o objectivo da convergência tornou-se uma miragem (ressalvados os anos mais recentes); as reformas feitas ou foram as ditas “reformas fracturantes” ou foram as reformas ditadas por pressões externas (especialmente as do Memorando da Troika); em vez dos anteriores consensos, as últimas décadas viram o crescimento da polarização política entre dois blocos, a somar às marcas da cartelização do sistema partidário; a insatisfação do eleitorado, já expressa pelos números abstenção, veio por fim a revelar-se no surgimento de novos partidos, um dos quais um partido anti-sistema, a despoletar, em 10 de Março passado, uma alteração estrutural do sistema de partidos.
- Ainda ao nível do sistema político, as reformas mais importantes que estão por fazer são a reforma dos partidos políticos (incluindo aí a substituição das juventudes partidárias por verdadeiras escolas políticas, às quais uma parte significativa do financiamento dos partidos deve ser obrigatoriamente alocado[47], do mesmo modo que deve ser eliminado todo o financiamento das despesas correntes dos partidos) e a reforma do sistema eleitoral, ainda que se deva admitir que tanto uma como a outra possam ser feitas por etapas.
- Quanto ao funcionamento das instituições, a pandemia da COVID-19 (com excepção de alguns tribunais judiciais e da Provedoria de Justiça) veio pôr a nu (tal segunda pandemia) um quadro de pré-colapso: o Parlamento deixou que, impune e reiteradamente, órgãos executivos (nacionais e regionais) usurpassem as suas funções soberanas; o Governo-legislador redescobriu os decretos ditatoriais da Monarquia e os decretos-leis de urgência do Estado Novo, revelando-se incapaz de apresentar uma proposta de lei sobre a pandemia ao Parlamento, como era seu dever; perante violações em massa da legalidade, à Procuradora-Geral da República não se ouviu uma palavra durante dois anos, nada se sabendo, por outro lado, do desfecho dos inquéritos mandados abrir em 2020 sobre a privação ilícita da liberdade; as muitas entidades com poder funcional de suscitar a fiscalização da constitucionalidade fizeram vista grossa às sucessivas inconstitucionalidades que o Tribunal Constitucional só no final teve coragem de explicitar devidamente (e que os demais tribunais geralmente ignoraram); os órgãos administrativos, a começar pelo Governo e pelos governos regionais, cometeram toda a sorte de ofensas à lei, ao interesse público e aos direitos das pessoas, sem que a comunicação social tenha sabido cumprir, em todo esse período, o seu papel de “cão de guarda” do poder.
- Fora do sistema político, talvez a reforma da escola pública seja a mais premente: no sentido da concretização do princípio da autonomia das escolas e de uma reformulação profunda da relação entre escola, os alunos, os professores e o meio (família, comunidade e autarquia local competente), à maneira do maturado processo que há algumas décadas se levou a cabo, por exemplo, na Nova Zelândia.
- Relativamente aos demais mediadores, se a comunicação social tradicional em Portugal, particularmente os jornais, se encontra numa situação lastimável, nem a sociedade nem os tribunais estão ainda compenetrados do “lugar sem paralelo” que deve ser ocupado pela liberdade de expressão numa sociedade livre[48].
- Finalmente, as Universidades: diante da grande dificuldade de mudar e apesar dos esforços de Mariano Gago – que se repercutiram sobretudo na investigação e na internacionalização –, ao nível do ensino, a massificada universidade pública portuguesa ainda não tem como verdadeira aspiração a excelência – como disse alguém, é um “estado de coisas”.
Seja como for, não há razões para desânimo quando, nestes 50 anos, se viu um Professor de uma Universidade Pública abalançar-se a traduzir a Bíblia, a partir do Grego – pelo prisma, com a profundidade e da forma como o fez! – , enquanto prosseguia a tradução de todas as principais obras gregas e romanas. Não há razões para desânimo quando três Universidades (a Católica e duas públicas) conseguiram coordenar-se para traduzir, organizar e publicar a obra que Hannah Arendt considerou o documento mais importante do Século XX: o livro que nos deixou em legado Nadejda Mandelstam, Contra toda a Esperança – Memórias (publicado originalmente em Nova Iorque, em 1970)[49].
E porque é disso que se trata, no final, a grande tarefa da sociedade portuguesa, tanto no que respeita à Democracia, como à Liberdade e ao Desenvolvimento, é a da “recuperação das aprendizagens”, aprendizagens que, por inúmeras razões, não conseguiu realizar durante metade da sua História.
Lisboa, 25 de Abril de 2024
José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
[[1]] Para Rui Ramos, a “forte marca civilizacional muçulmana” prolongar-se-ia por vários séculos, sobretudo nas regiões do Centro e do Sul [cfr. «Introdução», in Rui Ramos (coord.) História de Portugal, Lisboa, 2009, p. XI].
[[2]] Teremos de pôr aqui evidentemente de lado a parte revolucionária (a segunda) da proposta por ele formulada nesse texto (intitulado «O problema ibérico»).
[[3]] Adalberto Alves, Portugal e o Islão: Novos escritos do Crescente, Lisboa, 2009, p. 61; exprimindo as suas reservas, Paulo Ferreira da Cunha, «Da construção histórico-mítica do passado pré-nacional», AAVV, in Estudos em homenagem a João Francisco Marques, vol. I, Porto, 2001, pp. 259 ss.
[[4]] Na fórmula devida ao ensaio inaugural (de 1936) de Sérgio Buarque de Holanda (cfr. Raízes do Brasil, 26.ª ed., 14.ª reimp., São Paulo, 1995, pp. 146 ss. – também disponível aqui); no entanto, já Oliveira Martins utilizara, no século anterior, o adjectivo “meigo” (cfr. História de Portugal, 15.ª ed., Lisboa 1968, p. 19).
[[5]] Vinícius Müller, A História como Presente, Brasília, 2020, p. 199.
[[6]] Ibidem, p. 208; do lado português, para um primeiro grande retrato, veja-se Alexandre Herculano, História de Portugal, vol. VIII, Livro VII, Lisboa, 1985, pp. 7 ss. (especialmente sobre as tradições romanas acerca das condições das pessoas nesse período de transição, ibidem, pp. 81-139); para uma revisitação desse período, José Mattoso, «A Época Sueva e Visigótica», in José Matoso (dir.), História de Portugal , vol. 1 – Antes de Portugal, Lisboa, 1992, pp. 300-359.
[[7]] Adalberto Alves, Portugal e o Islão, cit., p. 77.
[[8]] Ao contrário, como bem demonstrou o Professor Diogo Ramada Curto, da recente apreciação feita por Nuno Palma (cfr. As Causas do Atraso Português: Repensar o passado para reinventar o presente, Alfragide, 2023) e no sentido do que sempre tenho igualmente defendido (por último, José Melo Alexandrino, Dez apontamentos sobre a Igreja Católica – À luz dos direitos humanos e da transformação necessária, 2023, p. nota 8 (disponível aqui).
[[9]] E privados até da possibilidade de os lembrar, salvo, segundo Adalberto Alves, nas lendas e romances populares, em três versos de Garcia de Resende e na obra do comediógrafo Simão Machado (cfr. Portugal e o Islão, cit., pp. 77-79).
[[10]] Embora tenham sido sobretudo os Castelhanos a ter de arcar com as pesadas culpas que lhes foram justamente dirigidas, a partir das Ilhas Britânicas, por John Milton.
[[11]] Curiosamente, uma das teses do místico luso-muçulmano Ibn Qasî, expressa no seu tratado “Descalça as tuas Sandálias”(Khal’al-na ‘layn), escrito nas vésperas da fundação de Portugal (na arrábida que mandou construir na Arrifana), também o Islão deveria dar lugar a outra coisa no século XVII (cfr. Josef Dreher, Das Imamat des islamischen Mystikers Abulqâsim ibn al-Husain Ibn Qasî: eine Studie zum Selbstvverständnis des Autors des “Buch vom Ausziehen der beiden Sandalen” (Kitab Halan-na ‘laim), tese de doutoramento em Filosofia na Universidade de Bona, 1985; Nagel Tilman, «Le Mhadisme d’Ibn Tûmart et d’Ibn Qasî une analyse phénoménologique», in Revue des mondes musulmans et de la Méditerranée, 91-94 (2000), p. 8 (disponível aqui).
[[12]] Aliás, mesmo aí, não foi (a visão polifónica e infinita de) Damião de Góis (cfr. Edward Wilson-Lee, A Torre dos Segredos, Lisboa, 2022, p. 276) acusado pela Inquisição, num processo que durou 20 anos, do uso da polifonia, perante o testemunho de alguém que ouvira cantorias «que não era o tipo de canções a que estava habituado» (ibidem, p. 264)?
[[13]] Como o de Mouzinho da Silveira – segundo Vasco Pulido Valente, «um homem primário e presumido» [cfr. «O liberalismo português» (2007), in Portugal – ensaios de História e de Política, Lisboa, 2009, pp. 22-23].
[[14]] A começar por Damião de Góis e Luís de Camões (a cujo estimulante confronto procedeu Edward Wilson-Lee, no seu já citado livro A Torre dos Segredos) e a terminar com figuras como Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Agostinho da Silva, Mário Soares ou Miguel Esteves Cardoso.
[[15]] Vasco Pulido Valente, «Imitar a Revolução», in Diário de Notícias, de 25 de Abril de 2004, p. 6.
[[16]] Vasco Pulido Valente, «O liberalismo português», cit., p. 7.
[[18]] Por todos, sobre o primeiro quartel do século, Oliveira Martins, História de Portugal, cit., pp. 509-538; Vasco Pulido Valente, «O liberalismo português», cit., pp. 7-16; sobre o segundo, Rui Ramos, «Parte III – Idade Contemporânea», in História de Portugal, cit., pp. 439-478.
[[19]] Sobre o assunto, AAVV, Portugal e Brasil: Um Direito Comum no Bicentenário do Reino Unido, e-book, Lisboa, 2016.
[[20]] Para esse registo, quanto aos séculos XIX e XX, Adalberto Alves, Portugal e o Islão, cit., pp. 81-95.
[[21]] Vasco Pulido Valente, O Fundo da Gaveta, Lisboa, 2018, pp. 15-86.
[[22]] Por todos, Vasco Pulido Valente, Os Militares e a Política (1820-1856), Lisboa, 1997, que começa justamente por definir as várias formas típicas de intervenção no período em análise (ibidem, pp. 9-10).
[[23]] Sobre a segunda metade do século até 1890, por todos, Rui Ramos, «Parte III – Idade Contemporânea», in História de Portugal, cit., pp. 521-548; particularmente, sobre a fase final do terceiro quartel, Vasco Pulido Valente, O Fundo da Gaveta, cit., pp. 89-224.
[[24]] Como tenho defendido, esse momento histórico só voltou a ter o seu equivalente na aprovação da revisão constitucional de 1982 (cfr. José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, pp. 51 e 58).
[[25]] Que, na realidade, durou até ao dia 25 de Abril de 1975.
[[26]] Sobre o conceito, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, p. 175.
[[27]] Sobre essa constante do constitucionalismo português, José M. Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., pp. 26, 53, 150, 253.
[[28]] Foi esta uma das teses a que cheguei, depois de analisar detidamente (cfr. José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos liberdades e garantias na Constituição portuguesa, vol. I – Raízes e Contexto, Coimbra, 2006, pp. 289-844) a história, a doutrina e a realidade constitucional (ibidem, vol. II – A construção dogmática, 2006, p. 704).
[[29]] Segundo Vasco Pulido Valente, «a República era uma degenerescência de uma degenerescência» (cfr. João Céu e Silva, Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente, Lisboa, 2021, p. 88).
[[30]] Na fórmula de Rolão Preto (que nunca desconsiderou o 5 de Outubro e que acabou a colaborar activamente com os republicanos, a partir de meados do século XX), a I República foi um regime que teimou em marchar «só com uma perna» [cfr. «Carta a um Republicano» (1972), in José Melo Alexandrino (org.), Rolão Preto, Obras Completas, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2023, p. 410].
[[31]] Para um retrato de alguém que outorgou sub-repticiamente a Constituição de 1911, cfr. José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa na Assembleia Constituinte», in Jorge Miranda/Alexandre Pinheiro/Pedro Lomba (coords.), A Assembleia Constituinte e a Constituição de 1911, Lisboa, 2011, pp. 481-511.
[[32]] Mais ainda agora quando temos acesso aos seus diários pessoais [cfr. Maria Madalena Garcia (org.), Diários de Salazar (1933-1968), e-book, Porto, 2021].
[[33]] Sobre o que pensava neste domínio, sobre a forma como o verteu e como o interpretou na Constituição de 1933 (por ele realmente outorgada), cfr. José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…, vol. I, cit., pp. 450-469.
[[35]] Vasco Pulido Valente, in João Céu e Silva, Uma longa viagem, cit., p. 84.
[[36]] Rolão Preto, «Entrevista com Rolão Preto», in João Medina, Salazar e os Fascistas – salazarismo e nacional-sindicalismo a história de um conflito 1932/1935, Lisboa, 1978, p. 184.
[[37]] Para conhecimento do respectivo auto, veja-se aqui.
[[38]] José M. Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., p. 39.
[[39]] Para uma narrativa do processo, José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…, vol. I, cit., pp. 517-635.
[[40]] Público, de 22 de Abril de 2024, p. 9 (disponível, para assinantes, aqui).
[[41]] Robert Fishman, «De “retardatário” problemático a estrela do Sul?», in Jorge M. Fernandes/Pedro C. Magalhães/António Costa Pinto (org.), O Essencial da Política Portuguesa, Lisboa, 2023, p. 35 (sem necessidade do recurso a sondagens de ocasião).
[[43]] Gustavo Zagrebelsky, «Basta con il silenzio, è venuto il tempo della resistenza civile», in la Repubblica, de 23 de Novembro de 2018 (disponível aqui).
[[44]] Para uma introdução, Nadia Urbinati, «Crise e Metamorfoses da Democracia», trad. de Pedro Galé e Vinicius de Castro Soares, in RBCS, vol. 28, n. 82 (junho de 2013), pp. 5-16 (disponível aqui).
[[45]] Cfr. José Melo Alexandrino, «Introdução», in Estudos sobre o constitucionalismo no mundo de língua portuguesa, vol. III – O sistema político no Brasil e em Portugal, Lisboa, 2020, p. 10 (disponível aqui).
[[46]] O resultado das eleições legislativas de 2024 parece querer dizer que o Povo registou o facto.
[[47]] Em sentido próximo, Miguel Poiares Maduro, «Entrevista», in Público, P2, de 5 de Janeiro de 2020, p. 7 (também disponível, para assinantes, aqui); Paulo Trigo Pereira, Democracia em Portugal: como evitar o seu declínio, Coimbra, 2020, pp. 189 ss.
[[48]] José Melo Alexandrino, «Prefácio», in Escritos de Direito da Comunicação Social, Lisboa, 2024, pp. 7-8 (no prelo).
[[49]] Nadejda Mandelstam, Vospominánia, trad. de Ana Matoso e Larissa Shoropa, Contra toda a Esperança – Memórias, Lisboa, Universidade de Lisboa, 2021.
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