Leio com alguma surpresa uma notícia que dá conta da nova lei do tabaco em Inglaterra. Uma espécie de lei gasosa, se pensarmos na lei seca que se impôs nos Estados Unidos de 1920 a 1933, que proibia o acesso ao álcool.
A notícia acabava assim: A idade a partir da qual as pessoas podem comprar cigarros e tabaco na Inglaterra deve aumentar anualmente, acrescentando um ano de idade a cada período, para que em algum momento ninguém possa comprar, afirmou o primeiro-ministro Rishi Sunak.
Mas ao mesmo tempo passavam na televisão imagens do período do 25 de Abril de 1974, em que se fumava muito e a palavra liberdade era exaustivamente proferida.
E pensei sobre o assunto.
Há um filme admirável de Alain Resnais chamado Smoking/No smoking que na realidade se trata de um díptico e para o qual será preciso prestar alguma atenção. Também há paisagens e automóveis admiráveis, mas não são assunto para este texto, qual é o problema? Vive-se uma época de crispação. Qual é o problema?
Qualquer dia há para aí uma guerra.
Estava a brincar (ou mesmo a jogar), já que parece cada vez mais que estamos dentro do Big Brother e a diferença entre jogo e não-jogo está a ficar aceleradamente mais ténue, tipo blade runner, em que no filme com o mesmo nome, não era fácil perceber quem era humano e quem não era. Qual é o problema? Vive-se uma época de crispação.
Ah, já disse!
Accionemos o isqueiro e vamos ao que nos traz aqui.
Ora bem, fumar ou não fumar um cigarro poderá fazer toda a diferença para a narrativa daquele filme feito a partir de uma peça de teatro intitulada Intimate Exchanges de Alan Ayckbourn. Este princípio dá para muitas situações, tipo teoria do caos que esteve muito em voga nos anos 90.
Enfim, desde que remetesse para acções banais, mas que pudessem alterar o futuro, dependendo de fazer-se uma coisa ou outra. O exemplo mais comum era o de que o bater de asas de uma simples borboleta em Nova Iorque poderia influenciar o curso natural das coisas e, assim talvez provocar um tufão do outro lado do mundo. Neste caso, fumar ou não fumar um cigarro (acção que não pratico neste preciso momento), altera o curso dos acontecimentos no filme. Se eu fosse agora o comentador Daniel Oliveira diria já lá vou. Mas felizmente não sou esse comentador, mas já lá vou à mesma, pronto!
Qual é o problema?
Ao rever as eternas imagens da Revolução dos Cravos que todos os anos alimentam as televisões nesta época primaveril, percebemos que os actores da famosa e libertária operação estão muitas vezes a fumar, assim como os jornalistas de serviço.
Parece mentira, mas as imagens mostram apresentadores de telejornal a fumar em directo e durante a emissão. Fialho Gouveia e Joaquim Letria, eram exemplo disso, mas não propriamente nas emissões desse dia de 25 de Abril. Torna-se muito claro a apoteose fumadora no dia das eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras em democracia, algum tempo depois do dia 25 de Abril, dia fundamental para a esquerda, já que para uma certa direita será o dia 25 de novembro. Têm o número em comum. Já não é mau.
Epá, mas tanto à direita como à esquerda ou ao centro, fumava-se que se fartava. Também é certo que nem todos o faziam, embora fosse recorrente fumar-se para cima de inocentes sem que isso fosse um grande problema. Havia poucos ou nenhum estudo que fizesse disparar o alerta tabágico. Ainda hoje me pergunto, como é que foi possível viver tempos sem estudos a toda a hora, sem especialistas e comentadores a emitir opinião a todos os minutos. E já agora, muitos não acreditam que chegou a haver vida sem internet…
Bolas!
Tenho mesmo a certeza que os militares, para discutirem as estratégias a adoptar para tomar Lisboa, ostentavam sempre um cigarro ao canto da boca. Provavelmente SG Filtro, ou SG Gigante, talvez os mais cowboys ainda fumassem o Português Suave sem filtro inspirando-se em John Wayne e nas suas coboiadas musculadas, mas que por sinal era um facho de primeira, segundo a minha tia que era comunista e uma excelente pessoa.
A Tabaqueira ganhou muito com a revolução. Os nervos andavam à flor da pele e é do senso comum que o tabaco ajuda a descomprimir. Pareciam dragões.
“Epá capitão apague lá isso que ainda fuma o filtro”, parece que estou a ouvir isto no meio de uma névoa de fumo na cantina dos militares. Ouço também “Ò Fernandes vá ali à papelaria e traga-me três maços de Ventil”. O Fernandes seria o soldado raso de serviço que também aproveitava e comprava um maço de Três Vintes para ele. Ou ainda, “O Antunes fuma que nem um cavalo”. “ Mas os cavalos não fumam, ò meu major!” – diria um cabo menos adepto de metáforas.
No ano de 74 também revejo com prazer imagens em que o futebolista Johan Cruijff durante o intervalo de um jogo, enquanto ajusta as meias do equipamento da selecção da Laranja Mecânica, tem um cigarro ao canto da boca.
Nessa altura não proliferavam imagens de doenças nos maços, e até os carros da Fórmula Um tinham as marcas estampadas na carroçaria, já para não falar do Marlboro-man e no reclame publicitário muito popular, em que um homem a cavalo fumava calmamente um cigarro numa ardente paisagem texana. Acho que o cavalo também dava umas passas. Mais tarde dizem que o Marlboro-man morreu de cancro do pulmão e processou a marca. Mas pode não ser verdade, pode mesmo ter sido inventado pelo Trump.
Eu era muito pequeno e ao ver esses filmes, queria fumar quando fosse grande. Achava que todos os homens fumavam e as mulheres que o faziam, estranhamente tornavam-se sensuais. Ficava a olhar para elas fixamente durante bastante tempo à espera de levar com uma baforada na cara, coisas de puto e de filmes italianos que muito nos influenciavam nessa época.
Entre epás e muita fumarada, assim se preparou o saudoso ataque a Lisboa, disso não haja dúvidas.
Fiquei há pouco tempo a saber que a operação teria de acontecer a uma terça, quarta ou quinta porque nos outros dias havia pouca gente nos quartéis, dito pelo próprio Otelo Saraiva de Carvalho numa entrevista dada ao Frederico Duarte Carvalho, no meio de pás e baforadas, imagino.
O fim de semana era sagrado para os militares e nem mesmo uma perspectiva de golpe de Estado com uma putativa mudança de regime para melhor, abalaria o religioso fim de semana.
O cravo veio depois e não saiu da cabeça de nenhum militar, ou actor principal desse filme. Também é curioso ver nessas mesmas imagens na sua maioria, que os cravos são cinzentos já que era ainda um mundo a preto e branco. Paulatinamente estamos a voltar a esse mundo, mas com cores garridas a 4K, o que vai dar ao mesmo.
Está assim contada a história do cravo na Wikipédia:
Celeste Caeiro, (…) transportava pelas ruas um ramo de cravos brancos e vermelhos nas mãos. Um soldado pediu-lhe um cigarro, mas ela só tinha flores e decidiu então iniciar a distribuição dos cravos aos soldados, que logo os colocaram nos canos das suas armas. Mais tarde as floristas da Baixa continuaram a replicar o gesto (…).
Claro que só podia ter começado com um cigarro, melhor ainda, com a falta dele. Para fazer raccord e uma analogia com o filme de Resnais e indo lá (tipo Daniel Oliveira como prometido), aqui poderíamos questionar o símbolo do cravo, caso o soldado não fosse fumador. Teria a dona Celeste posto à mesma o cravo na espingarda do soldado desconhecido caso ele não lhe tivesse cravado um cigarro? E se levasse com ela algodão doce em vez de uma flor e achasse que isso ficava bem dentro da arma, ainda que o soldado pedisse à mesma um cigarro?
Mais tarde os feirantes da Baixa continuaram a replicar o gesto, poderia ser esta a frase da Wikipédia hoje?
Nunca o saberemos, no entanto, parece que o soldado esqueceu-se de levar tabaco para a revolução. Talvez o stress associado ao momento tivesse tido consequências na sua memória e capacidade de concentração ou então já tinha fumado que nem um cavalo nesse dia e acabado o maço sem se aperceber, ou então ainda podia tratar-se de um fumador casual que apenas lhe apeteceu um cigarro.
Dizem mesmo que houve um capitão que parou o tanque e foi comprar tabaco a uma papelaria que se mantinha aberta, não fosse o dia terminar só dias depois.
Esta época teve momentos muito particulares. Para além de todos os benefícios políticos e democráticos que nos trouxe, também nos presenteou com uma espontaneidade que andava esquecida, o que é libertador também.
Não deixo de rir quando vejo o Pinheiro de Azevedo meses depois a dizer que já foi raptado um par de vezes e que não gosta, é chato. Já para não falar do “é só fumaça”, também proferido pelo mesmo ao microfone na Praça do Comércio, o que faz um raccord linguístico perfeito com o suave aroma a tabaco que o texto deve ter.
Outro político importante, noutro documentário sobre o verão quente, contou que uns quantos pararam em frente à casa dele às tantas da manhã na tentativa de o aliciarem a dar um golpe de Estado. Estavam num mini, e ainda cabia mais um, ao que o político respondeu dizendo para irem para casa e fazerem o golpe de Estado noutra altura que àquela hora era muito tarde. O político imagino que estivesse de pijama. Conseguimos sem grande imaginação ver um cigarro em cada um dos loucos revolucionários que estavam no Austin. Eu até consigo ver o carro com um Definitivos no tubo de escape tal a voragem fumadora da época. Mas as coisas mudam, como dizem os mafiosos do David Mamet.
Não estamos a imaginar os capitães a irem à janela fumar um cigarrinho enquanto tratam da logística dos tanques e dos chaimites. “Ò capitão não pode fumar aqui na sala, vamos até à varanda. Isso faz mal à saúde e já agora não chame mariquinhas ao cabo Nelson só porque não quer ir à frente do pelotão. O capitão sabe que ainda pode levar um processo em cima e isso era chato”. Isto, se fosse nos dias de hoje e houvesse revoluções dos cravos mesmo com algodão doce no seu lugar.
Claro que aqui o termo não tem a ver com questões sexuais mas não nos esqueçamos da conhecida homofobia em Ché Guevara e em Fidel por exemplo, outros icónicos grandes fumadores, mesmo que isso chateie muita gente, ou mesmo a homofobia nos albaneses de Enver Hoxha que a UDP tanto gostava, não tolerando nada aproximações masculinas corporais que não seriam certamente para jogar basquete em Tirana.
Mas eram outros tempos em que não interessava muito o politicamente correcto e andavam mais preocupados com o revolucionariamente correcto, o que faz sentido e merece já uma pausa para um cigarro ali à janela, porque eu não me deixo fumar aqui dentro de casa. Isto agora era assim, não?
A autocensura quando nasce é para todos, assim como a democracia.
Enquanto fumava, ia pensando em como seria uma revolução hoje, com telemóveis e cigarros electrónicos a organizarem-nos a vida e o vício. Não consigo imaginar o Otelo a carregar um cigarro. Um chaimite hoje até poderia ser conduzido por controle remoto através do Bluetooth e andar a lítio, haveriam soldados vegans certamente que não aceitariam uma sandes de mortadela dada pelo povo.
Cheguei a ver o protótipo de uma bala que mata como as outras, mas é ecológica e não polui através de um processo químico. Fica dentro do cadáver, mas evapora-se.
Claro que isto não é nenhuma crítica, é apenas o zeitgeist a que temos direito.
Mas não é fácil imaginar uma revolução de rua com kit completo, portanto com golpe de Estado e mudança de paradigma como objectivo final.
Os satélites vêm tudo, e não é fácil quitar telemóveis sem a ajuda de hackers que andam caríssimos, embora nunca tenha havido tantas guerras por aí, isto só para invocar o sempre bem vindo paradoxo que dá cabo das pessoas em geral.
Mas este texto é sobre fumo, charutos cubanos e cigarros, e não paradoxos fumegantes e incendiários.
Um amigo meu, alertou-me para o facto de hoje se limparem digitalmente fotografias, subtraindo os cigarros a escritores e artistas por exemplo.
Irão fazer isso um dia, aos nossos militares? Fico a pensar. No caso deles era melhor limparem logo o pulmão
Uma amiga minha há uns tempos no meio de uma cigarrada de enrolar, disse que isto era preciso era mais dois 25 de Abril, e um taxista enquanto calmamente fumava um Camel, parado num semáforo confessou-me que para ele isto só ia lá com doze Salazares. O “isto “ referindo-se ao regime, foi utilizado por ambos.
O que mais me impressiona nestas conversas hiperbólicas, é o uso dos números. Porquê dois 25 de Abril e doze Salazares?
Percebo que doze 25 de Abril, seria demais. Ou que dois Salazares para o taxista, também seriam poucos, uma vez que hoje há mais manias nas pessoas. Não tendo no entanto a minha amiga especificado se tinham de ser as duas na mesma data ou ao mesmo tempo, ou se seriam uma de cada vez, no sentido de a segunda colmatar a primeira. querendo com isso acentuar a intensidade.
E se fosse em junho? Ainda lhe perguntei, deixando-a pensativa. Respondeu-me que isso não importava desde que fosse um 25 de Abril a sério, portanto com enforcamentos à mistura, deixou a entender. Fiquei na mesma.
Quanto ao taxista salazarista, depois de lhe perguntar porquê doze, respondeu que tinha feito as contas, e onze não chegavam. Ainda lhe falei de clonagem, mas não sabia o que isso era.
Hoje há Ubers a fazer de táxis, e também numa pausa para um cigarro electrónico, um rapaz brasileiro usou a versão contemporânea dos exageros numéricos, falou-me em seis Bolsonaros para pôr o Brasil na ordem.
Na próxima Revolução imagino que seja proibido fumar.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt
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