Todas as vitórias são saborosas, mas há pelejas que, só por si, são uma derrota, mesmo que supostamente haja um vencedor. Neste caso, a derrota prevalece, porque em democracias adultas há direitos que são óbvios, que nem sequer merecem conflito – e, assim, se há um conflito, que ainda mais chega aos tribunais, e demora (por agora) 21 meses a resolver, não pode haver razões para comemorações. Como se pode festejar uma vitória numa democracia doente?
O acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que confirmou uma sentença de Novembro de 2022 (num processo iniciado em Julho desse ano) a conceder o direito ao PÁGINA UM para obter documentos sobre processos relacionados com a Lei da Transparência dos Media é um desses casos: é uma vitória do PÁGINA UM, mas a necessidade de recorrer aos tribunais para exercer um direito – que deveria ser óbvio e pacífico – é, em si mesmo, e apesar de duas decisões favoráveis, uma derrota para a democracia.
Há 50 anos – e a data está bem presente, porque se comemorou na quinta-feira passada – encerrou-se um regime ditatorial e criaram-se as raízes para um país democrático. No papel – leia-se, na Constituição da República Portuguesa – ficaram consagrados diversos direitos fundamentais como “o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações”, bem como “a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico”.
Embora muitos se esqueçam, um dos artigos da CRP justifica a existência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que não tem somente um papel de fiscalização, mas sobretudo, sendo uma “entidade administrativa independente” (se bem que com os seus membros nomeados pelo chamado Bloco Central), a função de “assegurar (…) o direito à informação e a liberdade de imprensa”.
Ora, mas que sucedeu quando em Julho de 2022 o PÁGINA UM, poucos meses depois da sua fundação, requereu documentos administrativos à própria ERC sobre a sua fundamentação para a atribuição arbitrária de excepções à Lei da Transparência dos Media?
Recusou.
E o que sucedeu quando o PÁGINA UM interpôs uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para que a ERC fosse obrigada a revelar essa informação?
A ERC montou-me, duas semanas depois, uma campanha de difamação, fazendo mesmo um comunicado de imprensa sobre uma situação inventada (e invertendo deveres e direitos), acusando-me mesmo “de insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários”. O comunicado da ERC chegava mesmo a expor a seguinte e lastimável frase: “Intitulando-se jornalista, o referido cidadão tenta legitimar comportamentos nos quais, consideramos, que a classe jornalística não se revê”.
Patenteando uma lamentável dificuldade em aceitar escrutínios de jornalistas, a ERC tem procurado activamente descredibilizar o jornalismo do PÁGINA UM. São já quatro as deliberações completamente enviesadas contra notícias do PÁGINA UM, e houve mesmo uma queixa contra mim para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) para tentar ‘branquear’ uma absurda confusão do próprio regulador. A queixa deu origem a um processo disciplinar, que só poderia ter o destino que teve: o arquivo.
Mas, mesmo acreditando que haja razões pessoais para que, na ERC, não se aprecie o PÁGINA UM e a minha teimosia em ser jornalista, há linhas vermelhas que jamais poderiam ser ultrapassadas pela tal suposta “entidade administrativa independente” com a função de “assegurar (…) o direito à informação e a liberdade de imprensa”.
Com efeito, como pode a entidade que deve assegurar o direito à informação e a liberdade de imprensa recusar um pedido legítimo de documentos administrativos feito por um jornalista?
Como pode depois continuar a recusar após um tribunal administrativo dizer que tem de mostrar?
Como pode, em sede de um recurso (que, por pudor, nem sequer deveria ter sido apresentado) para o Tribunal Central Administrativo Sul, a ERC alegar que um jornalista – uma profissão que constitucionalmente tem o dever de proteger – faz pedidos “manifestamente abusivos”? Um jornalista faz pedidos manifestamente abusivos num regime democrático? Brincamos às ditaduras? Ou assumimo-nos como uma democracia?
Hoje, e com mais este acórdão, confirma-se que existem pessoas que sequestraram os princípios do 25 de Abril, e foram colocados em cargos não para sustentaram a transparência e o necessário escrutínio público das instituições, mas sim para liquidarem um país democrático.
A ERC tem provado – ou, melhor dizendo, os seus membros do Conselho Regulador – que não está em funções para garantir uma imprensa livre nem para proteger jornalistas isentos. Pelo contrário: é uma das causas directas para a degradação da imprensa em Portugal, permitindo as maiores promiscuidades às empresas da denominada legacy media, enquanto tenta espezinhar e enlamear projectos jornalísticos independentes como o PÁGINA UM. A ERC, como está, é uma vergonha democrática.
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