Regras de idoneidade não aceitam crimes de 'colarinho branco'

Condenado por corrupção ‘saca’ licença do Governo socialista para vender tecnologia militar

tilt shift lens photo of mini drone

por Pedro Almeida Vieira // Maio 13, 2024


Categoria: Exame

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A Leitek Unipessoal é apenas uma das 12 empresas portuguesas que, desde 2023, obteve licenças do Ministério da Defesa para comercializar tecnologias militares, onde está também a sociedade de um cidadão francês com sede na Zona Franca da Madeira, que desencadeou forte polémica política no mês passado por ter sido concedida já depois das eleições legislativas. Mas o caso da Leitek Unipessoal tem contornos ainda mais surpreendentes: o seu dono é Clélio Ferreira Leite, um antigo capitão de fragata condenado a sete anos de prisão por corrupção passiva no exercício de funções num processo que decorreu no final da primeira década do presente século. Apesar de alegadamente ter já o registo criminal ‘limpo’, o ex-militar – que desde 2014 recebe uma pensão de quase 1.500 euros após se reformar da Marinha aos 49 anos – não reúne as condições de idoneidade impostas pela lei que regula as actividade de comércio e indústria de tecnologias militares. O Governo socialista ‘esqueceu-se’ de ponderar esse ‘pormenor’ sobre um empresário que tem ligações estreitas com uma associação do sector sedeada na China.


Um antigo capitão de fragata, condenado em 2008 por corrupção passiva, recebeu uma autorização do Ministério da Defesa em Setembro passado para exercer actividades de comércio e tecnologias militares, apesar de uma lei de 2009 proibir expressamente, por razões de idoneidade, a obtenção de uma licença a quem tenha sido condenado, em Portugal ou no estrangeiro, por diversos crimes graves.

Em Setembro de 2006, Clélio Ferreira Leite, que chegou a estar indigitado para director-geral de Armamento e Equipamentos de Defesa – um organismo responsável pela execução financeira dos contratos de reequipamento das Forças Armadas –, foi detido numa megaoperação da Polícia Judiciária, constituída por 70 inspectores, nove procuradores do Ministério Público e um juiz de instrução criminal, juntamente com outro oficial superior e um sargento da Marinha, por suspeita de corrupção em contratos celebrados com uma empresa privada para a manutenção dos mísseis que equipam as três fragatas da classe ‘Vasco da Gama’.

tilt shift lens photo of mini drone

No final de 2006, a investigação foi alargada ao Exército: buscas em escritórios de advogados e empresas permitiram apreender documentos que indiciam favorecimento na compra de equipamentos para as 260 viaturas blindadas adquiridas aos austríacos da Magna-Steyr. Ferreira Leite eram então responsável pela Divisão de Armamento da Direcção de Navios da Marinha, tendo sido o único preso preventivo. No julgamento, este oficial seria condenado a sete anos de prisão efectiva por corrupção passiva.

Anos mais tarde, refez a vida, saindo da Marinha aos 49 anos com uma reforma de quase 1.500 euros, criando então, em Abril de 2016, uma empresa unipessoal (ou seja, apenas por si detida) denominada Leitek Innovative Solutions, com sede em Cascais, tendo como objecto social o comércio internacional de produtos de software, de tecnologias na área de sistemas eletrónicos, optrónicos, radar, biometria, sistemas de navegação e comunicações, bem como actividades de investigação e desenvolvimento, de engenharia naval e engenharia aeroespacial, consultadoria de projetos de investimento e de engenharia, segurança marítima e aérea. Desde 2017, a empresa de Clélio Ferreira Leite foi comercializando diversos equipamentos a entidades públicas, incluindo drones. O contrato mais elevado foi estabelecido, em agrupamento com a Wavecom, no valor de 557 mil euros, com a Secretaria Regional de Equipamentos e Infraestruturas da Madeira em finais de 2020 para fornecimento de sistemas de detecção precoce de incêndios rurais.

O cadastro criminal de Clélio Ferreira Leite não era relevante para contratos públicos – nem para assumir cargos, como os de presidente da Associação Portuguesa de Aeronaves não Tripuladas –, mas já era quanto ao pedido de licença para exercícios de actividades de comércio e indústria de bens e tecnologias militares por sociedades comerciais sedeadas em Portugal e por pessoas singulares residentes em Portugal, que é uma condição sine qua non. De acordo com a lei, o pedido de licença é formulado mediante um requerimento dirigido ao Ministro da Defesa, com o objectivo inicial de alterar o objeto social da Leitek, de modo a incluir o comércio e a indústria de bens e tecnologias militares na sua actividade.

Clélio Ferreira Leite, ex-capitão de fragata e actual sócio único e gerente da Leitek, ao lado de Jincai Yang, presidente da World UAV [Unmanned Aerial Vehicle] Federation.

O despacho de 26 de Setembro do ano passado do antigo secretário de Estado da Defesa Nacional, Carlos Pires, concedeu essa autorização à Leitek, da qual Clélio Ferreira Leite é gerente e sócio único, após passar pelo crivo da Autoridade Nacional de Segurança. No despacho governamental diz-se que “a sociedade comercial [Leitek] cumpre os pressupostos cumulativos para a atribuição de licenciamento para o exercício das atividades pretendidas, previstos no nº 1 do artigo 8º da Lei nº 49/2009, mas esquece completamente o artigo referente à idoneidade – usada também como critério de exclusão, por exemplo, para exercício de funções em instituições financeiras.

Com efeito, a lei em causa determina que “sem prejuízo de outras circunstâncias atendíveis, considera-se não possuir idoneidade quem tenha sido condenado, no País ou no estrangeiro, por crimes de falência dolosa, falência por negligência, falsificação, furto, roubo, burla, extorsão, abuso de confiança, infidelidade, usura, corrupção, emissão de cheques sem provisão, apropriação ilegítima de bens do sector público ou cooperativo, falsas declarações, branqueamento de capitais ou infracções à legislação especificamente aplicável às sociedades comerciais, ou ainda por crimes praticados no exercício de actividades de comércio ou de indústria de bens e tecnologias militares”, ou que “tenha comprovadamente tido envolvimento no tráfico ilícito de armas ou de outros bens e tecnologias militares ou de dupla utilização ou, ainda, na violação de embargos de fornecimento de bens e tecnologias militares decretados pela Organização das Nações Unidas, pela União Europeia, pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa ou pelo Estado português”.

O PÁGINA UM contactou Clélio Ferreira Leite que, não negando “problemas passados” com a Justiça garante ter o registo criminal “limpo”, o que sucede, em geral, no crime cometido, sete anos após a data da extinção da pena aplicada. No entanto, de acordo com juristas consultados pelo PÁGINA UM, a limpeza do cadastro criminal não interfere com a premissa da idoneidade em casos de condenação, de contrário não estaria expressamente incluído. Até porque o registo criminal é um documento pedido – e que terá de estar ‘limpo’ – antes da análise da idoneidade dos sócios ou dos gestores das sociedades que solicitam a licença. Ferreira Leite diz também que nunca fez negócios com qualquer ramo das Forças Armadas.

Contudo, de acordo com a consulta do PÁGINA UM ao Portal Base, a Leitek fez um contrato no valor de 61.820 euros com o Estado-Maior do Exército para fornecimento de detector de cabos electrónicos, magnetómetro e detector de circuitos electrónicos em finais de 2018 pelo valor de 61.820 euros. Contabiliza ainda três contratos com a Polícia de Segurança Pública e um com a Guarda Nacional Republicana, embora até agora não surja ainda nenhum em data posterior à nova licença para comércio e indústria de tecnologias militares. No entanto, a licença é também para actividades de exportação.

Carlos Lopes Pires, secretário de Estado da Defesa do Governo de António Costa, que tomou posse em Julho de 2023, não concedeu apenas um despacho polémico a conceder uma licença de comércios de tecnologias militares à empresa de um cidadão da Córsega na Zona Franca da Madeira. Também não conferiu a idoneidade do sócio único da Leitek, já com uma impeditiva condenação por corrupção.

Saliente-se que Clélio Ferreira Leite é também destacado membro da World UAV [Unmanned Aerial Vehicle] Federation, um organismo sedeado em Hong Kong e controlada sobretudo por personalidades e empresas chinesas. Os denominados veículos aéreos não-tripulados, vulgarmente designados por drones, têm vindo a ganhar uma grande preponderância em operações militares, como se tem observado nos conflitos na Ucrânia e Gaza, tendo sido desenvolvido nos anos mais recentes quer novas tecnologias de ataque como de defesa.

Aliás, de entre as 12 licenças concedidas pelo Ministério da Defesa para comercialização de tecnologias militares desde 2023 constam, além da Leitek, pelo menos outras duas que exercem a sua actividade no sector dos drones: a Beyond Vision, sedeada em Aveiro, e a Swatter Company, uma start-up de Lisboa ligada ao ISCTE. No entanto, esta última apresenta uma tecnologia de desactivação de drones, ou seja, constitui um sistema de defesa.


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