A pretexto dos pedidos de censura dos partidos de esquerda a eventuais ou supostos discursos de ódio e de xenofobia, o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, veio hoje defender ‘super liberdade’ e restrição mínima para os deputados, mas sugere uma meditação conjunta para a criação de um adequado código de conduta dos deputados, como sugerido este domingo pelo colunista do PÁGINA UM José Melo Alexandrino num artigo de opinião. Aguiar-Branco não esconde a influência deste artigo de Melo Alexandrino, professor da Universidade de Lisboa – que passou a escrever no PÁGINA UM, numa coluna intitulada ‘Isto assim não anda’ –, porque o cita de forma explícita.
O presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, reforçou hoje, através de um documento de oito páginas, a sua posição de não censurar discursos políticos em plenário, embora defendendo a aprovação de um Código de Conduta. E cita explicitamente, referindo-o, trechos de um artigo de opinião de José Melo Alexandrino, professor universitário da Universidade de Lisboa, publicado no PÁGINA UM.
Além de citar outros constitucionalistas – como Gomes Canotilho e Vital Moreira, que defendem que “a Constituição não prevê o delito de opinião, mesmo quando se trate de opiniões que se traduzam em ideologias ou posições anticonstitucionais” –, Aguiar-Branco considera que, tal “não significa que, no plano político e social, determinados discursos ou expressões não possam ou não devam ser contestadas ou criticadas e que, no plano criminal, as infrações cometidas no exercício da liberdade de expressão não tenham consequências, designadamente quando, na atuação individual concreta e analisadas as coisas à luz do direito penal, se conclua por um excesso no uso da liberdade de expressão, que justifique a aplicação de uma sanção penal”.
E a seguir o presidente da Assembleia da República defende, acrescentando “como muito bem realçou o Professor José Melo Alexandrino”, que o Parlamento deve “meditar numa reforma da Casa, a começar pelo Código de Conduta dos Deputados e respectivas estruturas de supervisão, pela reforma do Estatuto dos Deputados ou do próprio Regimento, como pessoalmente, por diversas vezes, tive oportunidade de assinalar, reforçando que já existem mecanismos regimentais que permitem aos Deputados reagirem – designadamente, perante expressões que propaguem, incitem, promovam ou justifiquem o ódio racial, a xenofobia ou outras formas de ódio baseadas na intolerância”, como seja a figura do protesto, ou ainda, equacionar-se a criação regimental de um voto de rejeição imediatamente submetida a votação do plenário.
Ora, no domingo passado, José Melo Alexandrino, no seu mais recente artigo de opinião da coluna ‘Isto assim não anda’ no PÁGINA UM, defendeu que, entre os deveres e direitos constitucionais dos deputados “não há porém nenhum que contenda com a liberdade de expressão ou que imponha ao Deputado a moderação no uso da linguagem”, acrescentando ainda que, no limite, até pode mentir, se esta for “subjectiva” (ou seja, o próprio está convencido de que diz a verdade), ou mesmo “objectiva”, excepto de for numa comissão de inquérito.
Em todo o caso, salientando que não fazia sentido o “alarido” em redor da reacção de Aguiar-Branco às palavras do líder do Chega, Melo Alexandrino defendeu no seu artigo no PÁGINA UM que “tal não significa que o Parlamento não deva meditar numa profunda reforma da Casa, a começar pela aprovação de um adequado Código de Conduta dos Deputados e respectivas estruturas de supervisão (que não devem ser compostas apenas por Deputados), pela reforma do Estatuto dos Deputados e da Lei orgânica da Assembleia da República (onde não são poucas as ambiguidades e as normas flagrantemente inconstitucionais), e a terminar na reforma do Regimento, que espera há 18 anos por grandes obras de reparação (e não remendos)”. Ou seja, Aguiar-Branco seguiu ipsis verbis a sugestão de José Melo Alexandrino.
José Alexandrino Melo disse hoje ao PÁGINA UM que o actual código de conduta, aprovado em 2019, “é pura e simplesmente inútil”, pois não especifica quaisquer comportamentos ilícitos, dentro e fora do Parlamento, mostra-se vago quanto aos deveres e procedimentos aplicáveis, não define órgãos de supervisão específico, para além da Comissão da Transparência, e sobretudo não prevê sanções, como multas ou suspensões.
Aguiar-Branco, nesse seu texto concluído hoje, e sugestivamente intitulado “A liberdade de expressão: uma ‘super liberdade’ de proteção máxima e de restrição mínima”, tece mais considerações numa tentativa de ‘esvaziar’ uma polémica alimentada pelos partidos de esquerda. E segue as sugestões de Melo Alexandrino de encontrar modelos formais de contestar opiniões sem censura.
O presidente da República conclui que “o direito fundamental de liberdade de expressão e de informação, cujo exercício não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo de censura”, sendo que no caso dos deputados o primeiro desses direitos é reforçado “quanto aos votos e opiniões emitidos no âmbito da sua função parlamentar”. E, acrescenta, nessa medida “não cabe ao Presidente da Assembleia da República a avaliação do discurso político, ainda que eticamente desvalioso, nem lhe compete, em nome dos poderes regimentais que lhe são conferidos, instituir uma cultura de cancelamento linguístico, freando opiniões e assumindo-se como ‘guardião’ do aceitável e do politicamente correto”.
Como já se tornara evidente da semana passada, Aguiar-Branco afasta-se ainda mais da ‘filosofia de intervenção’ censória seguida pelo seu antecessor, o socialista Augusto Santos Silva. O actual presidente da Assembleia da República defende que o Regimento da Assembleia da República “tem natureza organizatória do debate e efeitos inter partes”, apenas lhe conferindo poderes “de criação de um espaço de discurso público isento de constrangimentos, aberto ao confronto de ideias, que garanta que o exercício do mandato conferido pelo povo seja exercido sem receio de represálias”.
Nesse sentido, acrescenta Aguiar-Branco não pode essa função ser exercido para “condicionamento do debate político, mas sim evitar que este possa ser condicionado por injúrias, ofensas, chantagens ou ameaças entre os intervenientes”.
E termina de uma forma que remete, em última instância, para o âmago da democracia: “Numa sociedade democrática e plural, a avaliação e a derrota do discurso político faz-se com recurso a argumentos e com a confrontação objectiva da verdade dos factos, nunca por via da imposição de silêncio ou de censura, sem que isto signifique condescendência, concordância ou validação de opiniões e ideologias que, como se frisou, apenas ao povo cabe apreciar e julgar através da arma que dispõe, o voto”.
N.D. Acrescentado às 22h07 de 22/05/2023, as declarações de José Melo Alexandrino sobre as falhas do actual código de conduta, e da necessidade de ser melhorado.
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