CRÓNICAS DA UCRÂNIA

A solidariedade também atrai abutres

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por Nuno André // Abril 13, 2022


Categoria: Exame

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O jornalista Nuno André esteve três semanas num centro de refugiados ucranianos na fronteira polaca, e fez várias incursões pela Ucrânia em ajuda humanitária. Regressado a Portugal, nos próximos dias mostrará aquilo que viu e sentiu. Eis o segundo episódio de Crónicas da Ucrânia.


Na constante tensão entre aquilo que consideramos ser bom, porque nos dá prazer, e aquilo que tem de ser feito, porque é nosso dever, está o eixo em torno do qual se desenvolve o nosso carácter. Assim, se as dificuldades nos proporcionam oportunidades – vimos, ouvimos e lemos –, então não podemos ignorar.

Portugueses, espanhóis, franceses, italianos, alemães, polacos, e tantos outros cidadãos do Mundo, partiram em carros particulares, enviaram carrinhas, alugaram autocarros, com a nobre intenção de levar mantimentos e resgatar famílias ucranianas.

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Para nós, portugueses, tratou-se de uma viagem, entre ida e volta, de cerca de sete mil quilómetros, a gastar entre mil e três mil e quinhentos euros, dependendo do veículo ser ligeiro ou pesado, e a despender no mínimo seis dias, caso não tenha havido paragens para pernoitar ou descansar durante uma viagem de mais de oitenta horas.

Estes números são meramente indicativos, e dependeram da carga, do número de condutores ou das obrigações legais. Aqui, não se contabilizaram as despesas com o alojamento e alimentação. Gastaram-se milhares e milhares de euros em deslocações. Fomos generosos, não há dúvida.

Esta ajuda humanitária não esperou por instruções governamentais. Diria mesmo que não dependeu em nada das associações ou organizações oficiais teoricamente organizadas e estruturadas.

Na generalidade, a acção humanitária eclodiu no seio das famílias comuns, em reuniões de jantar ou em encontros informais entre amigos, que não se conformaram com o cenário desastroso que diariamente passou a invadir os nossos lares.

Por tudo isto, este texto podia terminar por aqui. Eventualmente, concluindo que se o egoísmo produz um efeito deletério sobre o desenvolvimento da sociedade, o altruísmo evoca o que de melhor existe no ser humano, para viver, e persistir em viver, em comunidade.

Contudo, na verdade, a ajuda humanitária aos refugiados ucranianos teve tanto de belo como de perverso. Somos, por isso, obrigados a denunciar, a entender e a refletir sobre aquilo que aconteceu, e continua a acontecer, nas fronteiras, nos campos de refugiados. De forma perversa, mas também discreta. E, por isso, mesmo, por discreta, persistente.

Os centros humanitários de apoio aos refugiados e sobreviventes ucranianos surgiram logo nos primeiros dias após a invasão pela Rússia. E de um modo voluntário e improvisado. E não estando preparados para receber tanta gente, funcionaram; ainda que sem liderança, estrutura ou organização formal.

Além dos problemas inerentes ao grande fluxo de pessoas – como a higiene (ou falta dela) –, estiveram em causa problemas de segurança.

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Nunca faltaram alimentos nem transportes nem cuidados de saúde. Os refugiados eram, na sua maioria, mulheres, crianças e idosos que caminhavam com ar cansado, desolado, entristecido. Traziam consigo toda uma vida arrumada numa pequena e singela bagagem. Sem casa, sem conforto, sem destino.

Esta fragilidade abriu as portas aos criminosos – pervertidos, carniceiros – que, apercebendo-se dos pontos fracos, facilmente aproveitaram para raptar e traficar pessoas. Levaram-nas consigo. Fizeram-nas desaparecer. Nunca mais saberemos do seu paradeiro, e nem sequer daremos pela sua ausência. Serão vítimas da guerra. Os anónimos desaparecidos que caem nas estatísticas das estimativas. Sem rosto. O seu desaparecimento individual jamais será notícia.

Durante as primeiras duas semanas do conflito, os campos de acolhimento não gozavam de vigilância nem de um registo capaz de cruzar informação sobre as pessoas que entravam e saíam. Qualquer motorista, que ali chegasse, parava o carro e oferecia boleia. Tudo simples. Não havendo controlo, os raptores circularam pelos corredores junto aos quartos onde dormiam centenas de refugiados, no meio de tantos outros que ofereciam autêntica ajuda humanitária.

Fotografavam e filmavam crianças e mulheres, enquanto estas dormiam ou conversavam. Escolhiam. Apresentavam-se mais tarde com a promessa de lhes oferecerem um transporte, uma casa, um emprego, uma vida renovada, nova.

Mostravam, de forma encenada, fotografias dos seus lares, apresentavam contratos de trabalho como garantia de emprego, e exibiam filmes da sua própria família, talvez fictícia, que se mostrava contente e preparada para os receber. Actuavam com rapidez e astúcia.

O comportamento destes homens e mulheres chamou à atenção dos verdadeiros voluntários e, quando confrontados, estes limitavam-se a fingir não perceber a língua, saindo de cena sem dar nas vistas. Enquanto não houve uma forte presença policial nestes centros, pouco foi possível fazer para impedir esses crimes.

Chegou a haver denúncias, e pessoas identificadas pelas autoridades. Contudo, sem provas concretas – ou porque não tinham sido apanhados em flagrante delito –, pouco ou nada se conseguiu fazer.

Ser-se jovem, mulher, bonita ou elegante eram critérios essenciais no momento de escolher quem resgatar. Ali, a generosidade era aplicada segundo o peso e a medida. Fez doer a alma. Ainda me faz doer.

Depois de terem sido aplicadas regras de segurança apertadas, o ritmo abrandou. Passou a ser obrigatório o registo de cada motorista e a viatura à chegada e à saída. Cada refugiado era registado à entrada e só podia sair depois de declarar todos dados, de forma a saber-se com quem e para onde seguia. Proibiu-se a circulação no interior dos espaços reservados aos refugiados, e criaram-se postos de controlo à saída do estacionamento.

Enquanto estive, durante três semanas em Przemyśl, consegui perceber melhor a diferença entre solidariedade e bondade. Em nome da solidariedade, as mulheres bonitas também devem ser resgatadas – e mesmo sendo a beleza um aspecto relativo e discutível, constatei ser esse um critério determinante para esta mobilização. A solidariedade também atrai abutres.

Já a bondade, não repara no número de dentes, no busto ou nas cicatrizes provocadas pelo tempo. Não olha para a cor da pele. Não olha a origem dos refugiados. Nem olha para o conflito.

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