TEM DIAS

O sal e o açúcar

open book on brown wooden table

por Sílvia Quinteiro // Junho 9, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Entro pela noite. Gato pardo, deslizo pela cidade. Contorno-a. Esgueiro-me pelas estradas que a cintam. A hora vazia convoca os sentidos. A passada forte. A respiração profunda. A noite perfumada e fresca. Oliveiras, pampilhos, amendoeiras, canaviais, salgados. Maresia.  O piso vermelho iluminado. Encontro a maré baixa e viro na rua em cotovelo. Um pequeno bando de flamingos alimenta-se preguiçosamente na água turva das salinas. Surpreende-me que se alimentem à noite. Nunca tinha visto. Detenho-me a observá-los. Fotografo-os. Dois cães com tamanho de gato e ladrar soprano surgem do nada. Ameaçam-me como podem. Atrás deles um homem de andar ligeiro. Invulgarmente magro. Calças arregaçadas até ao joelho, balde numa mão, cana de pesca na outra. Pés de lama. Assobia e grita:

– Pipoca! Micas! Já para aqui. Eles não mordem. Boa noite.

pink flamingo

Devolvo o cumprimento. O homem pára  e pergunta se estou a fotografar as muralhas. Respondo que sim. Não tenho a certeza de haver motivo para continuar a conversa. Mas o homem dá alguns uns passos na minha direção. Pergunta-me se sou de cá.  Não sei porquê, digo-lhe que não.

– A parte amarela não pertence à muralha. Foi um enxerto que ali puseram. Era para ser uma fábrica de cerveja, mas nem uma mini! – Diz por entre uma gargalhada desdentada. – É verdade, menina. Só tem o nome. Cerveja, nem uma gota. – E avisa-me de que não devia andar por ali sozinha àquela hora. Diz que à noite é muito deserto. Não costuma haver problemas, mas nunca se sabe. E sem me dar tempo para retorquir, pousa o balde. Encosta-lhe a cana. Puxa de um cigarro. Acende-o:

– Antes de entrar em casa. A minha Maria não gosta que eu fume. Marafa-se toda.

E, entre baforadas, explica-me que as casas no outro lado da estrada são quase todas da família dele. Já os avós ali viveram. Eram marnotos. Trabalharam toda a vida nas salinas. Fizeram ali “umas barraquinhas para ter onde enfiar a cabeça”.

gray smoke digital wallpaper

– Era no tempo da fome, menina. Muita miséria. A vida era custosa. A minha mãe tinha seis filhos para criar. Uma vagoneta de sal cortou-lhe dois dedos e no dia a seguir já lá andava.

Diz-me que agora não é assim. Já não vivem do sal. As coisas estão melhores. Não são ricos. Ele tem de ir ao mar de vez em quando para dar uma ajuda. Mas é comerciante. Vende nas feiras. Dá para as sopas e deu para pôr a filha a estudar.

 – É enfermeira. Vive numas boas casas. – explica, num misto de orgulho e felicidade.

Apaga o cigarro. No ar, um odor a fatias douradas sobrepõe-se ao da maresia.

– Vou andando que já há jantar. As fatias da minha Maria e uma pelangana de café? É o “desimagina”. 

Despedimo-nos. Vejo-o entrar numa casa de madeira, pobre, antiga, mas cuidada. À porta uma roulotte com imagens do Noddy, do Mickey e do Shrek. Letras garrafais com o nome da família. Logo abaixo: “Pipocas”,  “Algodão doce”.

white ceramic bowl on pink textile

Tiro mais algumas fotografias. Já não há flamingos. Capto a inútil fábrica da cerveja. Enquadro a lua. O quarto crescente hasteado sobre as muralhas remete para a sua origem.

De dentro de casa, ouvem-se risos. Uma mulher vem à rua deitar comida aos cães.

Penso nas rabanadas. Cheiram a afeto temperado com uma pitada de sal e muito açúcar. Penso nas vidas das pessoas que habitaram e habitam este lugar à margem da cidade. Em como trouxeram o sal e trazem agora o açúcar às vidas dos outros.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.