ERC ABRIU HÁ UM ANO 7 PROCESSOS E IDENTIFICOU 14 JORNALISTAS 'COMERCIAIS'. Deu (ainda) em nada

Operação Babel: Contratos promíscuos de Domingos de Andrade foram revelados pelo PÁGINA UM em 2021

por Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira // Junho 11, 2024


Categoria: Imprensa, Exame

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Escutas da ‘Operação Babel’ confirmam o papel de Domingos Andrade – actual diretor-geral editorial do Jornal de Notícias e da rádio TSF, e sócio de uma das empresa que está a adquirir alguns títulos da Global Media – na angariação de contratos com a autarquia de Vila Nova de Gaia alegadamente a troco de notícias. Uma parte das escutas é divulgada hoje pelo Correio da Manhã, mas desde 2021 que o PÁGINA UM tem investigado e revelado os contratos promíscuos envolvendo Domingos de Andrade e a Global Media. Mas não só. Outros grupos de comunicação social portugueses têm sido ‘apanhados’ pelas investigações do PÁGINA UM com ‘parcerias comerciais’ que envolvem a produção de notícias à medida e mesmo a realização de ‘entrevistas’. Na sequência das investigações do PÁGINA UM, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social chegou a abrir contra-ordenações a sete empresas de media por contratos promíscuos e enviou a identificação de 14 jornalistas ‘comerciais’ para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ). Um ano depois, aquilo que daí saiu foi, para já, nada.


Domingos Andrade, actual diretor-geral editorial do Jornal de Notícias e da rádio TSF – e também um dos sócios das empresas que se apresta para comprar títulos à Global Media – foi ‘apanhado’ em escutas comprometedoras no decurso das investigações do Ministério Público da chamada Operação Babel‘, envolvendo suspeitas de corrupção na autarquia de Vila Nova de Gaia e na sua empresa municipal Gaiurb. Nas escutas divulgadas hoje pelo Correio da Manhã destacam-se fortes indícios de que Domingos Andrade, que manteve sempre carteira profissional mesmo quando era gestor de empresas de media, ‘vendeu’ notícias a troco de negócios.

Esta não é propriamente uma novidade, mas apenas uma confirmação de um modus operandi que afecta enormemente a credibilidade da imprensa: em 2021, o PÁGINA UM começou a publicar investigações sobre contratos promíscuos entre grupos de media e responsáveis editoriais, entre os quais despontava a Global Media e também, entre outras, a autarquia de Gaia, presidida pelo socialista Eduardo Vítor Rodrigues.

Domingos Andrade assinou contratos comerciais apesar de, na altura, ter carteira profissional de jornalista e responsabilidades editoriais em órgãos de comunicação social do grupo Global Media. Na sequência das investigações do PÁGINA UM, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista foi forçada a aplicar uma multa de 1.000 euros ao jornalista que tem ainda activa a sua carteira profissional.
(Foto: Captura de imagem de vídeo da audição no Parlamento)

Foi em 26 de Dezembro de 2021 que o PÁGINA UM começou a publicar uma investigação sobre os interesses de Gaia na contratação em particular da Global Media – havendo também contratos com o Público e a Cofina, mas em valores muito inferiores: “Gaia paga mais de meio milhão de euros em contratos com grupos de media através de empresa com dívida astronómica”.

Na altura, o PÁGINA UM revelou que a Gaiurb, empresa de gestão urbanística e habitacional de Gaia, tinha efectuado três contratos com empresas da Global Media, entre as quais a TSF e o Jornal de Notícias, num total de 465.000 euros, sendo que todos os contratos foram realizados por ajuste directo, sem visto prévio do Tribunal de Contas, e contra o código de contratos públicos.

Recorde-se que Domingos de Andrade assumiu durantes vários anos, como jornalista, funções de responsável editorial de diversos órgão de comunicação social da Global Media (DN, JN e TSF), ao mesmo tempo que era administrador da holding – sendo o braço direito executivo de Marco Galinha até ao ano passado –, e era também, de acordo com o Portal da Transparência dos Media, gerente da TSF – Rádio Jornal Lisboa, da TSF – Cooperativa Rádio Jornal do Algarve, da Difusão de Ideias – Sociedade de Radiodifusão, da Pense Positivo – Radiodifusão e ainda vogal do conselho de administração executivo da Rádio Notícias – Produções e Publicidade. Acabou afastado durante o curto ‘reinado’ do World Opportunity Fund, durante a administração de José Paulo Fafe, mas regressou com grande protagonismo, não apenas ‘recuperando’ os cargos editoriais como assumindo um papel de charneira na passagem de alguns títulos da Global Media para a esfera de duas empresas-irmãs: a Notícias Ilimitadas e a Verbos Imaculados. Nesta última empresa – que quer passar a controlar o Jornal de Notícias e a TSF, apesar de ter um capital social de apenas 777 euros, Domingos Portela entra mesmo como sócio, com uma quota de 20%. É o único accionista em nome individual, visto que os outros são empresas: Parsoc (30%), OTI Investments (25%), Mesosystem (15%) e Ilíria (10%).

Como o PÁGINA UM noticiou no final de 2021, um primeiro contrato com a Gaiurb foi assinado em Dezembro de 2020 para o evento “Praça de Natal Jogos Santa Casa em Gaia”, que incluía a sua divulgação “junto da imprensa e outros meios de comunicação social”, num valor de 195.000 euros. Neste contrato, o ajuste directo foi justificado com os seguintes argumentos: “não existe alternativa ou substituto razoável”; e “inexistência de concorrência”.

contrato foi renovado, para o mesmo fim, a 3 de Dezembro de 2021, com o mesmo valor, sem justificação para ser feito por ajuste directo. No contrato de 2020 ainda se apontavam os motivos para o ajuste directo. No segundo contrato nada se refere.

Estes dois contratos comerciais foram assinados por Domingos de Andrade, quando era simultaneamente administrador e director de conteúdos da Global Media e director da TSF, o que é incompatível segundo o Estatuto do Jornalista. Na sequências das investigações do PÁGINA UM, Domingos de Andrade acabou por ser alvo de um processo de contra-ordenação por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), que lhe aplicou uma singela multa de 1.000 euros e nada mais. Apesar da evidência da ilegalidade, Domingos de Andrade impugnou judicialmente, estando o caso para decisão desde Março do ano passado. E a sua carteira profissional do jornalista/gestor, com o número CP 1723 foi entretanto revalidada, encontrando-se activa.

Já sem a assinatura de Domingos de Andrade, a Global Media conseguiu manter contratos para a organização e promoção das festas natalícias de Gaia com a Gaiurb, sempre sem o incómodo de qualquer concorrência, porque a Gaiurb justifica os ajustes directos da forma que melhor lhe convém, perante a passividade do Tribunal de Contas; ora uns anos por estar em causa espectáculos, ora por inexistência de concorrência por “motivos técnicos”, ora por alegadamente ser necessário proteger direitos de propriedade intelectual. Quem não está protegido são os contribuintes: só estes cinco contratos natalícios que começaram a ser garantidos por Domingos de Andrade já custaram à autarquia cerca de 1,05 milhões de euros, incluindo IVA.

Eduardo Vítor Rodrigues, presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, escreveu mais de 60 artigos como colunista regular do Jornal de Notícias. (Foto: D.R.)

De resto, além das suspeitas de favorecimento noticioso da autarquia de Vila Nova de Gaia nas publicações lideradas por Domingos de Andrade, o próprio presidente da edilidade socialista, Eduardo Vítor Rodrigues, foi um colunista regular do Jornal de Notícias, tendo começado a publicar artigos de opinião no jornal nortenho desde Junho de 2020. No total, escreveu mais de 60 artigos, que deixaram de estar disponíveis no site do jornal. O ‘apagão’ das sapientes opiniões do socialista que preside Gaia sucedeu imediatamente depois de um artigo do PÁGINA UM ter revelado em Maio do ano passado esta relação: ou seja, um presidente de uma autarquia cliente da Global Notícias tinha um espaço de opinião no Jornal de Notícias. As relações entre a Global Media e a autarquia de Gaia contrariam todas as regras da gestão adequada de dinheiros públicos, chegando ao ponto de se pagar integralmente as verbas dos ajustes directos antes mesmo da execução dos serviços.

O PÁGINA UM tinha também detectado um outro contrato do grupo Global Media com a Gaiurb, que foi concretizado em 29 de Março de 2021 com a TSF – através da sua empresa Rádio Notícias – por ajuste directo para a produção de 26 episódios semanais, emitidos aos microfones entre Abril e Outubro. Este contrato comercial – que possui, em nome da Global Media, a assinatura do jornalista Afonso Camões, o que constitui uma função incompatível nesta profissão – estipulava, na prática, uma subordinação editorial da TSF perante a Gaiurb.

O contrato foi apresentado como sendo uma “parceria TSF/ Gaiurb”, tendo o programa sido intitulado “Desafios do Urbanismo”, e envolvido um pagamento de 75.000 euros. O programa foi conduzido por um jornalista Miguel Midões, mas sem liberdade editorial. De resto, este foi um dos 14 jornalistas identificados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em Julho de 2023, na sequência de uma investigação do PÁGINA UM que detectou 56 contratos ‘suspeitos’ assinados pelos principais media portugueses desde 2020. Os podcasts também desapareceram entretanto do site da TSF – mais uma vez após as revelações do PÁGINA UM -, mas ainda podem ser ouvidos aqui (ou confirmado a sua existência aqui, se entretanto também forem apagados). Uma parte dos episódios tinham a participação de políticos ou de entidades e personalidades de Gaia, o que revelava a existência não de jornalismo mas de promoção.

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Além da Global Media, outros grupos de comunicação social têm assinado contratos com entidades públicas que incluem cláusulas incompatíveis com a actividade jornalística. E estes são apenas a ‘ponta do iceberg’, já que os contratos comerciais feitos com entidades privadas não são públicos, pelo que a promiscuidade entre órgãos de comunicação social e o sector empresarial e financeiro será também de relevo e é ignorada por reguladores e pelo público.

Entre os jornalistas ‘comerciais’ que foram identificados pelo regulador dos media, constam, além de Miguel Midões, por causa dos programas da TSF relativos ao contrato da Gaiurnb, também o jornalista da Visão Luís Ribeiro (CP 3188), coordenador da secção de Ambiente da revista Visão e habitual comentador na SIC Notícias, a quem a ERC apontou a autoria de cinco textos jornalísticos (incluindo entrevistas) assinados para cumprimento de um contrato com a Águas de Portugal para apoio aos Prémios Verdes, mas que estabelecia a obrigatoriedade de cobertura noticiosa e a publicação de artigos de opinião de dirigentes daquela empresa pública tutelada pelo Ministério do Ambiente. Ribeiro já se tinha destacado por aceitar fazer a cobertura de uma Conferência do Clima (COP26) em finais de 2021 para a revista Visão sob o patrocínio explícito da petrolífera Galp. O Estatuto do Jornalista permite, sem penalização, o uso da cláusula de consciência, ou seja, a recusa de aceitar notícias patrocinadas que, neste caso, configuram greenwashing.

Recorde-se que, nos processos abertos pela ERC, foram poupados directores e responsáveis editoriais de títulos que executaram contratos comerciais, incluindo: Mafalda Anjos (ex-directora da Visão), Rosália Amorim (ex-directora do Diário de Notícias), David Pontes (antigo director-adjunto e actual director do Público), Manuel de Carvalho (ex-director do Público), Inês Cardoso (directora do Jornal de Notícias) e Joana Petiz (ex- directora do Dinheiro Vivo).

Luís Ribeiro, jornalista da revista Visão, foi um dos 14 jornalistas ‘comerciais’ identificados pela ERC. O regulador abriu, há um ano, sete processos a empresas de media por contratos comerciais assinados com entidades públicas que eram incompatíveis com a actividade jornalística. Ainda não há qualquer decisão do regula, que, na análise dos casos promíscuos divulgados pelas investigações do PÁGINA UM, poupou directores de órgãos de comunicação social, os quais também executaram projectos comerciais e de marketing, o que é incompatível com o Estatuto do Jornalista.

As excepções foram Celso Filipe, director-adjunto do Jornal de Negócios (Cofina), e também o director da Exame (Trust in News), Tiago Freire. A ERC ainda identificou – para efeitos de averiguação, para eventuais processos disciplinares, por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) – mais 11 jornalistas: Rute Coelho (CP 1893), Carla Aguiar (CP 739), Adriana Castro (CP 7692), Alexandra Costa (CP 2208) – por textos publicados em periódicos da Global Media –, Filipe S. Fernandes (CP 1175) e António Larguesa (CP 5493) – por textos publicados no Jornal de Negócios –, Mário Barros (CP 7963) – por um texto publicado no Público – e ainda José Miguel Dentinho (CP 882), Fátima Ferrão (CP 6197) e Francisco de Almeida Fernandes (CP 7706) – por textos publicados no Expresso.

Isto apesar de diversos directores de media terem participado activamente na execução de contratos comerciais, nomeadamente como participantes regulares como ‘mestres-de-cerimónia’ e moderadores de eventos pagos aos respectivos grupos. E, em última análise, foram também responsáveis pela cobertura noticiosa dos eventos pagos, que em muitos casos estão previstos nos cadernos de encargos, o que constitui uma ingerência externa considerada ilegal pela Lei da Imprensa. Apesar de terem sido abertos processos de contra-ordenação pela ERC a sete empresas de media (Global Media, Trust in News, Impresa, SIC, TVI, Cofina e Público), em há um ano, ainda não foram concluídos, não sabendo assim se serão multados, ou, em alternativa, perdoadas as infracções pelo regulador, atendível a situação financeira débil da generalidade da imprensa.


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