COMPLEXO TITANIC

Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

minuto/s restantes

(PRIMEIRA PARTE)

Nos tempos que correm, não é fácil falar de pessoas muito menos para dizer bem. As redes sociais deturparam as relações que já não eram famosas antes do planeta Google. 

Nada parece credível, soa sempre a ressabiamento. “Se ele está a escrever aquilo é porque deve ter alguma coisa contra” pensarão alguns. “Se está a dizer bem, está a engraxar”.

Não!!!

A crispação ganhou o campeonato e qualquer opinião irá sempre parecer uma arma de guerrilha ou uma vingança. A desconfiança é o novo mapa-mundo num contexto em que os socialistas e comunistas acham que vivemos num sistema neoliberal, e os neoliberais acham que vivemos num mundo comunista ou socialista.

É culpa das pessoas também.

Mas vou tentar escrever sobre o Ricardo Araújo Pereira sem entrar nesse campeonato desolador.

Às vezes pergunto-me, o que não pensaria o provocador e magnífico Thomas Bernhard acerca destes tempos extremados em que o norte anda a sul!

Sabemos que, para invocar aquilo que de melhor os humanos têm pressupõe haver valores e, ainda para mais aqui tratando-se do cómico mais proeminente e com mais (aparente) piada do país, não se vislumbra tarefa fácil criticá-lo estando num mundo em que todas as pessoas já devem ter uma opinião generalizada, (na maior parte das vezes, aferindo-se basicamente pelo gosto, o que é normal, não se tratando de especialistas), e também porque não sou especialista em esventrar cómicos.

A minha única especialidade são as amêijoas à Bulhão Pato (confirmado pela TripAdvisor de Chelas).

E, tendo em conta também o difícil que é pôr as pessoas a pensar numa opinião divergente ou simplesmente diferente da sua, já formulada e reforçada pelo algoritmo humano, ainda se torna mais tramado, porque a fronteira é ténue entre a opinião e a piadola, e talvez seja essa a genialidade dos bons cómicos: fazer uma envolver-se na outra da forma mais natural possível.

Apesar de todos os ventos contrários, sinto-me preparado para a batalha interna que aí vem ao ter de olhar para o herói. 

Comecemos com uma nota didática.

Os portugueses dizem comediante que vem do inglês comedian, mas eu gosto da escola francesa em que comédien não é necessariamente ser cómico. É mais vasto, é ser actor.

É representar, e essa velha escola ainda tem glamour mesmo que a França esteja a perder o perfume. Por isso nunca me referirei a RAP como comediante. No entanto, entre a cultura estadunidense e francesa, ganha obviamente a primeira no poder de influência. No Ocidente já não se fala francês.

Indo ao assunto:

O entertainer tem características favoráveis: a capacidade de trabalho é um exemplo; tratar do olho cuidadosamente para, em terra de egos, continuar a ser rei será outro; não misturar a vida pública com a privada ou a capacidade de dizer os textos sem se enganar, mostrando uma boa coordenação motora e rítmica; estar no Governo Sombra (que tem outro nome) há bastante tempo e continuar a fazer rir os colegas de painel com análises sobre a actualidade, sobretudo a de manter alegre o risonho e deslumbrado moderador do programa que continua, ao fim de tantos anos, embevecido com as capacidades intelectuais do matulão, será também de sublinhar.

Contrariamente é facto não tão abonatório, não conseguir arrasar o Presidente da República que bem merece, ainda que se perceba.

Quem andar atento sabe que está sentado ao lado de um dos seus guardiões, o homem transparente, impoliticamente correcto: o assessor Pedro Mexia.

O cómico, às vezes parece que chateia não chateando (técnica tradicional da sociedade do espectáculo e que vem em todos os manuais), com a cumplicidade do próprio presidente que é insuportável e que já só se contenta em testemunhar os afectos e os sentidos torpes que ainda representa. Há quem diga que está maluco. Politicamente maluco, se é que não o foi sempre, mas com a simpatia dos media em geral para quem era uma raridade em inteligência e intuição.

Absurdo.

RAP habita também esse programa para fazer o contraponto ao direitolas de esquerda, João Miguel, que parece apreciar a vida em todo o seu esplendor e bem na minha opinião, ainda que ligeirinho demais. Mas não resulta muito bem. Aquilo parece um coro gregoriano de meia-idade.

Enfim, globalismo à la carte, mas disfarçado de não-sei-quê, é-nos oferecido semanalmente por estes governantes-sombra.

Mas esta é só a minha verdade possível de um mundo onde nada é estável, no qual tudo é fluxo.

Destaco ainda a capacidade que mostrou por ter conquistado estatuto inabalável, viajando anos a fio pelo centro mediático a ofender quem quiser, (desde que sejam os de baixo), não ficando sujeito ao ricochete, mantendo até o status sem qualquer efeito boomerang, mesmo que nada tenha a acrescentar intelectualmente digno de nota, como o próprio afirma repetidamente com muita leveza no género auto-depreciativo como mandam as regras do humor inteligente.

Acha-se palhaço. Percebe-se a esperteza.

Faz o trabalho sujo ao fim de semana e lava daí as suas mãos no Expresso e nos livros.

Sujo porque foge a confrontos e bate no senhor do acordeão vezes demais.

Puxa a corda para os dois lados e o status vai legitimando a corda.

Parece o sobe-e-desce dos jardins infantis que estão sempre no mesmo lugar ainda que em movimento quando humanizados. 

E não será difícil a IA inventar um clone do herói deste texto, porque o Ricardo é sempre o Ricardo. Não há um Ricardinho fora do sítio, não há um copo a mais, um texto que rasgue, nunca se viu publicamente pôr o pé fora da argola.

Nunca não pôs a máscara. Nunca foi ofuscado pela “realidade”.

Nunca fez humor sem querer… que eu saiba.

O sistema gosta. É previsível.

O sistema do humor quando pensa a sério, não gosta tanto. Os pares quando analisam são sempre fodidos, assim como o amor.

A técnica é o azeite dos humoristas, vem sempre ao de cima, quando já não são engraçados. Em televisão há que estar sempre bem oleado… E bronzeado. A televisão tem sempre a garantia da técnica. É uma máquina desumana.

Nisso o Herman é sábio, mas como cresceu sobretudo nos anos 80 com a CEE, perdoa-se mais. A ironia, o sarcasmo, o absurdo e a sátira penetravam melhor na realidade, não havia Internet.

Não era humorista qualquer um. Mas também havia Badarós que inevitavelmente só podiam acabar mal.

Os anos 80 eram o próprio ácido. As televisões alcalinavam, fazendo o contraponto.

A MTV cresceu com o Herman. Vídeo killed The Radio Star e por isso perdoa-se o Herman e a sua lavagem de políticas cavaquistas com o Parabéns.

Hoje o Herman pode ser impoliticamente incorrecto.

Tiro a isso o chapéu (que não uso).

Ele é VHS, o Gato Fedorento DVD. O Herman não precisa de menus, e como todo o bom retro resiste ao tempo. Esperemos que o Gato Fedorento também. Mas os DVDs afinal não duram assim tanto como se anunciava, estragam-se e desaparece o código sem deixar rasto, enquanto os VHS deteriorando-se, ainda têm o fantasma lá bem arrumado, aparecendo com uns saltos, chuva e umas linhas esverdeadas que até ficam bem no mundo digital. Dá excelentes remixes.

A parte chata, é que por todas estas razões este género de pessoas como o matulão, podem representar perigo. São eles, que em sistemas mais musculados e apertados podem dar cabo dos dissidentes… Ou não.

A História não é muda.

Escrevem bem como se costuma dizer, e trazem credibilidade por se instalar no inconsciente colectivo a ideia de que são muito inteligentes, mas não me parece que tragam um pensamento gangster na possibilidade do pensável e risível.

Mas neste sobe-e-desce o Ricardo, como é também esperto, sabe bem que os parques infantis são feitos por adultos. E Portugal muitas vezes parece um parque infantil cheio de carrosséis.

Quanto às suas crónicas, não as leio assiduamente, mas do que conheço, é menino para desancar os do costume com umas piadas sempre originais e a desafiar o cliché das más políticas, coisa que poucos sabem fazer como ele.

Imaginemos que só escrevia crónicas e artigos, certamente este texto não faria sentido.

Mas tudo é um todo.

Sem dúvida que agrada em geral, e para o comprovar, um dia no Frutalmeidas na Avenida de Roma, lugar de muita betalhada, ouvi uma rapariga dizer à sua mãe enquanto o lia no Expresso, que o Ricardo era muito engraçado e que era bom em tudo o que fazia, vendia bem electrodomésticos, fazia rir, gozava com os políticos e era sobretudo muito sério nas análises do quotidiano,  mas sempre com a sua graça e muita acutilância no humor de observação. A mãe enquanto lia outra parte do Expresso, confirmava a opinião e ainda acrescentava que gostava muito dos Gato Fedorento e que revolucionaram o humor em Portugal, rematando que escrevia muito bem. Acrescentou ainda que todas as mães do Frutalmeidas gostavam de ter um genro assim. Enfim, acordar e ter logo, uma manhã cheia de superlativos, só naquele lugar. Ali o mundo funciona regado a fruta, mas funciona, ainda se vislumbrando tenuemente o charme discreto da burguesia.

No Frutalmeidas é muito comum dividir-se o Expresso ao sábado de manhã enquanto se bebe um delicioso sumo e se come um pastel de massa tenra.

Concluí então que o Araújo era aquilo, um sumo fresquinho com fruta misturada e um pastel de massa tenra divinal, mas que deixa as suas inevitáveis consequências no estômago.

Ele tem a cara da Avenida de Roma. Ele é o beto perfeito. É como o antigo cinema Londres que também estava localizado nessa avenida, onde os filmes que lá passavam não eram os melhores, entretinham, ganhavam o seu Oscar de vez em quando, mas não chateavam ninguém. Eram sempre para toda a família. Vinham etiquetados muitas vezes de comédias dramáticas e tanto podiam ser americanas como francesas.

De quando em vez, lá aparecia um filme exótico para desenjoar.

Será a vida do RAP assim?

Hoje o Cinema Londres é uma loja do chinês.

Um amigo reforça que ele é como o Monte Velho, faça sol ou faça chuva é sempre vinho da mesma uva.

Neste tempo desolador e delirante, a desobediência quer dizer obediência, desde que disfarçada com humor.

Quem sabe, sabe.

E o rapaz, observa muito bem como realçou a rapariga do sumo de ananás com pitaia à mãe. O que o RAP observa os outros alcançam. É certo, mas o humor é muito mais que isso. O Seinfeld, por exemplo tem alma e podemos ver, sentir, cheirar, abominar Nova Iorque num simples diálogo, para além de fazer rir, mesmo que o estúdio da série Seinfeld seja em L.A.

Assim como em Larry David que com o humor negro nos faz apreciar a vida.

Julgo que às vezes os humoristas são mais poetas que cómicos.

Mas no Ricardo, instalou-se uma vulgar loja do chinês e podemos sentir a falsa porcelana, aquela que o Herman destruía com tiros.

O Herman deve andar desejoso de partir o RAP. 

Mas apesar disto tudo não estamos a falar aqui das ordinarices do Fernando Rocha que já nem é ser cancelado, é ter-se tornado na própria cancela e esperar que os automóveis eléctricos que vêm da esquerda o abalroem sem dó.

Para quem é branco, hétero e do PCP (ou foi), o cómico de Alfragide tem-se safado bem. Teve de encontrar certamente muitos artefactos retóricos e linguísticos para passar pelos pingos da chuva que vai escasseando por aqui pela Península. Mas nunca choveu tanto como neste ano.

Por falar em sol, o RAP sabe o que é um solário, pelo menos parece sempre bronzeado de Inverno.

Um solário, vistas bem as coisas, é uma boa imagem do actual humor mainstream. Queima, mas não torra, aquece, mas não consola, pinta, mas não borra.

Non sense.

É certo que o clima tem direito ao seu non sense, que também sofre de alterações.

skeches absurdos dos Monty Phyton que hoje parecem realismo, por exemplo.

Este humorista embora seja um profissional da opinião, parece não a ter quando é preciso. Não basta ser Charlie de vez em quando.

 

Queriam comédia para falar de comédia?

Para quem não sabe, oitenta por cento tem a ver com a técnica. Há livros no mercado e pdfs na Net a ensinar a ser-se um cómico. Há quem diga que é noventa por cento. Por isso o GPT pode hoje substituir uma parte dos cómicos na boa. O raio do algoritmo também já sabe dizer piadas.

Quero lá saber. Para mim ou tem piada ou não tem. Não sou especialista. A minha única especialidade é editar casamentos no Premiére.

O cérebro pode ser um órgão sempre aberto a correntes de ar, mas o RAP  vai ficando preso ao tempo, e depois não há vacina que o salve. Nem o fantástico Herman, o actor do big-bang televisivo português, com a sua terapia germânica lhe valeria na luta de voltar a apanhar o transporte.

Mas não sei se o rapaz dos Gato Fedorento alguma vez quis apanhar o comboio, não deixando, porém, de ser verdade que em tempos velozes, o TGV passa a grande velocidade. E depois com o passar dos anos vem o comboio do esquecimento. Como o Herman sabia ser ácido e alcalino e nos seus piores momentos, os dois ao mesmo tempo, nunca deixou de ter o bilhete em dia.

O Humor é uma arte para alguns, porque pode dar-nos a radiografia do Tempo, mas a cores e invertida.

As Tragédias nos gregos e na sua origem, tornavam as personagens melhores que aquilo que eram na verdade. 

A Comédia, tornava-as piores.

Imagino que o Ricardo tenha lido os gregos e deve ser essa a sua tragédia interior.

O humor pode simplesmente ser um trabalho sobre a Linguagem.

O Gato Fedorento fazia-o bastantes vezes, uma vez que consumiu Monty Phyton ao pequeno almoço e gostou do que não viu.

Fazer rir dá trabalho.

Fazer rir de quem trabalha, não dá assim tanto porque uma pessoa que trabalha expõe-se muito. O trabalho não liberta como escreviam os nazis à porta de Auschwitz. O trabalho dá trabalho.

Contudo há excepções.

E o Araújo Pereira também dá trabalho aos argumentistas por exemplo, aos técnicos, aos políticos, mantendo a máquina em ebulição,  que assim vai lavando mais branco como um bom detergente.

Ter um humorista do seu lado é ouro para a política.

Aos humoristas e aos jornalistas mainstream paga-se para que não escrevam. É uma indústria, um enlatado com as próprias gargalhadas já incluídas. Apanha-se as canas e faz-se a festa e como se vê, os políticos andam sempre por lá. O guião é sempre o mesmo.

Na indústria do humor nem sempre há trabalho porque às vezes a realidade já tem humor que chegue.

Na pandemia não houve muito, nem realidade, nem humor, nem trabalho e poucos se queixaram.

O raio do morcego não devia ter comido o pangolim. 

Há assuntos interditos, por isso talvez não o vemos crescer. Mas crescer para onde?

Perguntaria João César Monteiro.

Nos jornais há um vazio critico ao qual já nos habituámos. Os jornais mataram os jornais.

Um haraquíri pouco simpático com consequências avassaladoras. Um tiro na própria equipa, uma dentada no próprio cão.

Mas entre Joanas Marques e Araújos Pereiras, a diferença ainda assim é grande. Os Araújos têm cultura. As Joanas têm receitas.

Haters há muitos, assim como os chapéus que hoje os humoristas têm de usar para se protegerem do sol que quando nasce afinal já não é para todes.

Mas há solários em que só se queima quem quer.

O Ricky Gervais é muito mais branco, muito mais hétero e muito mais cómico e quando se queima, queima-se nos Golden Globe. 

O Ricardo queima-se na SIC do Balsemão.

Isto não é dizer mal. 

Tragam o Halibute.   

(CONTINUA)

Este texto é inspirado por este aqui da magnífica jornalista Elisabete Tavares.

Ruy Otero é artista media

Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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