O jornal Diário de Notícias, de 13 de Junho de 2024, publicou um trabalho da jornalista Fernanda Câncio sobre um Relatório do “Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura”, da Provedoria de Justiça, que denunciava ter encontrado “evidências de agressões a reclusos”, por guardas prisionais, sendo que seis desses casos estavam “suportadas por imagens de videovigilância” das próprias prisões.
Comecemos por duas notas de extrema importância para se analisar a situação:
Primeiro: o número peca por escasso, por muito escasso, e não há nenhum recluso, guarda prisional ou funcionários que trabalhem dentro das nossas prisões que não saiba isso. As agressões são “o dia-a-dia das cadeias”.
Segundo: ao falarmos de guardas prisionais agressores há que acentuar que sabemos serem uma minoria, ainda assim a poderem contar-se por dezenas, muitos deles perfeitamente identificados por serem “useiros e vezeiros” nesta prática, sendo que a imensa maioria da Corporação é constituída por profissionais empenhados, esforçados e dedicados. E que, muitos destes números, não se reveem nestas atitudes.
Também por isso, nos custa compreender a impunidade destes agressores, a cumplicidade (ainda que por inércia) de tantos desses profissionais que acabei de elogiar. Desde logo alguns dirigentes sindicais que optam por tentar negar uma evidência.
Obviamente que me refiro àqueles que agridem para mostrar que têm o “poder” de fazer o que entendem sobre quem consideram inferior, por incompetência para se fazerem respeitar e optando pelo terror ou, simplesmente, pelo prazer de agredir.
Se um agente de autoridade qualquer se vê forçado a agredir em legítima defesa, com toda a certeza não poderá ser criticado.
As agressões nas nossas prisões, na sua grande maioria, contudo, nada têm a ver com essa legítima defesa.
São agressões cobardes de quem se sente com poder para usar a força sobre aqueles que, sabem, não se podem defender, feitas fora de situações de conflito, preparadas cuidadosamente, em zonas sem câmaras de vigilância nem testemunhas e muitas delas depois do encerramento dos presos com vários guardas a entrar em celas, com o rosto tapado e sem a placa de identificação na camisa.
Também há inúmeras queixas contra elementos do GISP (uma força da guarda prisional conhecida pela excessiva agressividade) quer no transporte de presos quer quando chamada para situações de distúrbio em cadeias. Alguns dos relatos dessas agressões deviam fazer corar de vergonha os responsáveis antes de os levarem a responder em tribunais.
O que se segue às agressões é todo um processo de branqueamento de modo a evitar qualquer punição. É o corporativismo no seu apogeu.
Não há um elemento da Corporação que queira testemunhar contra colegas e os reclusos que tenham assistido são chamados e “aconselhados” a não falar sob pena de terem indeferidas todas as saídas jurisdicionais ou liberdades condicionais.
A maior parte deles cala-se de imediato. Os que teimam em depor são transferidos, prontamente, para cadeias a centenas de quilómetros da família o que, para além do castigo, dificulta as audições pelos inquiridores.
Estes, por sua vez, pertencem a um organismo de nome SAI (Serviço de Auditoria e Inspecção) que é definido como “o serviço de inspeção, fiscalização e auditoria às unidades orgânicas desconcentradas e aos serviços centrais da DGRSP, cuja atividade constitui instrumento essencial à verificação da legalidade e à manutenção da ordem e disciplina no Sistema de Execução de Penas e Medidas e Tutelar Educativo”.
Podia (e devia) ser um organismo independente, mas ficando sob a tutela da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, a sua total inércia, o seu desdém pelas queixas e os generalizados arquivamentos fizeram com que caísse num descrédito absoluto.
Os reclusos e os seus familiares há muito que desistiram de se queixar, até por medo das represálias.
As Associações vão fazendo o seu papel apresentando as queixas directamente na Procuradoria-Geral da República que, honra lhe seja feita, de imediato nomeia um Procurador para as confirmar, mas os obstáculos criados, com ameaças às testemunhas e falta de provas impede a punição dos agressores quer a nível criminal quer a nível disciplinar.
Os médicos e enfermeiros dos Estabelecimentos Prisionais teriam um papel importante se fotografassem os reclusos com as marcas das agressões e denunciando-as ao Ministério Público.
Ao optarem pelo cruzar de braços tornam-se, também eles, cúmplices das agressões.
Estas continuam e não será uma intervenção, a cada dez anos, da Provedoria de Justiça que acabará com estas atitudes ignóbeis e ilegais.
O recluso é um cidadão a cumprir uma pena ditada pelo Tribunal e ali não consta que deva ser sovado unicamente para gáudio de gentinha menor e doente.
A única maneira de alterar esta situação é com a intervenção de entidades como a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados ou a Subcomissão para a Reinserção Social e Serviços Prisionais.
A ida às diversas cadeias, sem aviso prévio, chamando reclusos ao acaso, ouvindo-os sem vigilância e garantindo a confidencialidade, permitiria que percebessem a realidade das nossas prisões.
Ficariam envergonhados de serem portugueses, estou seguro, mas poderiam lutar pela legalização daqueles espaços.
Leon Tolstói garantia: “Quem nunca esteve na prisão não sabe o que é o Estado”.
Os Deputados, os Juízes, os Advogados, os Jornalistas, deviam poder visitá-las, sem limitações para ficarem a saber como o nosso País é tão atrasado.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR-Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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