No célebre poema Cena do Ódio, escrito de um jorro em 1915, Almada Negreiros vociferava: “E inda há quem faça propaganda disto: a pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões”. Exageros de vate à parte, até por os versos seguintes fazerem referências pouco abonatórias, e injustas, à beleza das mulheres portuguesas, na verdade nem todos enchem “a barriga de Camões”; mas quem a enche, enche-a bem. Eis uma história exemplar de um repasto escondido (e irregular) no Dia de Portugal e de Camões, que custou quase 54 mil euros à Presidência da República, na coimbrã Quinta das Lágrimas, ligada à família da ministra da Justiça, Rita Júdice, e que está numa situação financeira de ‘ir às lágrimas’. Está em falência técnica.
No âmbito das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no início deste mês a Presidência da República destacava que teriam lugar em Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Coimbra e em Genebra, Berna e Zurique, na Suíça. No caso da cidade do Mondego, a nota salientava que, acompanhado por Luís Montenegro, Marcelo Rebelo de Sousa visitaria a Biblioteca Joanina e presidiria à Cerimónia Evocativa dos 500 anos de Camões, que se realizou na Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, “terminando o dia com um espectáculo musical no Páteo das Escolas”.
No próprio dia 10 de Junho, a Presidência da República divulgava, em destaque o cerimonial na Universidade de Coimbra, que demorou uma hora e meia, profusamente fotografado, e também o concerto nocturno “Eram tudo memórias de alegria”, no Pátio das Escolas. Mas nada se referiu nem se fotografou nas horas de intervalo entre o cerimonial e o tal concerto. E não foi por ter sido período particularmente desagradável, pelo contrário.
Hoje, o Portal Base revela o que se passou entre esses dois momentos: um jantar de gala na Quinta das Lágrimas, um local ligado a Camões – por ser o poeta que eternizou a fonte ligada aos amores de Pedro e Inês –, mas também à actual ministra da Justiça, por via da família Júdice, que gere a empresa que beneficiou do ajuste directo no valor de 53.924,93 euros.
De acordo com Portal Base, o contrato foi adjudicado pela Secretaria-Geral da Presidência da República no passado dia 29 de Maio por ajuste directo, alegando-se uma norma do Código dos Contratos Público que não poderia ser invocada, porque apenas se aplica a contratos de valor inferior a 20 mil euros, sendo que o contrato ficou próximo dos 54 mil euros. No limite, a Presidência da República teria sempre pelo menos de fazer uma consulta prévia a pelo menos três entidades, tendo em conta que tal já se pode aplicar quando os contratos são inferiores, como foi o caso, a 75 mil euros.
Não se sabe também, até pela ausência de fotografias, quantos convidados estiveram presentes, uma vez que não houve sequer contrato escrito, justificando-se essa ausência, impedindo assim o estabelecimento de um preço unitário, com recurso a mais uma norma de excepção que prescinde desse acto de transparência se a aquisição de serviços se fizer no prazo máximo de 20 dias e for de imediato consumido.
A única informação oficial é a breve descrição do objecto do contrato: “Jantar de abertura das comemorações dos 500 Anos de Camões oferecido por SEXA PR ao Corpo Diplomático e entidades académicas da Universidade de Coimbra – Catering, palamenta, iluminação, som e estruturas”.
Saliente-se que a empresa Quinta das Lágrimas, fundada nos anos 90 por José Miguel Júdice, deixou de ser familiar, estando agora sob controlo (60%) pela Oxy Capital, uma sociedade gestora detida por Miguel Callé Lucas, que também tem participações na imprensa regional, surgindo mesmo como director-adjunto do Diário de Leiria. No entanto, o administrador-delegado continua a ser Miguel Júdice, filho de Luís Miguel Júdice e irmão da ministra da Justiça, Rita Júdice, que há pouco mais de uma década chegou a ser administradora da Quinta das Lágrimas.
A empresa Quinta das Lágrimas já viveu, aliás, tempos muito mais bonançosos, que teve o seu auge no início do século quando chegou a ter o seu restaurante Arcadas com uma estrela Michelin. Embora ainda não tenha apresentado contas referentes ao ano passado, os prejuízos de 2022, superiores a 423 mil euros, apenas contribuíram para agravar uma situação financeira desesperante.
A empresa manteve-se em falência técnica, já com um capital próprio negativo em 2022 a superar os 3,8 milhões de euros, apresentando um passivo de 18,1 milhões de euros. Grande parte deste montante, cerca de 14 milhões de euros, era financiamento bancário, o que torna o seu futuro praticamente insustentável. Em 2022, quando as taxas ainda estavam baixas, a empresa teve de desembolsar mais de 347 mil euros em juros.
O jantar da Presidência da República, por isso, não vai, em abono da verdade, salvar a situação financeira da Quinta das Lágrimas que, pela análise das demonstrações financeiras, é quase de ‘ir às lágrimas’.
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