Gostava do final do ano. Novembro anunciava os meses de férias, época boa para se ler o dia inteiro sem adulto incomodando, pai ou mãe, mandando fazer os deveres.
Nos dias de sol forte escolhia a calçada da sombra, da estreita faixa de sombra junto à parede, para caminhar até a biblioteca. Ao passar por baixo das árvores, gostava de ver os estranhos desenhos que o sol – varando a galharia – fazia-lhe nos braços. Era como se ele fosse um sujeito tatuado, um pirata dos mares do Sul.
Toda segunda-feira, depois do almoço, saía de casa para a fornalha da rua. Com dois livros debaixo do sovaco, olhos cravados no chão, pensava às vezes: quem me vê logo percebe que eu sou um intelectual.
Cruzava sucessivas ilhas de luz e de sombra: calçada, árvores, calçada, marquises, calçada, postes, calçada, toldos, calçada, tabuletas.
Chegando ao centro da praça, detinha-se por uns minutos no chafariz para admirar os negros peixes de ferro que esguichavam pela boca escancarada e os peixes vermelhos que, sinuosos, brincavam de pega-pega na água verdolenga do tanque.
Dali podia ver a fachada imponente da Biblioteca. Uma fábrica silenciosa. Era assim que ele gostava de pensar: uma silenciosa fábrica de histórias interessantes. As estantes e mesas eram as máquinas. Os livros eram a matéria-prima. Os leitores eram os operários.
Deixando o chafariz, dirigia-se ao banco da praça que ficava bem na frente da Biblioteca. Sempre que estava por ali, fazendo hora até que fosse aberto o portão, ficava observando o bando de gurias reunidas diante do velho edifício. Era muita guria bonita junta num só lugar.
De quando em quando seu olhar era atraído para uma das retardatárias que atravessavam a rua correndo sem olhar para os lados. Vinha-lhe, então, um vago pressentimento: um dia, um auto vai atropelar uma dessas estabanadas.
Quando a gigantesca porta de madeira maciça era aberta, elas enveredavam pelo corredor que levava ao interior do edifício centenário: dezenas de gurias de saia azul e blusa branca – agitadas, falantes – apertando as pastas escolares contra os seios nascentes.
Ainda sentado, dando um tempo para que elas se instalassem nas mesas do grande salão, ele fechava os olhos e imaginava o atropelamento de uma delas. Via a guria estirada no calçamento de pedra, os encaracolados cabelos castanhos em volta do rosto pálido, os braços abertos, livros e cadernos espalhados e um fiapo de sangue escapando-lhe pela comissura dos lábios.
Comissura, gostava da palavra. Ela aparecia em todo livro de aventuras que lia. Sempre tinha uma briga e alguém acabava sangrando pela comissura dos lábios.
No caso da guria atropelada, claro, tinha que haver um pouco de sangue. Bem pouquinho. Se tivesse muito, ficaria nojento.
Então ele se via correndo até ela. A pobrezinha abria a boca e tentava dizer alguma coisa, mas não conseguia. Lentamente, os olhos dela se fechavam. Pronto, estava desmaiada. Com a vítima nos braços, ele partia correndo em busca de socorro.
Está certo, ele sabia que não era possível erguer uma garota com tanta facilidade e, menos ainda, sair correndo com ela no colo. Sabia que não se levanta do chão um atropelado. Isso ele aprendera numa aula de primeiros-socorros. A pessoa podia ter uma lesão na coluna ou uma fratura. Um osso quebrado podia, por exemplo, perfurar um pulmão. Morte certa.
Mas digamos que, apesar de tudo, ele resolvesse correr com a guria nos braços. Bem, para isso, ele tinha de ser um cara forte para burro. O que não era o caso dele. Até que era bastante alto, mas muque não tinha.
– Tu pareces mais um varapau! – dizia o pai dele.
Bem, mas e se a guria atropelada fosse bem levinha?
No dia em que decidiu que seria um escritor quando se tornasse adulto, o guri não atravessou a rua logo depois do sumiço da última menina. Permaneceu sentado no banco da praça, de olhos fechados, reflexivo. E se um dia tivesse que fazer uma redação sobre elas, o que escreveria?
*
Uma cidade cheia de gurias.
As ruas estão eletrificadas. Gurias são fios desencapados. Se o sujeito trisca na mão delas, recebe uma baita descarga elétrica.
Gurias parecem pombas, não param de arrulhar. E falam muito rápido. Mudam de assunto a todo instante. Aliás, as frases delas não têm final. Umas não ouvem as outras. Falam tanto que, de vez em quando, no meio de uma conversa mais acesa, uma delas sente falta de ar.
Namoro é o assunto predileto delas. Todas vivem se exibindo, dizendo que os guris andam atrás delas, de joelhos. Até mesmo as mais feiosas. Na escola, durante o recreio, ficam horas e horas falando sobre meninos. Mas ninguém serve para elas. Um é exibido, o outro é nojento. O pior é quando dizem que o sujeito é asqueroso. E mentem na maior cara de pau. Dizem que recebem bilhetes apaixonados. Mentira deslavada. Um piá normal nunca vai se rebaixar a escrever um bilhetinho. Só se for um bocó. As mais descaradas inventam até beijos.
Elas não olham diretamente nos olhos da gente. Não encaram nunca. Olham de banda, e depois falam torcendo as mãos úmidas de nervoso. E se movem sem parar, têm bicho-carpinteiro pelo corpo. Parecem estar sempre com muita pressa, mesmo quando nada têm para fazer. Na saída da escola, elas gostam de andar em grandes bandos, falando pelos cotovelos. De braços dados, tomam a calçada toda, da parede à beirada. E saem varrendo. As pessoas têm que se equilibrar no meio-fio.
Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas deixam um cheiro bom e um rastro luminoso como…
*
Olhou para os dois lados antes de atravessar a rua. Se fosse atropelado, nenhuma guria viria socorrê-lo. Tem isso: elas gostam que o cara se arrebente por elas, mas nunca juntariam do chão um sujeito machucado, ainda mais sangrando.
Pelo corredor sombrio, dirigiu-se à portaria, onde entregou à funcionária os livros que havia retirado na semana anterior.
– Tu és um leitor onívoro – a mulher sorriu por trás das lentes cortadas pelo meio.
– Obrigado – respondeu.
Teria de consultar o dicionário para descobrir o significado daquela palavra monstruosa: onívoro.
De posse da carteirinha de sócio, com a entrega já carimbada, encaminhou-se para o salão.
Naquele dia ficou inquieto com a presença de tantas gurias por ali. Nem se arriscou a olhar para os lados. Certamente elas estavam de risinhos, as patetas.
Concentrou-se na escolha dos livros que levaria para casa.
Em geral, escolhia pelo título. Mas levava em conta principalmente o número de páginas e o tamanho da letra. Livro grosso demais não era com ele. E nem livro de letra miudinha. Se o título lhe agradasse, e se o livro tivesse um número razoável de páginas – digamos, no máximo, trezentas -, ele o abria ao acaso. Lia um parágrafo e já sabia se gostaria ou não. Nunca se enganava.
Abriu um dos livros mais grossos. Não pretendia levá-lo para casa, claro. Queria apenas se exibir, fazer com que as gurias pensassem que ele era um garoto-prodígio.
Gostou do título daquele capítulo: A lenta flecha da beleza. Começou a ler pensando que fosse uma história de índios. Mas de saída, já na primeira frase, deu de cara com nove vírgulas. Era tanta vírgula que o sujeito ficava tonto, desnorteado, nem sabia para onde a história estava andando. Ah, e tinha muita palavra com mais de quatro sílabas. Tempestuosos, altissonantes, embriagadores. Odiava escritores que abusavam dos polissílabos. Aquele devia ser um livro igual a todos os outros de adultos: a história de um rapaz pobre apaixonado por uma moça rica. Ou vice-versa. Coisa bem chata.
Abandonando o livrão na prateleira, escolheu quatro ou cinco livros de aventuras, de capas coloridas. Depois, equilibrando-os nos braços magros, dirigiu-se à carteira mais afastada, no cantinho do salão. Só na hora de ir embora, escolheria os dois que levaria para casa.
Com gestos cuidadosos distribuiu pela carteira os livros, abertos, como via fazerem os estudantes de Medicina ou Direito. Queria que as garotas pensassem que ele era um cara super estudioso.
Armado o cenário, ele apanhou na pasta os cadernos de matemática e de português. Rapidamente, resolveu cinco continhas e, em seguida, fez uns exercícios vagabundos de análise sintática. Pronto, havia matado o dever daquele dia.
Não, ele não era muito estudioso. Sempre fazia o dever o mais depressa possível para ter mais tempo de olhar fotos e mapas nas enciclopédias. Era louco por enciclopédias ilustradas.
Se lhe perguntassem do que ele mais gostava na biblioteca, responderia que era o silêncio daquele lugar. Todos os que entravam ali, até mesmo as gurias mais novas, caturritas de nove, dez anos, logo começavam a falar em voz baixa.
O silêncio do enorme salão só era cortado de quando em quando pelo estalido das folhas de livros que iam sendo viradas. Ah, claro, também tinha um piado bem fraquinho, irritante, que vinha das gurias, sempre rindo e sussurrando.
Mas, naquele dia, terminado o dever, ele não foi à estante das enciclopédias, como costumava fazer. Abriu e o caderno resolvido a escrever a redação que imaginara, pouco antes, quando estava em frente à Biblioteca:
Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas exalam um cheiro bom e deixam um rastro luminoso como o de uma lesma.
Não gostou do final da frase. Aquela palavra – lesma – não era legal. Foi à estante dos dicionários. Depois de consultar o mais robusto deles, um que tinha mais de mil páginas, voltou a escrever:
Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas exalam um cheiro bom e deixam um rastro luminoso como o de um molusco gastrópode terrestre, cujo corpo é desprovido de concha.
Também não aprovou. Era muita palavra difícil em apenas duas linhas de caderno: molusco, gastrópode, desprovido.
Resolveu escrever um poema. Mas tinha um porém: ele não gostava de poema moderno, desses sem rima, bagunçados. Queria tudo rimado, certinho. Escreveu:
A menina andarilha
Nas tardes de verão
Deixa um rastro na trilha
Que nos leva ao alçapão
Ficou melhor, mas incompleto. Porque, pensando bem, gurias não deixam só o rastro. Elas exalam também um cheiro, que é parecido com o de uma flor esmagada pelos pés de uma pessoa distraída. Não, não, o cheiro delas é o da lagoa, na época da seca, quando as águas ficam lustrosas de limo grosso. Melhor ainda: cheiro de pêssego maduro exposto numa banca de feira.
Suspirou e fechou o dicionário.
Vou ficar louco, se pensar tanto em gurias.
Levou a mão à testa. Talvez estivesse até com uma pontinha de febre.
Perguntou-se: onde está o problema?
A resposta era simples.
Ele não era poeta. Era um guri que só gostava de livros de aventuras.
Rasgou a folha do poema.
Escreveu:
Era uma vez uma bela garota que cheirava a pêssego maduro. Um dia, quando atravessava a rua diante da Biblioteca, ela foi atropelada por um automóvel que trafegava em altíssima velocidade. Ao vê-la caída ao solo, um jovem intelectual que frequentava a referida biblioteca correu para socorrê-la. Percebendo que ela sangrava pela comissura dos lábios, ele a ergueu com a força de seus poderosos braços e…
Lourenço Cazarré é escritor
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