A revista Visão é semanal, mas agora a sua dona, a Trust in News, ‘dá’ notícias quase diárias, e todas más. Ontem, a empresa unipessoal do ex-jornalista Luís Delgado decidiu entrar com uma correcção das contas de 2021 para ‘introduzir’ uma reserva do revisor oficial de contas (ROC) onde se alertava para a dívida ao Estado que era então de 8,2 milhões de euros. A Trust in News, que tinha obrigação legal de certificar as suas contas, nunca o fez, violando o código das sociedades comerciais. Mas isso é apenas mais uma peça de um puzzle que não explica o essencial: como é que um empresário dos media, mesmo se com boas relações no poder socialista (é ainda sócio de João Cepeda, director de comunicação do Governo Costa, na empresa Capital da Escrita) conseguiu sem incómodo endividar-se tanto (30 milhões de euros) em tão pouco tempo (seis anos), tendo investido apenas 10 mil euros? E depois disso, será que o Estado (Governo) vai dar-lhe a mão e usar dinheiros públicos para ‘salvar’ empregos de jornalistas que andaram seis anos a assobiar para o ar?
Já não é apenas um caso de crise na imprensa, mas sim um caso de polícia. A Trust in News, a empresa unipessoal de Luís Delgado – dona da revista Visão e de mais 16 títulos de imprensa – esteve a esconder durante anos a situação de dívidas ao Estado, porque nem sequer emitiu a Certificação Legal de Contas (CLC), que no seu caso era claramente obrigatória por ser uma sociedade por quotas com um balanço superior a 1,5 milhões de euros, deter vendas anuais superiores a 3 milhões de euros e contar mais de 50 trabalhadores.
Nas contas de 2018 a 2022 – as do ano passado ainda não foram aprovadas – depositadas regulamente na Base de Dados das Contas Anuais, a Trust in News informava sempre que não estava obrigada a ter contas certificadas por um revisor oficial de contas. Mas isso foi até ontem, porque a empresa de media apresentou esta quinta-feira uma “declaração de substituição” respeitante às contas do ano civil de 2021, para assim ‘eliminar’ aquela que fora apresentada em 15 de Julho de 2022, e que o PÁGINA UM tinha obtido numa consulta aos registos no ano passado.
Esta declaração de substituição não alterou absolutamente nada das demonstrações financeiras já conhecidas (balanço, demonstração de resultados, demonstrações dos fluxos de caixa e alteração do capital próprio). A alteração é mais relevante por um formalismo substancial: o revisor oficial de contas – DFK & Associados – faz uma reserva extremamente relevante: “Chamamos a atenção para o facto da Entidade [Trust in News] apresentar dívidas à Segurança Social e Autoridade Tributária [e Aduaneira] no montante total aproximado de 8.200.000 euros. Do valor indicado refira-se que até à emissão da presente Certificação tinham sido liquidados, pelo menos, 790.000 euros e celebrado acordos de pagamentos prestacionais no montante de 2.500.000 euros“.
Este ‘adiamento’ de dois anos, violando o Código das Sociedades Comerciais, em relevar as dívidas fiscais e o não pagamento das contribuições à Segurança Social dos seus trabalhadores, mesmo com um acordo (secreto) com o Estado, pode ser fundamental para uma eventual responsabilidade civil e judicial de Luís Delgado e dos outros dois gestores da Trust in News, Cláudia Serra Campos e Filipe Passadouro. No limite, pode haver lugar a reversão fiscal sobre o património dos gerentes em caso de insuficiência patrimonial, que sempre se mostrou insuficiente.
Também não deixa de ser anormal que a auditora DFK & Associados – com regras específicas e sob supervisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC) se tenha aprestado a proceder, agora em 2024, a uma adição de uma reserva às contas de 2021. O PÁGINA UM pediu esclarecimentos à empresa de auditoria – que tem uma vasta experiência em consultoria financeiras com entidades públicas, contabilizando 87 contratos no valor de quase 2 milhões de euros – sobre as razões deste extemporâneo alerta, e se as contas de outros anos sofreriam idêntica alteração.
Contudo, fonte desta sociedade escusou-se a responder, dizendo apenas que “a DFF & Associados presta serviços de auditoria e encontra-se sujeita a supervisão das entidades competentes e regras deontológicas deste setor de atividade”, acrescentando que “neste enquadramento não fará publicamente ou através de órgãos de comunicação social comentários sobre situações particulares dos seus clientes”. Essa posição não retira a anormalidade desta situação.
Em todo o caso, a assumpção pela Trust in News – mesmo que esc0ndida durante dois anos, embora com o ‘rabo de fora’ por serem detectáveis na análise ao passivo – das dívidas ao Estado para o ano de 2021 sugere que, em breve, o mesmo seja extensível aos anos seguintes, onde o ‘calote’ foi aumentando. Na verdade, quase duplicou, uma vez que se situa agora, sendo os dados do Processo Especial de Revitalização (PER), em quase 16 milhões de euros.
Os montantes em dívida em 2021, bem como os actuais, indiciam que a Trust in News nunca cumpriu, desde a sua fundação, e após a compra das revistas à Imprensa, quaisquer obrigações fiscais e de Segurança Social. Por exemplo, no caso dos trabalhadores, os encargos da empresa de media respeitante a IRS e Segurança Social atingiu ultrapassou os 1,6 milhões de euros, que não terão ido para os cofres do Estado. Mas para que a dívida seja agora tão elevada, não apenas ficaram por cumprir como se acumularam outras obrigações. Certo é que entre 2022 e o primeiro semestre deste ano, a dívida ao Estado aumentou mais de 250 mil euros em cada mês, não tendo havido ninguém, dentro do Governo, que tenha mandado parar o ‘regabofe’ que se iniciou logo no primeiro ano de existência da Trust in News.
Recorde-se que há quase um ano, em 24 de Julho de 2023, o PÁGINA UM começou a revelar, apesar do então silêncio absoluto da generalidade da imprensa mainstream, as dívidas astronómicas da Trust in News ao Estado já se encontrava, em 2022, nos 11,4 milhões de euros, um aumento de 3,2 milhões face ao ano anterior.
O montante dessa dívida, que representava já 42% do passivo da empresa, não era assumido nem identificado quer pelo Ministério das Finanças quer pelo Ministério da Segurança Social. Este último, então liderado por Ana Mendes Godinho, nem sequer respondeu ao PÁGINA UM quando questionado. E o Ministério das Finanças, então chefiado por Fernando Medina, embora tenham sido colocadas diversas questões específicas, respondeu apenas “A AT [Autoridade Tributárias e Aduaneira] não se pronuncia sobre a situação tributária de contribuintes específicos, incluindo a tributação de operações concretas, pois estão protegidas pelo dever de sigilo fiscal, previsto no artigo 64º da Lei Geral Tributária”.
Recorde-se também que o director de comunicação do Governo Costa era João Cepeda, que se mantém como sócio de Luís Delgado na empresa Capital da Escrita, fundada em 2007. Tendo sido a proprietária inicial da revista Time Out, esta empresa – ‘irmã’ da Mercados da Capital, que geriu o franchising Time Out no Mercado da Ribeira até ser vendida em 2015 à Oakley Capital Investments – ainda existe, embora sem actividade. Nas últimas contas apresentadas, relativas a 2022, a Capital da Escrita não teve vendas e só registou gastos de 80 euros, mas ainda possuía activos de 567 mil euros, além de uma dívida ao Estado de quase 142 mil euros. Certo é que os sócios ainda têm esperança de vir a distribuir entre si cerca de 303 mil euros se dissolverem a empresa. Mas isso são outras contas.
No caso da Trust in News, a dissolução não é sequer possível; o mais provável será a insolvência, no caso de o PER não ser aprovado face à quase impossibilidade de equilibrar a situação financeira mesmo sem Luís Delgado. De acordo com elementos constantes do PER, a Trust in News apresenta, actualmente, dívidas de cerca de 30 milhões de euros, sendo 8,9 milhões de euros de comparticipações não pagas à Segurança Social e mais 7 milhões de euros respeitam a dívidas fiscais.
A Impresa – que se ‘safou’ das revistas agora nas mãos de Luís Delgado, mas que teve de suportar imparidades brutais (23,2 milhões de euros) que lhe impactou as contas em 2017 – é o terceiro principal credor da Trust In News, reivindicando 4,2 milhões de euros. Mas o negócio concretizado em 2018 continua, apesar da fiscalização das contas da Impresa pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), envolto em obscurantismo, porque só indirectamente se tem uma estimativa sobre os valores efectivamente pagos por Luís Delgado após a venda.
Também relevante é o ‘calote’ da Trust in News ao Novo Banco: 3,5 milhões de euros, uma parte dos quais foram financiamento para o pagamento de uma parte da compra das revistas à Impresa, o que significa que Luís Delgado adquiriu as revistas à conta de calotes e empréstimos não pagos. Fica ainda na dúvida sobre quem, no Novo Banco, sob intervenção do Fundo de Resolução, concedeu autorização de milhões para uma empresa com um capital social de apenas 10 mil euros
Sabe-se também que existem cerca de 170 credores da Trust in News que, além dos acima referidos, incluem os CTT (1,86 milhões de euros), o BCP (922 mil euros), a Associação Portuguesa de Imprensa (36.305 euros), a Lusa (27.575 euros), a Reuters (25.403 euros), a APCT – Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (21.072 euros), o Sport Lisboa e Benfica (8824 euros), a Associação Nacional de Jovens Empresários (4320 euros), à Misericórdia do Porto (2.331 euros), o Facebook (480 euros) e ainda a empresa unipessoal do apresentador Cláudio Ramos (3.400 euros). E há também, conforme apurou o PÁGINA UM, antigos jornalistas da Visão que são credores da empresa, no âmbito de processos de rescisão, como são os casos de Cláudia Lobo, Rosa Ruela; Sara Belo Luís e Cesaltina Pinto. Até ao Sindicato dos Jornalistas são devidas verbas, mostrando assim que a Trust in News não enviava para a estrutura sindical as quotas descontadas do salário. O PÁGINA UM confirmou junto do Sindicato dos Jornalistas a existência de atrasos no envio das quotas de jornalistas sindicalizados, o que também constitui crime.
Luís Delgado, que mantém silêncio sobre a situação da Trust in News desde que lançou o PER, continua, em todo o caso, a fazer as suas frequentes curtas crónicas no site da revista Visão. Numa delas, no passado dia 13 de Março, a pretexto da greve dos jornalistas, chegou a defender que “esta nova AR [Assembleia da República] e Governo têm o dever e a obrigação de prestar a mais básica atenção a toda a Comunicação Social”. E acrescentava: “Era o que faltava preocuparem-se apenas com a RTP, RDP e Lusa. Merecem, sem dúvida, mas são a ínfima parte da Imprensa em Portugal”, concluindo que “com a Imprensa em greve, está suspenso um dos pilares fundamentais e independentes da Democracia. Assim não pode ser!”
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