Título
Património alimentar de Portugal
Autor
MARIA MANUEL VALAGÃO
Editora
Fundação Francisco Manuel dos Santos (Maio, 2024)
Cotação
17/20
Recensão
"Os homens não se medem aos palmos", resmoneavam as velhas ao borralho em tempos de antanho. E, tal como os ditos cujos, também os livros não se medem nem pelo seu número de páginas nem pelo tamanho da sua lombada para daí se aquilatar o tesourinho que guardam dentro. Com a habilidade de um relojeiro, Maria Manuel Valagão, investigadora em Sociologia da Alimentação, que há muitos anos estuda estas temáticas, consegue neste pequeno livrinho ir montando um delicado puzzle, constituído por diferentes peças, acerca daquilo que é feito o nosso património alimentar.
A informação espraia-se com sabedoria ao longo das páginas, muito bem doseada, na quantidade certa, tocando vários pontos, abrindo perspectivas, sem explicações excessivas ou detalhes exaustivos, aflorando dados pertinentes q.b. Neste breve volume, o curioso leitor encontra um verdadeiro vade-mécum sobre aquilo que comemos em Portugal e, acima de tudo, o porquê. Que motivações nos conduziram a esta culinária e como ela se mesclou com o nosso modo de ser e de viver. Antes de avançar uma ressalva deve ser feita, tal como salientou a investigadora: "Nestas páginas, concentro-me somente em Portugal continental, já que, sendo dele tão distintos em posição geográfica e culturas alimentar e gastronómica, os arquipélagos da Madeira e dos Açores mereciam abordagens autónomas."
Além da Introdução, a autora articulou esta odisseia por seis capítulos: "No Atlântico, Uma Identidade Mediterrânica", "Património Alimentar e Mar", "Das Plantas e dos Animais", "Tradições Culinárias: Oralidades e Patrimónios", "Conviver e Celebrar" e "Considerações Finais", a que se juntam uma bibliografia e algumas notas.
De acordo com a investigadora, "a grande variedade dos ecossistemas existentes no território, aliada à diversidade cultural de que temos usufruído ao longo dos tempos, contribuiu para a profusão de produtos tradicionais portugueses, precioso património preservado nos livros e manuscritos de cozinha e na tradição oral, como testemunho vivo na cozinha quotidiana."
Muito deste legado decorre, não só da influência do Atlântico, como denominador comum, mas também "o determinismo geográfico ditou, por seu turno, a singularidade mediterrânica de Portugal", do qual fizeram parte muitas civilizações que por aqui passaram e "deixaram a sua cultura e connosco trocaram produtos e técnicas." De tudo isto, "em quase 900 anos de história", construiu-se um património alimentar nas diferentes regiões portuguesas, vivo e colectivo, transmitido de geração em geração, e que enformou "uma síntese de todas essas influências".
Durante muito tempo, a cozinha portuguesa caracterizou-se por ser essencialmente de subsistência e frugalidade, onde as pessoas retiravam o máximo proveito dos recursos existentes, promovendo a reciclagem e a reutilização dos produtos, mas expandindo a criatividade culinária e que soube deixar-nos belos exemplares como as açordas, as migas, as sopas, entre tantas outras iguarias.
"Parte significativa das nossas tradições e saberes gastronómicos nasce de uma cozinha familiar de subsistência com acentuado carácter inventivo, procurando bons sabores com poucos elementos", acrescenta a autora, revelando que "do pouco, é possível fazer-se muito; do comum, é possível criar-se o original e um sabor surpreendente." Tal como este livro.
Rapioqueiro me confesso, tanto da mesa como da biblioteca. Há muito tempo que não encontrava um livro tão simples mas tão rico na forma como comunica o seu conteúdo. Tal como um amuse-bouche, mas de uma simplicidade arrebatadora e pleno de sabores profundos e delicados, num convite à descoberta do nosso tão querido e sápido património alimentar. Leiamos, aprendamos e degustemos, que a vida são dois dias.