TRANSPARÊNCIA PÚBLICA

Sócrates é o primeiro antigo primeiro ministro a recorrer a entidade reguladora com 26 anos

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por Pedro Almeida Vieira // Novembro 18, 2021


Categoria: Exame

Temas: Justiça

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Lei para obrigar Administração Pública a ser mais transparente foi aprovada em 1993, mas perante a expectável dificuldade dos cidadãos, a Assembleia da República criou uma comissão reguladora presidida por um juiz. Mais de um quarto de século depois, e com o crescimento das queixas, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos continua limitada na sua acção, porque os seus pareceres não são vinculativo. Mas assim continua a ser uma opção derradeiras antes do recurso aos tribunais. Sócrates aproveitou.


O facto inédito de um antigo primeiro-ministro recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) – que acabou por lhe conceder razão – evidencia como muitas entidades públicas, onde se insere o Conselho Superior de Magistratura, ainda se mantêm relutantes em ceder informação e documentos aos cidadãos. Aliás, o PÁGINA UM já apresentou à CADA, em menos de um mês, cinco queixas sobre a recusa de acesso a documentos administrativos por parte da Direcção-Geral da Saúde (3), Ordem dos Médicos e Comissão Nacional de Eleições. E, curiosamente, para aceder ao nome do requerente do processo de José Sócrates contra o CSM, o PÁGINA UM viu-se mesmo obrigado a apresentar um requerimento ao próprio presidente da CADA, uma vez que, na primeira consulta do processo, o nome do antigo primeiro-ministro estava “anonimizado” – como se pode confirmar no próprio site daquela entidade (vd. aqui).

Desde 1993, com a aprovação da primeira Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), os cidadãos passaram a poder requerer, sem necessidade de justificação de interesse, o acesso a documentos administrativos, excepto em casos particulares de saúde ou de matérias classificadas. Mesmo no caso de documentos nominativos, embora com algumas restrições, o acesso passou a ser possível desde que fosse evidente o interesse directo e pessoal. Por esse motivo, a LADA tem sido uma ferramenta jurídica muito usada, por exemplo, por jornalistas ou associações ambientalistas.

Para evitar o triste fado de boas intenções legais, sem efeitos práticos, a LADA estabeleceu a criação da CADA, com funções de regulação no acesso à informação. Assim, no caso de uma entidade pública indeferir expressa ou tacitamente um requerimento ou limitar o exercício do direito de acesso, os cidadãos passaram a poder dirigir reclamações à CADA, que, depois de auscultação à entidade requerida e uma análise jurídica, emitem um parecer. De igual modo, além de outras incumbências que foram variando ao longo do tempo – uma das quais relativas à emissão de parecer obrigatório para acesso a documentos clínicos –, a CADA tem a incumbência de emitir pareceres perante dúvidas solicitadas pelas entidades requeridas.

No entanto, constituindo uma das principais falhas da LADA – que nunca foi melhorada ao fim de mais de duas décadas –, os pareceres da CADA não são vinculativos. Ou seja, mesmo que um seu parecer conceda razão ao requerente, a entidade requerida pode manter a recusa, não havendo nenhuma responsabilização por esse acto. Nessas circunstâncias, os cidadãos apenas têm como recurso a instauração de um processo nos tribunais administrativos. Aliás, em determinadas situações, a intervenção da CADA pode até ser um empecilho burocrático, pois um cidadão terá, em qualquer circunstância de apresentar primeira uma queixa à CADA e aguardar o seu parecer. Caso não siga estes procedimentos, o Tribunal Administrativo recusará a petição.

O primeiro parecer da CADA surgiu em 21 de Fevereiro de 1995, relativo a uma queixa de um antigo funcionário do Centro Escolar de São Bernardino, instituição na dependência da então Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores, sob alçada do Ministério da Justiça. A leitura do parecer da CADA sobre este processo – que se referia ao simples pedido de acesso desse ex-funcionário aos «Livros de Ponto dos anos de 1987 a 1991, na parte que lhe respeita[va]», bem como às «Folhas de Remuneração, que lhe respeit[ass]em» – mostra bem a forma como então a Administração Pública geria este tipo de pedidos por parte dos cidadãos: não respondia.

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E assim, analisado o indeferimento tácito e o enquadramento legal, a CADA deu provimento à reclamação, «reconhecendo-lhe o direito de consulta e reprodução dos documentos nominativos que haviam sido requeridos». Nesse ano de 1995 seriam, no entanto, registados na CADA apenas 72 processos, sendo concluídos 51 e emitidos 38 pareceres. No ano seguinte, registou-se um ligeiro aumento nas queixas, mensurável pelo número de processos iniciados, mas duplicando a emissão de pareceres.
A relação entre o número de pareceres e de processos iniciados, embora podendo respeitar a questões diferentes, situava-se nos 80%, o que indicia que, neste período inicial, os níveis de conflitualidade, invisíveis antes da LADA, mostravam-se elevados entre a Administração Pública e os cidadãos.

Esses níveis manter-se-ia altos, acima dos 75% até ao ano 2000, baixando a partir daí, mas aumentariam os processos (queixas) para números anuais geralmente entre os 500 e os 800 no período de 2001 a 2013, subindo depois para valores acima dos 800 processos entre os anos de 2014 e 2018. Este aumento de queixas implicou, embora com relação pareceres/processos menor do que nos primeiros anos, também um maior número de pareceres emitidos pela CADA. Com efeito, se apenas em 1998 a CADA ultrapassou a centena de pareceres, com um total de 177, nos anos seguintes o número avolumou-se, atingindo mais de quatro centenas de pareceres (414) em 2010. Em 2018, e fruto do reforço de meios administrativos e jurídicos, foram emitidos 556 pareceres, o valor mais elevado de sempre. No ano passado, em consequência da pandemia, foram apenas emitidos 337 pareceres, enquanto este ano foram concluídos somente 330, embora faltando ainda duas reuniões plenárias até ao final do ano.

Um dos motivos para a discrepância entre processos iniciados e pareceres emitidos deve-se, em certa medida, ao efeito dissuasor de uma queixa junto da CADA, uma vez que esta faz um contacto formal à entidade requerida, de resposta obrigatória pelo responsável, o que, em muitos casos, impele a entidade requerida a satisfazer o pedido formulado pelo cidadão. Na verdade, por regra, a CADA apenas emite um parecer se a entidade, argumentando ou não na sua resposta, mantiver a recusa no fornecimento dos documentos solicitados.

Estes números podem ter duas leituras. Por um lado, mostram que os cidadãos se mostram mais activos e conhecedores dos seus direitos perante a Administração Pública, que inclui entidades com funções delegadas. Porém, também revela que, ao fim de quase meio século de democracia, as entidades públicas – dinamizadas e lideradas por cidadãos – ainda não demonstram, em muitos casos, a transparência e a abertura que se esperaria na cedência de informação vital para as pessoas e a vida em sociedade.


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