Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo?
Vidas Secas. Graciliano Ramos
– Se pudesse, eu metia logo um balaço na perna dele – diz o sargento.
– Melhor no braço – retruca o soldado. – Facilitava pra gente ir pra cima ele.
– Tu tá achando que a gente vai chegar nele de novo?
– Sim, mas eu quero é ir sozinho.
– Tu? – espanta-se o sargento. Depois ri. – Não é hora de brincadeira.
Os dois trocam um rápido olhar. Depois, por entre os galhos ressequidos, voltam a espiar o homenzarrão na outra margem do pequeno canal.
– Se o senhor deixar, eu vou.
– Tu tá é maluco! Se ele te acerta um tiro não é nada, porque aquela espingarda dele é de chumbinho, mas o duro é se ele te agarra pelo pescoço. Aí tu podes encomendar a alma.
– O que não pode é a gente continuar aqui, parada, com ele ali cantando de galo. É um desaforo.
– Acho que vou pedir reforço pelo rádio da viatura.
– Não, sargento! Isso seria mais humilhação ainda. Me deixa pegar ele!
Estão deitados na margem direita do canalete, por trás duns caraguatás, observando o homem alto e gordo, sem camisa, que grita e gesticula diante deles. A separá-los, o leito quase seco do riacho, cortado pelo negro fiapo da água suja que serpenteia entre os monturos.
– Mas o que é que tu tá pensando, homem de Deus? – pergunta o sargento, impaciente.
– Tenho um plano. Num minuto estou com ele derrubado no chão. Aí, vocês chegam e metem as algemas nele.
– Falar é fácil, língua não tem osso. Ele já botou o Caldeira e o Braga pra dentro do lodo! E eles são mais fortes que tu!
– Deixa comigo, chefe – o soldado sorri. – Meu braço está comichando de vontade de apertar aquele pescoção.
O sargento suspira fundo.
– Faz o que tu quiseres. És maior de idade e vacinado. Agora, uma coisa é certa: eu não me responsabilizo. Faz de conta que tomaste a iniciativa sem eu saber. Se ele te torcer o pescoço, azar.
– Fechado.
O soldado ergue-se. É muito jovem, terá no máximo uns vinte anos, e franzino.
Enquanto corre, agachado, em direção aos casebres, escuta os gritos irônicos do grandalhão.
*
– Adonde tu vai com essa pressa toda, franguinho? Vai procurar tua mãe? Pois aproveita e te esconde debaixo das asas daquela galinha! Ou será que tu vai chamar mais brigadianos? Chama bem uns vinte que eu tomo conta deles tudo! Bando de cagão! Brigadiano só serve pra bater em mulher e criança! Que venham! Vou fazer com eles o que já fiz com os outros dois trouxas!
*
– Olha, lá, Caldeira! – diz o soldado grisalho, levantando o braço e apontando com o dedo. – Viste? Era o Magro correndo! Pra onde será que ele vai?
– Acho que foi se esconder no meio dos barracos – responde o soldado negro, passando a manga da túnica pelo nariz. – Deve estar se cagando de medo.
– O Magro não é medroso. Já me vi em hoscas com ele e ele sempre vai em frente. O que tem de leviano de peso tem de valente.
– O que tu acha mesmo que o Magro foi fazer? – pergunta o soldado negro, enquanto olha para a mancha de sangue na manga.
– Buscar reforço. Só pode ser isso.
– Aí, sim. Quando a gente chegar no Luisão, ele vai ver o que é bom pra tosse. Vou dar uma porrada na boca dele.
– Mas antes a gente vai ter que pegar ele. E aí é que eu quero ver! Não vai ser fácil!
– Ele não tem nem três nem quatro colhões. Não é mais macho que nós!
– Mais macho não é, mas que o bicho é forte, isso é – o soldado grisalho leva a mão ao queixo. – Já tivemos uma amostra hoje.
– O filho da puta me quebrou o nariz, acho.
– É caborteiro.
– Tenho é vontade de afogar ele nessa água suja.
– Isso nem é água mais.
– Parece suco de merda. Tu já percebeu o quanto nós tamos fedendo, Braga? Credo! Esse puto vai lavar a minha farda lá no quartel!
– Ele é mais gabola que bandido.
– Se o sargento tivesse deixado a gente usar o revólver!
– Aí não tinha graça.
– Eu meteria um balaço no meio daquela cabeça cabeluda.
– Não precisa. Quando não tá bêbado, o Luís Gordo é gente boa – diz o grisalho, sempre observando o homenzarrão, que continua gritar e esbravejar. – Mas, bebum, ele gosta de cantar de galo.
*
Ao atingir o casario, o soldado se levanta. É de estatura meã, mais para baixa. Apressado, avança por entre as casinholas de paredes de lata, de compensado, de refugos de madeira e até mesmo de papelão.
O barro negro das ruas está seco, não chove há muito. Mulheres e crianças escondem-se por trás das paredes vacilantes do Templo dos Crentes – um barraco um pouco maior, mas igualmente frágil – prontas para fugir caso Luís Gordo atravesse o arroio.
O soldado circula os olhos pela gente assustada. Aponta para um velho barbudo.
– Tu aí, me dá tua roupa. Vamos, ligeiro! Onde tem um lugar que a gente possa se trocar?
O velho não diz nada.
O soldado arranca a própria túnica, joga-a no chão. Depois toma a camisa do velho.
– Vamos, tira a calça também!
Um sussurro de espanto corre entre as mulheres.
– Virem a cara pro lado! – ordena o soldado, ao mesmo tempo que veste a camisa remendada.
Sentado no meio da ruela, desamarra os cadarços, tira as botinas. Despe a calça do uniforme. Seus gestos são rápidos, nervosos, De novo de pé, enfia a calça do outro, que está imunda. Por fim, arranca da cabeça do velho o roto chapéu de palha, deixando-o completamente nu.
Este cachaceiro está podre de borracho, pensa o soldado. Inspira fundo e sente a catinga de canha da camisa que vestiu. Lança um olhar duro ao velho estupidificado, de cuja boca aberta pende um grosso fiapo de saliva.
– Quem é o dono do bolicho? – pergunta o soldado, apontando a placa na porta de um barraco.
Ninguém responde.
– De quem é a merda do bolicho? – grita ele para os que estão escondidos por trás do Templo. – É bom dizer antes que eu ponha a porta abaixo!
Um homenzinho balofo surge vindo de não se sabe onde.
– De que é que o senhor precisa?
– Pega uma garrafa de pinga. Rápido! E já me traz sem tampa!
Pouco depois, o bodegueiro chega com a cachaça. O soldado bebe um gole largo. Depois, de pés descalços, encaminha-se, vacilante, como se estivesse muito bêbado, para a pontezinha que atravessa o canal.
É uma pinguela de duas pranchas largas de madeira, precária, vacilante. Na época das chuvas é retirada para que as águas não a levem.
Agarrado ao fio de arame que serve de corrimão, o soldado observa Luís Gordo pelo canto dos olhos.
Ele continua lá, na frente do minúsculo barraco, a berrar e a bracejar com a passarinheira segura, pelo cano, na mão direita. Seu largo peito glabro brilha suarento sob o sol cruel do meio-dia.
O soldado magricelo tenta escutar o que ele diz, mas não há vento para trazer os sarcasmos daquela voz rouca até ali. Luís Gordo fala demais, pensa.
Trôpego, assoviando uma desconchavada musiquinha, com a garrafa na mão esquerda, o soldado travestido em mendigo encaminha-se para onde está Luís Gordo.
Deixa cair a cabeça para o lado. Espiando por baixo da aba do chapéu, consegue entrever, do outro lado do fosso, os seus colegas, deitados entre a vegetação ressequida.
*
– Braga, tem um cara atravessando a pinguela.
– E tá pra lá de bêbado.
– Era só o que nos faltava: um outro borracho pra se juntar com o Luísão!
– Peraí! Aquele cara é o Magro! Com roupa de mendigo. E se fingindo de bebum!
*
Era menos que uma vila, era até menos que uma favela porque os que ali viviam eram menos que gente, eram qualquer coisa acima de bichos porque sabiam falar.
Vieram de todos esses campos aí pela volta da cidade. Lá fora viviam mal das pernas, quase sem roupa e sem remédios, mas, no geral, tinham o que comer. Plantavam para o gasto, uns pés de milho, uma ponta de arroz, e carneavam uma ovelha de vez em quando, roubada quase sempre. Tinham galinha para os ovos e para a canjinha, quando adoeciam. Até passarinhos eles matavam, a bodocaços, quando a fome apertava.
Na cidade só se tem ruas de asfalto e de calçamento e ninguém, a não ser Pedro Malasartes, desencava comida das pedras. Que lhes resta quando percebem que vieram de outro tempo e de outro mundo e que ali não tem lugar para eles? Se arrinconam lá pelas voltas do Forno do Lixo, sob um céu sempre negrejado por bandos de urubus. Ali podem colher alguma coisa, como antes colhiam no campo.
São catadores de papel, vendedores de vidro e ferro, carroceiros, jardineiros, changueadores, biscateiros. Como chegaram há pouco, ainda não dominam os misteres urbanos, nos quais serão mestres seus filhos: ladrões de botijão de gás, punguistas na volta do mercado, gigolôs de perebentas, flanelinhas raivosos, cheiradores de cola, assassinos de velhas.
Por terem chegado há pouco do campo, foram obrigados a se acomodar nos confins da cidade, nas terras encharcadas, ao lado do arroio sinuoso que pastoreia os detritos da cidade toda. E lá ergueram suas casinholas, na maioria com paredes de lata, latas de conservas e de óleo de soja retalhadas a abridor.
*
Luís Gordo estava há um bom tempo por ali. Mas morava meio afastado, só ele naquela margem do arroio, porque não gostava de gente. Não se misturava Era um verdadeiro bicho do mato. No começo, ganhava uns trocos cabeceando sacos numa arrozeira, mas depois se deu bem, arranjou uma boca de leão-de-chácara num puteiro. Não era de briga, mas isso não importava porque era muito alto e forte. E tinha cara feia, cara de índio, com aquela cabeleira negra escorrida e uns olhinhos achinesados que botavam medo até mesmo nos vagais siderados pelo pico. Só o jeitão dele já amansava os chinelões mais brabos.
Era conhecido dos brigadianos, por pacato e respeitador, mas, de longe em longe, acordava com os bofes virados e se passava na canha, como naquele domingo. Aí, a coisa desandava.
De manhã, no bolicho, sentado num saco de feijão, bebera uma garrafa inteira, sozinho. Igual que sempre, estava meio emburrado. Depois, pateara o balcão. E saíra pela vila a dizer palavrões cabeludos, a inticar com as mulheres e a desaforar os homens. Gritou que eram uns machos de merda, e meteu a mão nos dois ou três que não tiveram tempo de se afastar. Que chamassem a Brigada! E se fora sestear.
Estava no bem bom do sono quando bateram à porta do barraco. Eram dois brigadianos, um velhusco e um negro fortão. Disseram que ele tinha de ir à delegacia responder pela arruaça, que um cidadão tinha prestado queixa e que eles estavam ali, de viatura e tudo, para conduzi-lo ao distrito.
Mas, bah, nem disse nada! Só enfiou o braço. Mandou um murro em cada um. Foi pá e pá. O grisalho se foi direto para o riacho, desconjuntado, mas o negro ainda conseguiu se equilibrar. O jeito foi dar-lhe uma cotovelada na cara. E ele, caindo de costas, foi se juntar ao outro.
Num vupt, Luisão pegou a passarinheira que mantinha atrás da porta e fez mira na testa deles, que já tentavam escalar de novo a margem barrenta. Que se sumissem! Encagaçados, eles saíram patinhando pela água suja e galgaram a outra margem e foram se refugiar entre as unhas-de-gato.
Pouco depois, vindos da camionete, juntaram-se a eles o sargento e o soldado magro.
*
– Tão pensando que eu sou o quê? Um alimal? Vocês tão é muito enganados! Acham que esta cidade é grande merda só porque tem um batalhão de brigadianos? Me cago pros brigadas! Tô de saco cheio disso aqui! Qualquer dia volto lá pra fora. Tem sanga limpa e não esse arroiozinho de merda. Tem cancha pra carreira e salão de dança. O que é que tem aqui pra se fazer num domingo? Nada. Tem futebol, mas isso é coisa de maricas. Meto-lhe uma bala num!
*
E Luís Gordo estava falando ainda, empolgado pela canha que lhe fermentava nas entranhas, quando o bêbado de camisa remendada entrou na pinguela e se veio na direção dele. Vinha bem devagarzito, desenhando a beira da barranca, quase que se despencando.
Era só um pobre borracho magro e miserável, de olhar turvo e boca aberta, um fiapo de homem. De pés descalços. Uma coisa à toa. Não merecia atenção. Desinteressado do pinguço, Luís Gordo continuou a despejar a mágoa armazenada. Com sua voz grossa e rouca, repetia, com pequenas variações, as mesmas frases. Sempre segurando a passarinheira pelo cano.
Aí, de repente, sem mais nem menos, o bêbado, saltou nas costas dele. Os braços magros se aferraram em torno do grosso pescoço moreno e as pernas em torno da grande barriga, com os pés se entrecruzando na frente.
De primeiro, os olhos arregalados mostraram estupor. Em seguida, raiva. E Luís Gordo se pôs a pinotear como se estivesse com um piá nas costas, o filho que não tinha, brincando de upa-upa cavalinho. Sufocado, não conseguia falar mais nada, apenas urrava como um burro triste, saudoso de sua querência.
Nem podia mais pensar direito, o pobre homem. Tinha era que arranjar um jeito de se livrar daquele carrapato.
Foi então que ele viu os três brigadianos descendo pela outra margem do arroio. Tropeçando na raizama, vinham de cassetete em punho. E em seguida, no embalo, pularam sobre o lodo preto que era o leito do arroio e começaram a subir o barranco.
Pressentindo que ia entrar na borracha, Luís Gordo resolveu guarnecer as costas. Encostou-se então contra a parede do seu barraco e levantou a espingarda, como se ela fosse um tacape. E esperou os três brigadas que se vinham de cacete em punho, furiosos.
Enquanto esgrimia com eles, Luís Gordo lembrou que na parede do seu barraco havia umas cabeças salientes de pregos enferrujados e umas rebarbas pontiagudas de lata.
Aí, pôs-se a esfregar contra ela as costas, as costas do soldadinho magro, que estava agarrado a ele como uma sanguessuga.
Foi como se sentisse a dor do outro, os cortes, as fincadas, os lanhos na própria carne. Mas, como estava com aquele molambo de homem nas costas, Luís Gordo perdeu o jogo de cintura e se tornou alvo fácil para as porretadas dos brigadas.
Para se distrair, ele até se botou a contar as lapadas que levava e espantou-se porque elas cada vez doíam menos. Já estava chegando a vinte quando lhe acertaram uma no pé do ouvido.
Então ele foi arriando, se encolhendo como um tatu mulita, devagarzinho, já entregue. Mas, de repente, não se sabe de onde, ele conseguiu arranjar um resto de força. Aí, se levantou e, lentamente, caiu para a frente. Se foi em direção ao leito imundo do arroio levando consigo, de carona, o bêbado das costas ensanguentadas. Na queda, Luís Gordo e o soldadinho nele agarrado pareciam um só homem, um só corpo, corcovado e imenso.
Lourenço Cazarré é escritor
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.