Estava a fazer scroll no meu iPhone quando o aparelho estremeceu. Para os metais roubados ao Congo que sustentam o telemóvel foi um terremoto de grau 9. Até me assustou. Era a Teresa e atendi.
– Então man!
– Man? Sucumbiste aos estrangeirismos?
Respondi, perguntando com maldade.
– E tu! Que estás sempre a dizer layer em vez de camada!
– Tens razão. Tás boa?
– Estou. E tu? Já viste as notícias no telejornal?
– Vai-se andando. Estás a ligar-me por isso?
– Não. Claro que não, mas repara que Paris está a arder.
Disse ela com leveza.
– Paris já está a arder há muito tempo.
– Chamem os bombeiros! (Ri-se).
– Agora não tenho aqui nenhum ecrã à frente. Quando chegar a casa, ligo a CNN. Eles sabem tudo o que não se deve saber sobre terror.
– (Interrompendo) E o meu texto para o PÁGINA UM?
Perguntou à bruta.
– Ah, então era por isso!..
– Também.
A razão destas palavras é uma exposição da Teresa que está a decorrer na Galeria da ZDB e que acaba dia 20 de Julho. Disse-lhe que escreveria um texto sobre ela. A exposição chama-se 1984.
Continuei,
– Não sou uma máquina de escrever Olivetti, calma! Não é fácil escrever sobre isso do controle e da lobotomia. Lobotomia vem de lobo?
– Não. Vem de Nobel. Não sejas parvo!
– Não posso escrever um texto parvo? Agora, ficaste séria?
– Podes, podes. Os textos já não são escritos para serem lidos. Se calhar porque hoje, principalmente reescreve-se demais. Inventa-se pouco.
– De qualquer forma, vou fazer uma analogia com os media provavelmente, é inevitável, mas esses, em geral, não fazem lobotomia às massas, fazem outra coisa bem pior. Tornam tudo abstracto. As tuas peças não são abstractas, muitas vezes até são chapa 4 e aqui nesta exposição há uma impossibil… (Ela não deve ter ouvido esta parte, ficou sem rede).
– … Disseste o quê?
– Fiquei sem rede. Estava num túnel e estava a dizer que posso também escrever sobre a ZDB.
– Vais dizer mal da ZDB?
– Não. Não vou dizer nada sobre a Galeria. Dizer mal não me fica bem.
– É melhor. (Rindo)
– És feminista? Ando há meses para te perguntar mas tenho-me esquecido. É para o texto.
– Feminista como? Tás a gozar comigo! É por aí que vais pegar?
(Não consegui conter o riso).
– Não. Estava a tentar ser contemporâneo. É que sou pela ig…
(interrompendo)
– Estou a ficar sem bateria. Aparece lá amanhã em minha casa à u…
Caiu a chamada. Deduzi que quisesse dizer à uma.
Eu e a Teresa somos das pessoas mais pontuais que existem e, por isso, à uma em ponto do dia seguinte, a Teresa abriu-me a porta do sexto andar do seu apartamento em Benfica. Trata-se de um prédio dos anos 70 com e sem alma, nunca percebi. Subi de elevador e ía morrendo.
Estava um calor normal para o mês de Julho e não deixei de pensar no aquecimento global. Mesmo quando o tempo é normal, pensamos no aquecimento global. Fui na minha Yamaha e percebi nesse dia que Lisboa ainda podia ter salvação. A Teresa e eu somos lisboetas a sério.
Abriu-me a porta com aquele seu andar apressado.
– Então estás bom? O meu texto?
– Não vim cá para isso propriamente. E isso é assim logo a abrir?..
– Vieste porquê?
– Tive de ir à Loja do Cidadão ali em baixo e prefiro falar ao vivo que na minha câmara de filmar.
Menti.
– Hã?…
– Sim. O telemóvel é a minha câmara.
Aqui não menti.
– Ok.
– De qualquer forma tínhamos combinado.
– Não tínhamos não.
– Tínhamos, tínhamos. Está escrito lá atrás quase no início. Isto aqui é como o Big Brother da TVI fica tudo registado.
– Tás a ver. É por isso que nas minhas exposições falo do controle.
– Percebo. Ontem estava com o Cabral ao telefone e enquanto íamos falando eu tirava notas acerca do que ele dizia da tua exposição. É uma táctica que uso muitas vezes. Ouve: (vou às notas do IPhone).
“A artista está constantemente a fazer-nos uma pergunta, ou melhor a pôr-nos uma questão inextinguível: onde fica a fronteira, o traço que nos divide, que nos exclui/inclui da actividade artística face à esfera social’”…
– Ele disse mesmo assim ao telefone? (Interrompeu com surpresa).
– Não. Claro que não. Assim, assim não. Ninguém fala assim. Ele dizia coisas e depois eu ía anotando, depois compus mais ou menos nas notas. Mas ouve o resto. Não interrompas. “… Por entre a deriva em explicar a Arte, na sua quietude e finitude, alcançamos, como pressuposto, uma ideia, por vezes, muito simples – ou seja, na tentativa de a compreendermos melhor, tentamos avaliá-la, ainda, em torno da sua antiga e discutível dicotomia – figurativo/abstracto, do maior ou menor emprego de valores tidos como simbólicos ou do modo como determinados procedimentos são empregues, entre outros”.
– Uau! Isso é tudo verdade. Estou a gostar man.
– Sabemos lá o que é a verdade.
– É o contrario da m…
– Ouve o resto. Falta pouco. “Neste contexto, deveremos colocar a irrecusável tentação de recorrer a tendências ou a correntes nas quais se podem filiar os objectos, bem como a tudo aquilo que nos possa ajudar a situá-los para além de um plano meramente artístico.
– Posso assegurar-te que esta parte disse-a assim tout court.
E continuei:
– “É o caso da Escultura da Teresa Milheiro, que nos oferece aquilo que é a génese artística, o paradoxal – como pode a Arte ser feita como se fosse uma jóia, um precioso adorno sem, no entanto, colocar esse ditame em causa? A escultura dela apresenta-se sob a forma de uma jóia, é certo, mas recusa disponibilizar-se enquanto tal, é a Arte, na sua justa luta, do dia-a-dia, a manifestar-se”.
O telemóvel da Teresa toca.
– Desculpa tenho de atender o telefone. Sou capaz de demorar um quarto de hora. É da Turquia. Mas está espectacular.
– Ok. Está como se estivesses em tua casa.
Gracejei sem que ela ouvisse e sentei-me no sofá da sala.
Escrever para esta nova exposição da Teresa não é evidente! Ela engendra objectos cada vez mais estranhos e escultóricos e é uma constante perguntar-me acerca do que é que se pode e deve abordar num texto. Do método? Dos temas? De nada? Da vida do artista com uma nota biográfica? Do processo e dos materiais? Soa-me sempre quase tudo a falso e aparecem sempre textos a despachar. Hoje, há pouco tempo para tudo e o pouco que há, não é para mandar um cego cantar e ficar a ouvir.
Pego no meu iPhone e vou até às notas onde tinha apontado o texto do Cabral que para mim ainda não cobria o essencial. Tinha anotado alguns items depois de uma conversa com a minha amiga:
Fragilidade/Paradoxo. Forte. Resistente. Aceitação. Fragilidade do vidro.
Agressividade. Metal. Leucotomia/Lobotomia. Controle.
Notas de merda que não servem para nada. Pensei que mais valia estar quieto e ir até à praia.
Tangas contemporâneas que não querem dizer nada. Vejam as peças e perceberão logo isso… Ou não. O vidro por exemplo não é só representativo da fragilidade, o metal não é forçosamente a resistência, a lobotomia não é necessariamente uma metáfora. No mundo da linguagem, a paleta de cores é muito mais vasta e diversificada. Mas sim, precisamos da palavra, hoje mais do que nunca, mas da palavra certa no momento errado, duma palavra que não se auto-banalize, que não se auto-destrua à primeira má interpretação.
As peças dela já são por si um organismo, é isso que a define. Acima de tudo, as peças são ela. Têm o seu carácter, falam por si a maior parte das vezes. São acutilantes e irónicas, por vezes delicadas como ela. As palavras podem estar a dizer outra coisa, podem estar a apontar noutras direcções, podem pertencer a outros mundos paralelos, podem ser só sons e podem não implodir com o que resta da vida.
A Teresa apareceu de rompante ainda com o telefone na mão e perguntou se já tinha almoçado.
– Não.
– Queres vir almoçar?
– Não.
– Estás chateado comigo?
– Não. Claro que não.
– Só dizes não?
– Sim.
– Estás a pensar em quê? Estás sempre entre paradoxos. Lê lá outra vez essa ultima parte do Cabral!
Concentrei-me, levantei-me do sofá e olhei-a nos olhos.
– Tu e eu, as tuas peças, este texto, a nossa ligação, estar aqui agora e tu aí, a linguagem que usamos para nos entendermos, tudo junto, é que é a melhor obra. E pode já não haver palavras para a definir. Aquilo que nós sabemos ser a grande obra, a mais poderosa, aquela que está para além da morte. Aquela que é vida a toda a hora. Já somos a própria representação, as tuas esculturas já fazem delas mesmas, fazem de ti porque deitas para lá todo o teu sangue.
– Não fales em sangue que me faz logo lembrar… Sangue.
– As tuas peças, se queres que te diga, são a maior metáfora disso. São meta. Pelo menos enquanto residirem aqui. Mas dizer metáfora está errado, não há folha de sala que não nos bombardeie com essa palavra que ficou oca de tanto a gritarem. Estas peças não têm nada a ver com a lobotomia, ou com o 1984. Têm a ver com uma certa linguagem, com uma certa crueza e transparência que há em ti e isso não é traduzível para texto
– Estás acelerado. Pareces o Nico Rosberg.
– Estou só concentrado.
– Mas continua, estava a gostar
– A lobotomia pode ser a origem da inspiração, mas a lobotomia não tem beleza e isto não é uma ilustração da brutalidade. A violência em que a tua criatividade mergulha é que é assinalável. As melhores peças são aquelas que nos inspiram criatividade e a lobotomia faz justamente o contrário. Às vezes, penso que somos uma espécie de guerrilheiros urbanos que andamos por aí, pela rua, entre os inimigos e, nesse caso, as tuas peças são as minhas armas. Queres melhor? Tornas-te subjectiva e útil ao mesmo tempo. E, nesse caso, temos muitos combates ainda para fazer. De certa forma, a estética da violência une-nos. E há uma beleza contida na violência, mesmo na verdadeira. E tu não tens medo dela. Fazes uma guerrilha à própria violência. E eu escrevo-te assim. Não é giro?
– Giro?
– Não vou escrever nada sobre os media tradicionais, nem fazer analogias com o Poder, nem com a fragilidade de seres mulher ou com o feminismo, pelo menos aquele que está em voga. Tu não tens nada a ver com isso.
E ela interrompe como se não estivesse a perceber partes:
– Ainda estou atónita com essa tua conversa. Não queres mesmo ir até lá abaixo almoçar? Vamos ali à esplanada e vemos uns turistas a andar de trotinete para espairecer. Até Benfica já tem turistas.
– Sim. Na tua cabeça. Ou melhor… Na minha.
– Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelada por uma. Nunca te aconteceu?
Perguntou em tom irónico.
– Claro que sim. Está sempre a acontecer-me. Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelado por uma também. Ali, precisamente junto ao jardim Zoológico. Se não tivermos cuidado, somos sempre atropelados junto a qualquer coisa. Estou agora a lembrar-me que estava contigo quando íamos sendo atropelados por um turista. Se queres saber a verdade… não, não estava. É que eu não estou sequer agora aqui contigo; pensando bem, nem há pouco estava contigo e, pensando ainda melhor, nem muito menos me ligaste ontem. Pior, ontem não existiu e para complicar tudo ainda mais… Não existe tempo.
– Estás a brincar comigo?
– Talvez. Mas então é por aí que devo ir, que estou a brincar contigo, ou então dizendo que não há tempo e que as tuas peças são de alguma forma intemporais… Existem fora do tempo e até do próprio espaço. Estas palavras deveriam ser as tuas jóias, mas por outros meios como a guerra e a política. As tuas jóias, para mim, valem ouro, porque ao olharmos para elas, vêm-me palavras à cabeça. E as palavras acima de tudo precisam de ti. O mundo precisa de palavras. E os teus objectos são a possibilidade da palavra.
– Mas eu estou aqui ou não?
– Tu é que sabes.
Respondi sem responder.
– Sou só palavras pensadas por ti?.. Ou isto é tipo um filme estúpido de terror do AXN em que a personagem está, depois não está, depois volta a estar… Desaparece… Aparece… Há tempo, depois não há tempo…
(NÃO) EPÍLOGO: Este texto prescinde de um epílogo já que, enquanto o autor estava na iminência de o redigir, apareceu o Timóteo com uma bola na mão a chamá-lo para irem dar uns toques até à Alameda. Assim, por falta de tempo, marca da actualidade, o epílogo não foi escrito. A caminho do local onde a jogatana se iria dar e a pedido do autor, o Timóteo leu no smartphone o texto até este falso epílogo, e sugeriu que o texto acabasse justamente assim. Mesmo assim.
Ruy Otero é artista media
Fotografias de Eduardo Sousa Ribeiro
1984 – exposição de Teresa Milheiro
20.05.24 — 20.07.24
Galeria Zé dos Bois
Rua da Barroca nº 59
1200-047 Lisboa, Portugal
Horário ARCOLisboa:
21 a 26 de Maio 12:00 — 22:00
Entrada livre.
Horário 27 de Maio a 20 de Julho:
Segunda a Sábado 18:00 — 22:00
Entrada: 3€
Curadoria: Manuel Costa Cabral e Natxo Checa
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