Há pelo menos 950 dias que ando às turras com Rui Santos Ivo. Esta expressão “às turras”, jamais seria dita pelo distinto Presidente do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamentos e Produtos de Saúde, também excelso professor associado convidado da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e insigne membro do Conselho Geral da Universidade de Coimbra. Aliás, olhando para o seu ilustre currículo nacional e internacional – enunciado, por exemplo, à laia de justificativa para o Prémio Pegadas, atribuído este ano pelo Conselho do Colégio de Especialidade de Farmácia Hospitalar da Ordem dos Farmacêuticos –, nunca em tempo algum poderemos imaginar o Doutor Rui Santos Ivo a usar tão coloquiais termos de povo.
O Doutor Rui Santos Ivo é uma pessoa adulta – não usa, certamente, essa linguagem.
O Doutor Rui Santos Ivo é, na verdade, a autoridade máxima de um organismo que fiscaliza os medicamentos e os produtos de saúde.
Imaginamos, nessas funções, uma pessoa que elege como máxima preocupação a garantia de que um determinado medicamento ou produto de saúde não apresente, custe o que custar, uma relação risco-benefício desfavorável aos cidadãos. Imaginamos, nessas funções, uma pessoa te, por isso, como máxima preocupação uma cultura de transparência, de informação séria assente numa formação e sensibilização contínua, em parceria com uma acção rápida e eficaz, independente dos negócios em causa, dos interesses políticos e das ideologias em jogo. Transparência e confiança – são os atributos que esperamos de uma pessoa deste quilate, que esteja ao serviço dos cidadãos – não ao serviço de um Governo nem ao servço das empresas farmacêuticas.
Contudo, onde se esperaria uma individualidade transparente, encontramos o obscurantismo e a manipulação. A postura passiva do Infarmed – seguindo a linha do que hoje se transformou a vigilância farmacológica na União Europeia – em esconder informação, em enviesar uma realidade através de uns ‘relatórios’ enganadores convenientemente passados a jornalistas acríticos, não é estar ao serviço dos cidadãos, como aqui escrevi em Agosto de 2022.
Durante a pandemia, e sobretudo ao longo do extenuante processo com vista ao legítimo e democrático acesso à base de dados do Portal RAM, aquilo que mais me chocou foi assistir a um processo de ‘infantilização das massas’, mesmo que essas massas fossem, ou pudessem ser, pessoas inteligentes ou com formação. No processo de intimação, que nos levou a um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, o Infarmed defendeu o indefensável (que os dados de uma base desta natureza não estão anonimizados), enganou a própria juíza da primeira instância (com declarações claramente falsas sobre o funcionamento da base de dados) e procurou sempre inferiorizar-me intelectualmente, dizendo mesmo que poderia deturpar informação. Rui Santos Ivo foi e continua a ser a pessoa que impôs esta filosofia: fez o que o Governo e a União Europeia lhe impôs, e não se mostrou inquietado com a função.
Ou seja, o Infarmed intencionalmente quis manter informação escondida, alegando que assim protegia o povo de um maldoso que iria deturpar a verdade para assim contar uma mentira.
O Infarmed e o seu presidente Rui Santos Ivo trata os cidadãos deste país como crianças, como se nem sequer tivêsse,os capacidade para compreender o que andam os adultos, aqueles que não dizem “às turras”, a fazer.
Por tudo isso, andei com ele às turras durante quase mil dias. E se ele continuar a não agir como adulto, passando a tratar-nos como adultos, cedendo finalmente a base de dados do Portal RAM – seguindo o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, em vez de gastar mais dinheiro dos contribuintes com um recurso ao Supremo Tribunal Administrativo –, só posso prometer-lhe uma coisa: continuar às turras.
E continuarei às turras (contra Rui Santos Ivo ou outro qualquer) até que, em tribunal ou através de acções políticas, se conclua que, num país democrático, a maturidade em funções públicas atinge-se somente quando se defende o interesse público, e não outros interesses.
P.S. Como sempre foi minha intenção, o acesso ao Portal RAM não tem como objectivo uma mera quantificação absoluta dos efeitos adversos, mas sim uma análise cruzada com outros indicadores epidemiológicos. O PÁGINA UM, e eu, em particular, nunca se recusou em analisar os dados em colaboração independente com entidades públicas – exige sim ter conhecimento dos dados em bruto e da metodologia usada para a chegada a conclusões, que aliás oficialmente se anunciam sempre sem estudos de suporte válidos [aliás, basta recordar o célebre “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório“, aguardando-se ainda uma decisão de recurso no tribunal para se ter acesso a todos os números e não apenas ao último]. E não pode o PÁGINA UM aceitar, por isso, que continue tudo como dantes. Que sejam ignorados dados preocupantes, como os divulgados recentemente pela Direcção-Geral da Saúde que permitiam concluir que a eficácia vacinal do último reforço contra a covid-19 é negativa. E não pode aceitar que passem impunes as atitudes do antigo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que escondeu intencionalmente pareceres do Colégio de Especialidade de Pediatria. Nem pode aceitar, de igual modo, que ‘marketeers de bata branca’, como Filipe Froes, sempre com sinuosos e escorregadios argumentários, pavoneiem os benefícios de fármacos (que não apenas as vacinas contra a covid-19) sem que estes sejam avalizados com seriedade por um regulador que tem mesmo de estar (só) ao serviço dos cidadãos.
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