― Estás mesmo decidido a romper amanhã as fontes do grande abismo e a abrir as cataratas do céu?
― Assim será!
― E julgas, portanto, que com esse simples acto lavarás e renovarás a Humanidade…
― Fecundarei de novo a Terra, extinguindo a iniquidade e a corrupção. O novo Homem deixará de ter os seus pensamentos e desejos guinados sempre e unicamente para o mal.
― Estás optimista! Amanhaste este mundo em sete dias criando metendo a tudo um homem e a sua costela, e apenas bastaram quatro destes seres para , logo se assistir a uma desobediência grave, diria uma traição, e até a um homicídio por inveja. E depois foi o que se viu até agora. E ainda supões que, desta feita, tudo será diferente…
― Estabelecerei uma nova Aliança. Colocarei o meu arco nas nuvens para que aqueles que aqui se mantiverem vejam o sinal desse pacto entre mim e a Terra.
― Divina ingenuidade! As quezílias humanas serão perpétuas. Quando terminar o flagelo que anuncias para amanhã, cedo o teu escolhido se embebedará, se colocará em pelota e depois zangar-se-á com um dos seus filhos, lhe lançará uma maldição. Lá se vai a concórdia por água abaixo… Se fosses mesmo presciente, como eu sou, escusavas de lançar esse cataclismo. Ou então não salvarias ninguém. Nunca acabarás com a maldade nos homens, por mais flagelos que apliques. A maldade nos homens vive porque os homens vivem.
― Estarei atento; de futuro não os deixarei perder o norte!
― Concedeste-lhes o livre arbítrio; desorientam-se por mor das suas paixões. Eles nunca buscam o norte ou o sul, nem o este ou o oeste; em breve desejarão atingir o céu. E tu cometerás então um erro crasso: quando estiverem construindo uma torre, lhes confundirás as vozes, os obrigarás a dispersarem-se pela Terra. Quebram-se os laços, aumentam as cobiças, as violências, as guerras… Vais andar num fandango, por séculos…
― Se algo correr mal, tenho em mente enviar o meu filho.
― Será crucificado…
― Lavará os pecados dos homens com o seu sangue, se necessário for; com o meu sangue. E os homens se emendarão aos pés de uma nova igreja…
― … que somente alimentará mais cóleras. Sob a tua bandeira, serão cometidas violências sem fim, por tempos infindáveis. Pretextando defenderem a tua obra, bispos e reis matarão e oprimirão justos e pecadores, maus e bons, crentes e incréus. Pelo que sei, apenas dois milénios após a chegada desse teu filho à Terra, essa tal igreja minguará em poder, deixando de produzir e alimentar maldades.
― Ainda haverá tempo para então se salvarem muitas almas antes do Juízo Final.
― Não sei como. És mesmo um incorrigível optimista. Aliás, só assim se justifica a tua imprudência em engendrar o Homem e pensar tê-lo como inquilino num mundo que desejavas perfeito. Falhaste e falharás. E os teus homens, os homens dessa tua igreja, mesmo quando se tornarem mais mansos, em nada contribuirão para aplacar o mal. Olha-me aqui para o futuro: ali estão eles, visitando umas pobres gentes, em postura solene, hirtos e retraídos, agaloados nas suas ricas vestes, chorando lágrimas de compaixão. Mas céleres regressarão ao aconchego dos seus aposentos, esquecendo o que viram, calando a raiva sob os poderosos, recusando perder as suas mordomias e sinecuras terrenas… Enfim, achas mesmo necessário amanhã abrir as comportas do Céu?
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