Segundo o Governo, acudir a uma dívida de curto prazo da Inapa, que necessitava de uma injecção de 12 milhões de euros, “não reunia condições sólidas, nem demonstrava a viabilidade económica e financeira que garantisse o ressarcimento do Estado”. E daí parte-se para uma insolvência. Atenção: não é para um plano especial de revitalização (PER), que permitiria até uma protecção de credores e uma renegociação da dívida. Não: é a pura e simples liquidação com vista ao encerramento por incapacidade de cumprir pagamentos.
Não deixa de ser surpreendente que a Inapa – que nas últimas duas décadas viveu tempos complexos, daí que no início do ano 2000 chegou a cotar perto dos 5 euros e agora era transaccionada a 3 cêntimos –, uma empresa dominada pelo Estado, ainda que sem maioria no capital, caía agora com estrondo… num domingo à noite. Estamos a falar de uma empresa portuguesa de 55 anos, uma das mais internacionalizadas, com negócios em 10 países, e que andou às compras, adquirindo empresas na França e na Alemanha, nos últimos sete anos.
Cair uma empresa destas num domingo à noite – mesmo que não seja uma empresa ‘mediática’ – é apenas um dos sinais, talvez simbólico (ou não), de que algo não encaixa bem nesta história. Uma decisão de insolvência assumida pelo Governo, que lava as mãos como Pilatos, assim sem mais nem menos, cheira a esturro, e do grande. Que haja dificuldades de liquidez, assume-se que sim, mas, ‘vamos lá ver’ várias coisas.
A Inapa adquiriu em 2018 (operação concretizada no ano seguinte) a compra da Papyrus Deutschland GmbH & KG ao grupo sueco OptiGroup, que tinha como condição a entrega de 35 milhões de euros de imediato e mais 15 milhões de euros em obrigações convertíveis (em acções). A empresa – então com 33,33% dos direitos de voto detidos pelo Estado, sendo que o Millenium BCP tinha 29,77%, o Novo Banco 6,11% e a Nova Expressão 4,69% – apresentou sempre, desde 2015 a 2018, resultados operacionais (EBIT) positivos: 17,0 milhões de euros em 2015; 21,3 milhões de euros em 2016; 13,7 milhões de euros em 2017; e 10,6 milhões de euros em 2018.
O “problema” sempre foi a dívida: os encargos financeiros da INAPA causavam invariavelmente um rombo nas contas, ‘comendo’ por ano entre 13,2 milhões e 15,3 milhões de euros. Em 2019, o passivo da Inapa rondava então os 176 milhões de euros. Em Maio de 1999, o então presidente da Inapa, Diogo Rezende, no decurso da aquisição da empresa alemã (que passou a representar mais de 60% dos recursos humanos), declarou que a dívida descera em 2018 em termos brutos cerca de 26 milhões euros, e que nos últimos 10 anos a dívida decaíra 200 milhões de euros.
Vista agora à distância de cerca de cinco anos, a compra da Papyrus Deutschland terá sido o harakirir da Inapa, embora do ponto de vista de alguns indicadores económicos e financeiros a empresa até estivesse a apresentar uma evolução francamente positiva. É certo que o presidente da Inapa – que abandonou a empresa no ano passado – previa que a facturação subiria, com a aquisição da empesa alemã, dos 860 milhões de euros em 2018 para valores entre 1.300 e 1.400 milhões de euros, tornando-se “o player número 1 nos dois maiores mercados europeus”.
Mas isso nunca sucedeu. A Inapa, mesmo com o fluxo da empresa alemã, nunca chegou ao limite mínimo proposto, e entre 2020 e 2023 somente por dois anos (2020 e 2022) suplantou a fasquia de 1.000 milhões de euros em receitas. Em 2023, por exemplo, ficou-se nos 968,7 milhões. Ou seja, se tivesse facturado o mínimo previsto em quatro anos (5.200 milhões de euros), os resultados operacionais teriam sido francamente melhores. Aliás, no ano de 2022, quando as vendas atingiram os 1,2 mil milhões de euros, a Inapa até apresentou lucros interessantes (17,8 milhões de euros), depois de pagar 19,1 milhões de euros de IRC ao Estado, o mesmo que agora acha demasiado injectar 12 milhões de euros.
Em todo o caso, não deixa de ser extremamente intrigante que o Governo social-democrata tenha puxado agora o ‘tapete’ à Inapa quando a dívida líquida, embora extremamente elevada, estava em finais de 2023 em níveis substancialmente mais baixos do que em 2020, logo após a aquisição da Papyrus Deutschland. Nesse ano, a Inapa encerrou as conta com uma dívida líquida de 315 milhões de euros, que resultou num encargo financeiro de 15,5 milhões de euros. Apenas três anos depois, em 2023, a dívida líquida tinha descido para cerca de 207 milhões de euros (reduziu, assim, 108 milhões de euros), embora resultando, por via do aumento das taxas de juro, em encargos financeiros de 20 milhões de euros.
Obviamente, seria sempre incerto, ainda mais não detendo todos os elementos financeiros (e nem tempo para os analisar em detalhe), prever o futuro da Inapa, mas parece absurdo, para já, que com uma surpreendente facilidade o Governo queira deitar fora a ‘água suja’ (descartando uma falta de liquidez de 12 milhões de euros), sujeitando-se a deitar o ‘menino fora’, isto é, uma empresa do sector do papel bem posicionada no mercado internacional, independentemente dos erros de gestão cometidos.
Uma solução pela via da simples e rápida insolvência – para “proteger o dinheiro dos contribuintes”, Pedro Reis, ministro da Economia, dixit – aparenta ser, na verdade, a pior solução para os contribuintes, trabalhadores e para o próprio Estado, além de ir contra a posição da certificação legal das contas de 2023 feitas pela PricewaterhouseCoopers (a não ser que esta auditora tenha andado a ‘apanhar bonés’), que não traçou qualquer quadro de incumprimento financeiro para este ano.
Uma insolvência, pura e dura, pode colocar em causa, de forma drástica, todos os valores de goodwill e dos activos intangíveis da Inapa, no valor de 229 milhões e 103 milhões de euros, respectivamente, o que não sucederia se a empresa de mantivesse ou, no limite, fosse vendida.
Por outro lado, com a insolvência, além do emprego perdido, haverá trabalhadores da Inapa a verem esfumar-se os complementos de pensões. No passivo estão contabilizados quase 17 milhões de euros em “benefícios concebidos a empregados”. Isto passar a ser assumido pelos contribuintes não parece ser uma impossibilidade.
Além disso, há quem não vá ficar, mesmo fora do país, muito contente com esta decisão intempestiva do Governo português. Por exemplo, o Estado francês deu uma garantia de mais de 4,7 milhões de euros por um empréstimo obtido pela Inapa no âmbito da covid-19.
O grupo sueco, anterior dono da Papyrus Deutschland, também não ficará satisfeita porque apostava em ser reembolsada das obrigações de 15 milhões de euros até Junho de 2026, com juros trimestrais à taxa fixa de 5%, e que assim ficará a ‘ver navios’ sem sequer poder converter a dívida em acções porque a Inapa será ‘desfeita’. Cheira-me que isto vai parar a tribunal e quem pagará, se o Estado perder, serão os contribuintes.
Além disso, mais de 13 milhões de euros em obrigações com maturidade em Setembro de 2025 resultarão em prejuízos para muitos investidores, agravando a confiança dos mercados, ainda mais por suceder numa empresa que dava como garantias ter o Estado como accionista principal.
No meio disto tudo, e para terminar estas incredulidades, uma última nota – ou duas interligadas. A Inapa, como penny stock, praticamente não transaccionava na Euronext. No período de 2018 a 2021 mudaram de mãos, por ano, um número de acções entre apenas 23 mil e 56 mil. Em 2022 subiu para quase 150 mil acções transaccionadas, e em 2023 subiram para 314.346 acções, quase superando o longínquo ano de 2009, quando as cotações chegaram aos 0,68 euros (cerca de 20 vezes mais do que agora).
Esta ‘actividade’ foi acompanhada, por um lado, pela depreciação das cotações, mas também pelo ‘desaparecimento’ da exposição do Millenium BCP. Em 2019, o banco detinha 17,77% das acções da Inapa e o seu fundo de pensões mais 9,45%, totalizando assim 27,22%. Neste momento, o Millenium BCP não tem qualquer posição qualificada, ou seja, se ainda for accionista detém já menos de 5%. Parece que adivinhou…
P.S. Se se confirmar a abordagem do grupo nipónico Japan Pulp & Paper Co. para a aquisição da Inapa, esta estratégia do Governo apenas se mostra possível num quadro intencional de desvalorização de activos. Mais uma vez quem ficará a perder é o contribuinte. Sempre. Em todo, o caso, será interessante ver como os Ministérios das Finanças e da Economia tratarão, em breve, os casos da Trust in News e da Global Notícias, que aliás têm dívidas fiscais e à Segurança Social, ‘coisa’ que não sucede com a Inapa.
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