Mais de um ano depois da polémica que gerou uma onda de contestação, sobretudo no mercado regulado das criptomoedas, o regulador dos media tornou público um ‘puxão de orelhas’ à TVI por ter transmitido uma reportagem da jornalista Conceição Queiroz sobre um suposto ‘jovem milionário’ português a residir no Dubai. Em causa está uma longa peça televisiva transmitida no dia 21 de Junho de 2023, em horário nobre, a promover os negócios de Renato Duarte Junior, apresentado como “o milionário improvável’ por via da sua ‘empresa de investimentos’, dbl.pt. Na sequência de várias queixas, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) deixa agora fortes críticas à TVI por não ter sequer confirmado o perfil e legalidade das actividades do ‘jovem milionário’ e por ter apenas promovido um (alegado) estilo de vida luxuoso, susceptível de ludibriar os telespectadores mais ingénuos e sem literacia financeira. A ERC instou ainda a TVI a acrescentar um aviso na reportagem, no seu site, algo que ainda não sucedeu. Aliás, a estação de televisão de Queluz nem se dignou a responder a um ofício da ERC em Julho de 2023 para justificar este trabalho jornalístico. Subsistem ainda dúvidas sobre se a TVI recebeu contrapartidas financeiras para emitir a reportagem e se a jornalista e outros colaboradores da estação beneficiaram de viagens e estadia pagas pelo ‘jovem milionário’ ou pela sua suposta empresa. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista nunca se pronunciou sobre este assunto.
Em sete pontos, o regulador dos media repreendeu a TVI por uma polémica reportagem que promoveu um ‘jovem milionário’ das criptomoedas a viver uma suposta vida de luxo no Dubai e que, através da empresa dbl.pt (Digital Bank Labs), prometia lucros enormes, mas sem que fossem apresentadas quaisquer provas sobre a veracidade e legalidade dos seus negócios. Numa deliberação aprovada a 29 de Maio, mas só ontem tornada pública, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) deixa fortes críticas à estação de televisão de Queluz por não ter confirmado as afirmações do ‘jovem milionário’ e pela “falta de rigor informativo”.
Em causa está a reportagem da jornalista Conceição Queiroz (CP 7851) que, em cenários luxuosos e idílicos gravados no Dubai, apresentava Renato Duarte Júnior (Silvério Renato Carneiro Duarte), o milionário improvável’, rodeado de fausto. A reportagem foi transmitida em 21 de Junho de 2023 em horário nobre e gerou uma onda de contestação na Internet pelo carácter duvidoso das informações veiculadas pela reportagem, incluindo do próprio sector regulado do sector das criptoactivos.
Como noticiou o PÁGINA UM, em primeira mão em Junho do ano passado, vários reguladores emitiram, na altura, alertas na sequência da reportagem. O caso ficou rapidamente na mira da ERC dada a polémica que gerou. O Banco de Portugal emitiu um aviso aos investidores de que a empresa mencionada na reportagem e o suposto milionário não estavam autorizados a exercer qualquer actividade financeira em Portugal. A FACE – Federação Portuguesa das Associações da Cripto Economia revelou ao PÁGINA UM que considerava a reportagem ‘perniciosa’ e deixou um alerta. Também a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários avisou que a suposta empresa dbl.pt não estava autorizada a operar em Portugal (na sua deliberação, a ERC cita o Jornal Económico como fonte deste aviso da CMVM, apesar de ter sido divulgado primeiro no PÁGINA UM).
Na sua deliberação, a ERC sintetiza as participações de cerca de uma dezena de queixosos, e decidiu “instar a TVI a associar ao conteúdo disponível online uma advertência para os aspetos problemáticos identificados pelos vários reguladores”, o que a estação ainda não fez, apesar de terem passado dois meses desde a aprovação da deliberação do regulador.
Para a ERC, “a peça não cumpre o dever de identificação de fontes relativamente a diversas informações” e considerou que “não foi cumprido o dever de rigor informativo inerente à prática jornalística e exigível aos órgãos de comunicação social”.
Também criticou o facto de na reportagem ser apresentado “um estilo de vida, um modo de enriquecer e o discurso do seu protagonista, sem a problematização, o sentido crítico, a contextualização e o esclarecimento através de fontes fidedignas que sempre devem acompanhar a difusão destes temas pela comunicação social, mas especialmente devidos em conteúdos apresentados como informativos”.
O regulador lamentou ainda que, com a reportagem, se prescindiu “de contribuir para a literacia
financeira dos públicos, num contexto em que a desproteção dos mesmos e o tom promocional e apelativo do conteúdo o tornava adequado e especialmente necessário”.
A ERC deliberou ainda instar “a TVI ao cumprimento, no futuro, da obrigação de assegurar o rigor e
isenção da informação que difunde e da obrigação de observar uma adequada ética de antena” e de sensibilizar a estação para a “necessidade de limitar a proeminência da reportagem nas suas plataformas digitais, tendo em conta as críticas dos vários reguladores e o impacto que a reportagem pode ter nos cidadãos”.
A ERC não divulga o número exacto de queixas que recebeu na sequência da emissão da reportagem da TVI, mas cita vários argumentos de telespectadores desagradados com o trabalho jornalístico. Entre as queixas, contam-se acusações de “incongruência” em afirmações de Renato Júnior e a ausência de confirmação da veracidade de muitos dos dados apresentados como ‘factos’.
Uma das participações que chegou à ERC afirmava que a reportagem da TVI “tem como objetivo principal promover e publicitar um esquema em pirâmide de criptomoedas, com o claro intuito de atrair mais vítimas”. Segundo a participação, a peça “apresenta diversas informações falsas, com o propósito de enganar os telespectadores e incentivá-los a investir neste esquema fraudulento”, tais como “as garantias de retorno de 40% ao ano” e os “ganhos de 18 mil euros por segundo, que (…) representariam cerca de 567 mil milhões de euros por ano, mais do que os lucros combinados da Apple, Google, Microsoft, Amazon, Tesla, Nvidia, Intel, Netflix e Disney, e aproximadamente o dobro do PIB de Portugal”.
“Tudo o que é mostrado pelo suposto investidor é a ostentação que vive, não mostra a empresa, não mostra qualquer infraestrutura da empresa que supostamente também faz mineração (de criptomoedas)”, apontou um dos telespectadores na sua queixa ao regulador. Outro queixoso considerou ser “escandaloso a TVI promover a empresa dum indivíduo que, sem sombra de dúvidas, exerce uma atividade criminosa”.
Outra participação mencionava tratar-se de “uma reportagem sobre uma pessoa, alegadamente milionária” que “alega ter lucros de 18.000 por segundo, e vangloriou-se da quantidade de dinheiro que fazia, e da vida que levava, no Dubai”. Alertava ainda que a “reportagem não mostra nada da vida profissional desta pessoa, focando-se na publicidade ao lucro e à vida de luxo, com a reportagem cheia de imagens de iates, joias e roupas de marca”, sem apresentar “nada que corroborasse a empresa ou a pessoa entrevistada”.
Para o mesmo queixoso, a reportagem “pareceu um spot publicitário”, salientando que “[p]essoas na internet fazem peças com melhor fundamentação que isto”. O mesmo autor da participação à ERC, afirmou que “o discurso e as promessas são características de entidade relacionadas a burlas com criptocurrency” e que a “reportagem deu a conhecer promessas alucinantes e não justificadas a milhares de pessoas com pouca ou nenhuma literacia financeira”.
Na sua análise, o regulador dos media sugere ter havido amadorismo na elaboração da reportagem. “O caso em análise é eloquente quanto à necessidade de evidenciar a diferença de paradigma que deve existir entre, por um lado, os conteúdos oferecidos pelos órgãos de comunicação social, em especial os de natureza informativa, necessariamente marcados pela insubstituível intermediação crítica especializada do profissional jornalista e, por outro, os demais conteúdos audiovisuais criados por entusiastas, autodidatas ou quaisquer pessoas que não jornalistas, incluindo para fins promocionais, que a cada vez maior acessibilidade das tecnologias de informação e comunicação tem permitido banalizar”, afirmou na deliberação.
Diz ainda que “ao tratar o tema com tal ligeireza, de forma superficial e incompleta, a peça não
contribui para a literacia financeira dos públicos, ao contrário do que o tema recomendaria e a responsabilidade social dos órgãos de comunicação social impõe”.
Mas, o que é certo, é que o risco de haver ‘vítimas’ desta reportagem “continua a produzir-se de forma continuada, dado que a peça em causa continua disponível, sem qualquer indicação adicional, em páginas electrónicas da TVI” e sem qualquer aviso, como pediu a ERC na sua deliberação.
Resta saber se o regulador vai ter uma mão mais pesada e se vai actuar para levar a TVI a acrescentar uma advertência ao público na reportagem disponível no seu site na Internet.
Entre as dúvidas que persistem está a questão se a TVI recebeu alguma contrapartida para fazer e emitir a reportagem e se a jornalista Conceição Queiroz e outros colaboradores da TVI beneficiaram de viagens e estadia pagas pelo ‘jovem milionário’ ou a dbl.pt. O PÁGINA UM colocou estas questões à TVI aquando da polémica, em meados do ano passado, mas até hoje nunca recebeu qualquer resposta.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.