Ciclismo: Autarcas que querem ver 'partida' ou 'meta', pagam; e pagam bem

Volta a Portugal é (mais) uma ‘roda dos milhões’ com dinheiros públicos

por Pedro Almeida Vieira // Julho 24, 2024


Categoria: Exame

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Chamar Volta a Portugal à principal prova de ciclismo do país é já só uma força de expressão. Os ciclistas nem percorrem agora todas as regiões de Portugal e até andam cada vez mais de autocarro, porque a localidade de partida, no dia seguinte, é quase sempre diferente da do sítio da chegada. Este ano, por exemplo, os ciclistas pedalarão, a partir de hoje, 1.540 quilómetros, mas serão transportados em viaturas por mais 748. A ‘culpa’ é da organização que define os percursos em função das autarquias que abrem os ‘cordões à bolsa’ com dinheiros públicos. O PÁGINA UM contabilizou, só no ano passado, 16 contratos entre autarquias e a empresa organizadora (Podium Events) no valor total de quase 860 mil euros, ultrapassando um milhão se se incluir IVA. Este ano o valor deverá ultrapassar a fasquia de um milhão, uma vez que a Santa Casa da Misericórdia vai, com 310 mil euros por edição, passar a patrocinar a ‘camisola branca’. À conta dos pagamentos com dinheiros públicos – num evento que conta com dezenas de patrocinadores privados –, Lisboa só vai ser a meta da etapa desta quinta-feira porque a Junta de Freguesia de Marvila ‘despachou’ 90 mil euros.


Uma roda de bicicleta é redonda, embora nem todas as voltas sejam circulares – mas, convenhamos que, mesmo podendo haver curvas e rectas, existia um princípio no desporto, em especial no ciclismo, sobre o conceito de Volta: pressupunha chegar de onde se partira ou, no limite, sendo por etapas, como no ciclismo, a chegada num dia sempre seria, em condições normais, a partida noutro.

Esqueçamos isso. Se, sobretudo a partir dos anos 90, a Volta a Portugal em bicicleta nunca mais acertou em dar mesmo uma volta ao país – e o Alentejo e o Algarve chegaram mesmo a nem ser pedalados em alguns anos –, nos últimos anos tem sofrido uma espécie de esquizofrenia: o pelotão acaba uma etapa num sítio e vai de bicicletas e bagagens para sair noutra localidade pela manhã seguinte. Em alguns casos, a caravana vai literalmente em mais do que duas rodas durante largos quilómetros.

Ciclistas vão andar a pedalar e a andar de carro (ou autocarro). Foto:  Tavfer-Ovos Matinados-Mortágua

Exemplo paradigmático é a edição 85 que hoje se inicia a partir das 14h30, com um prólogo, em Águeda. São apenas 5,7 quilómetros, mas a primeira etapa já sairá, amanhã, em terras do vizinho concelho da Anadia, uma vila de Sangalhos. Em todo o caso, são apenas 12 quilómetros entre Águeda e Sangalhos. Terminada esta etapa em Miranda do Corvo, a caravana percorrerá em veículos 111 quilómetros, porque a segunda etapa sairá de Santarém. Essa etapa termina em Lisboa, e nova ‘peregrinação’ de popós, que será mais longa do que muitas etapas a dar ao pedal: são 180 quilómetros a partir da capital para se chegar ao Crato, no norte do Alentejo, onde se iniciará a terceira etapa.  

Na verdade, não considerando o prólogo (Águeda) e o contra-relógio da última etapa (Viseu) – que, pela curta distância, podem ser considerados ‘circuitos’ –, apenas haverá uma etapa que se inicia na mesma localidade onde termina a anterior: Bragança. De resto, a caravana automóvel, com os ciclistas à boleia, vai andar como ‘barata tonta’ pelo norte e centro do país para levar tudo do sítio onde se termina para o outro onde se continuará, a saber: Covilhã-Sabugal (42 km), Guarda-Penedono (63 km), Boticas-Felgueiras (79 km), Paredes-Viana do Castelo (83 km), Fafe-Maia (55 km) e Mondim de Basto-Viseu (123 km). Contas feitas, os ciclistas que terminarem a Volta pedalarão cerca de 1.540 quilómetros, mas entre etapas, de carro, andarão mais 748 quilómetros.

A razão para este ziguezaguear tem uma explicação sobretudo pragmática, ou, melhor dizendo, económica no sentido não de tempo mas de valor monetário: a organização da Volta a Portugal, entregue pela Federação Portuguesa de Ciclismo à empresa Podium Events, escolheu o traçado das etapas em função dos municípios que ‘abrem os cordões à bolsa’, ou seja, que fazem ‘circular’ o dinheiro dos contribuintes. Por exemplo, no ano passado, de entre os 20 municípios que integraram as etapas (como partida ou chegada), 15 pagaram pelo ‘serviço’: no Portal Base só não se encontraram contratos entre a Podium Events e os municípios de Viseu (onde se fez o prólogo), Vila Franca de Xira, Sines e Estremoz.

Foto: DR

O município da Guarda pagou 140 mil euros, havendo mais seis autarquias que pagaram, para ver os ciclistas a terminarem ou a começarem etapas, valores acima dos 75 mil euros, a saber: Loulé (85.000 euros), Viana do Castelo (83.500 euros), Castelo Branco, Fafe e Montalegre (80.000 euros, cada um), Mondim de Basto (79.950 euros) e Covilhã (52.500 euros). Com verbas mais modestas para patrocinar a Volta a Portugal adiantaram-se ainda as autarquias de Paredes (40.000 euros), Abrantes (25.000 euros), Anadia (20.325 euros), Penamacor (20.000 euros), Ourique (12.500 euros, embora a etapa tenha partido de Sines). A Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo deu um patrocínio de 15.000 euros. No total, a Podium Events – que organiza este evento desde 2001, embora com outra denominação antes de 2013 – recebeu, via municípios, quase 860 mil euros de dinheiros públicos

Este ano deverá vir a receber muito mais, porque, além dos patrocínios dos municípios, a Santa Casa da Misericórdia continua uma ‘mãos largas’ e já assumiu contratualmente que vai pagar 620 mil euros à Podium Events para ser patrocinador, durante duas edições, da camisola branca (para o melhor jovem ciclista na classificação geral)) e do Prémio Melhor Português. Ou seja, 310 mil euros em cada ano. Este contrato tem, além de tudo, partes expurgadas: cerca de seis páginas do texto inserido no Portal Base, respeitantes à cláusula segunda, estão irregularmente em branco, uma vez que o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) permite estes abusos.

Tendo em conta a proximidade, para a edição da Volta a Portugal que hoje se inicia ainda estarão em falta diversos contratos entre a Podium Events e autarquias que se predispuseram a pagar largas dezenas de milhar ou mesmo mais de 100 mil euros para serem ‘escolhidas’. Por exemplo, certamente o prólogo de hoje não se realizaria em Águeda sem uma transacção de 110 mil euros. Sem contrato escrito, alegando que se trata de uma excepção no Código dos Contratos Públicos – mas de legalidade duvidosa, até por classificar o patrocínio como “serviços sociais e outros serviços específicos” –, a autarquia social democrata assumiu apenas ontem esse pagamento para ver rodar as bicicletas durante 5,6 quilómetros.

Autarquia de Águeda pagou 110 mil euros (mais IVA) para receber prólogo da edição deste ano. Foto: DR

Muito menos pagou o município de Anadia que, para ter a partida da etapa de amanhã no seu concelho – mais propriamente em Sangalhos, uma vila histórica do ciclismo, em cuja equipa pedalou Alves Barbosa, o primeiro vencedor de três Voltas, nos anos 50 –, despendeu ‘apenas’ 24.390,24 euros. O contrato assinado anteontem foi até aos cêntimos. Mesmo assim foi cerca de quatro mil euros acima do valor pago no ano passado pelo mesmo ‘serviço’.

Por agora, o montante mais chorudo (140 mil euros) é o da autarquia da Guarda, estando inserido no contrato de 400 mil euros celebrado em Julho de 2022 para garantir a passagem na cidade das edições de 2022 a 2025. No caso da edição deste ano, o contrato estipula um preço de 140 mil euros, para que seja o destino final da 4ª etapa.

Também como patrocinador nesta edição está a autarquia de Mondim de Basto, que celebrou em 2022 um contrato por três anos no valor de 195 mil euros. Para este ano, a Podium Events vai amealhar 79.950 euros deste município do distrito de Vila Real, conhecido por ter o ponto mais complicado da Volta, a Senhora da Graça.

Também a Covilhã optou por um contrato plurianual: assinou anteontem um  para garantir a passagem na cidade serrana de duas edições da Volta de Portugal no valor de 120 euros. Assume-se que, para este ano, entregará à empresa organizadora 60 mil euros para receber o final da terceira etapa.  

Lisboa vai estar, ao contrário do ano passado, também no mapa da Volta, mas o pelotão só se vai abeirar da freguesia de Marvila na próxima sexta-feira, como final da etapa que parte de Santarém. A razão é simples de explicar: foi a Junta de Freguesia de Marvila – e não a Câmara Municipal de Lisboa – a adiantar-se com o dinheiro. E não é pouco para esta freguesia socialista: 90 mil euros.   

Contas feitas, e contabilizando o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia e apenas seis autarquias – as partidas e chegadas das etapas envolvem 17 municípios –, a organização da Volta a Portugal já amealhou para a edição deste ano quase 815 mil euros de dinheiros públicos, mas será quase certo que ultrapassará a fasquia de um milhão.

A estes montantes públicos, acrescem os financiamentos privados para a organização do evento. A Volta a Portugal tem o Continente como patrocinador principal, além de ter a Galp e a Carclasse como patrocinadores oficiais das camisolas. Entre patrocinadores e fornecedores oficiais, a Podium Events conta com mais de duas dezenas e meia de empresas privadas.

Saliente-se que, para contornar o impedimento de patrocínios directos a empresas privadas, a generalidade dos contratos celebrados pelas autarquias, sob a forma de ajuste directo, indicam estar-se perante uma aquisição de serviços – como se fossem os municípios os organizadores do evento –, o que constitui uma forma pouco ortodoxa de cumprir o Códigos dos Contratos Públicos. Até agora, o Tribunal de Contas tem ‘fechado os olhos’, mesmo sendo evidente que se está perante patrocínios, tanto assim que a lista das autarquias surge na página dedicada aos patrocinadores.

Embora a Podium Events realize outros eventos, sobretudo de ciclismo, as entidades públicas, sobretudo autarquias, são relevantes clientes. Desde 2009 contabilizam-se cerca de 180 contratos, envolvendo quase 12,4 milhões de euros, ultrapassando assim os 15 milhões, caso se inclua IVA. Mais de 3,1 milhões de euros apenas desde 2022.

Grande parte destes contratos envolvem autarquias (62) e comunidades intermunicipais, destacando-se como melhores clientes da Podium Events, para além da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (620 mil euros), os municípios de Lisboa (1,8 milhões de euros), de Castelo Branco (1,04 milhões de euros), de Viana do Castelo (895 mil euros), da Guarda (790 mil euros), Mondim de Basto (533 mil euros), Montalegre (430 mil euros), Covilhã (375 mil euros) e Braga (355 mil euros).

N.D. Houve um pequeno lapso em um dos percursos entre etapas, pelo que a distância a percorrer pela caravana de viaturas será de 748 quilómetros, e não de 762, como indicado na notícia original. Esta correcção foi introduzida às 1h30 de 26/07/2024.


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