Recensão: Jacques e o seu amo

Destino e livre-arbítrio, humor e tragédia humana

por Pedro Almeida Vieira // Agosto 8, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Jacques e o seu amo

Autor

MILAN KUNDERA  (tradução: Teresa Curvelo)

Editora

Dom Quixote (Julho de 2024)

Cotação

18/20

Recensão

Duas das grandes virtudes das reedições, sobretudo quando passados já longos anos da primícia edição, é de não permitir aos mais velhos, recordando-os, corrigir o erro de terem deixado escapar sem leitura uma determinada obra, e em simultâneo dá-la a conhecer a quem não era nascido ou andava por outras andanças.

Bastaria isso, e todas as reedições mais recentes de Milan Kundera, o grande escritor checo e Prémio Nobel da Literatura falecido no ano passado, pela Dom Quixote seria alvo de elogios. Mas talvez mais ainda se deva agradecer à editora não estar a esquecer-se das pequenas obras (de pequena) dimensão, como já foi o caso, no ano passado, de Um Ocidente sequestrados ou a Tragédia da Europa Central – com textos escritos em dois fôlegos, um em 1967, outro em 1983 – e agora com Jacques e o seu amo, uma peça de teatro, publicada originalmente em 1981, mas que é mais que uma simples obra de dramaturgia.

Ora, no caso deste Jacques e o seu amo, eram já conhecidas diversas edições, incluindo de grupos de teatro (que já encenaram esta peça), mas todas nos anos 90 do século passado. A reedição mais recente, a quarta da Asa – agora integrada no Grupo Leya –, já com a tradução de Teresa Curvelo, já é do longínquo ano de 2005. Por isso, em boa hora esta ‘ressurreição’.

Sendo sobretudo uma homenagem e uma reinterpretação de um clássico de Denis Diderot, Jacques, o Fatalista e o seu amo – disponível em formato de bolso numa edição da Tinta da China, com tradução e prefácio de Pedro Tamen e Eduardo Prato Coelho, respectivamente –, esta peça de teatro não apenas tem o cunho de nos divertir e nos levar a reflectir.

Explorando os temas do fatalismo, da liberdade e da natureza do acaso. Há ne4ste encontro duas visões: Jacques, o servo, acredita firmemente que tudo o que acontece está predestinado, enquanto seu amo mantém uma visão mais céptica, mesmo perante situações análogas. Essa tensão entre destino e livre-arbítrio é um reflexo das condições existenciais que Kundera viria no seu próprio tempo. E o universo de Kundera está sempre pressente: tema do amor é constantemente revisitado, com uma abordagem oscilando entre o cómico e o trágico, um reflexo das relações humanas.

Além de ser, pela forma como recria Diderot, uma celebração da liberdade narrativa e da inventividade literária do século XVIII – por vezes menorizada, mas que atinge um píncaro não apenas com o homenageado, mas sobretudo com Laurence Sterne, bem referenciado e apontado por Kundera no magnífico prefácio – trespassa nos diálogos uma mordaz análise às condições sociais e políticas.

Mesmo não se tendo lido – e nem se assinala como obrigatória a obra de partida de Diderot –, diga-se que a peça de Kundera mantém a estrutura clássica dialógica e episódica de Jacques, o Fatalista e o seu amo, sendo interrompida por narrativas paralelas e digressões filosóficas com tiradas humorísticas. No entanto, Kundera também se adiciona uma camada metatextual, explorando mesmo as relações entre o autor, as suas personagens e o público, permitindo também uma reflexão sobre a liberdade artística e a censura. A obra acaba assim por ser, de igual modo, uma celebração da narrativa fragmentada e da complexidade do discurso humano, reconhecendo-se o estilo literário de Kundera, mais conhecido pelo magistral A insustentável leveza do ser (1983) e por O livro dos amores risíveis (1969, contos) e por O livro do riso e do esquecimento (1978).

O prefácio – ou introdução a uma variação –, com data Julho de 1981 é de leitura obrigatória, sobretudo por não ser datado. Além de notas interessantíssimas sobre literatura – e a sua ‘análise’ em torno de Diderot, de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, e da literatura russa –, é a visão que mostra sobre a o impacte também psicológico de uma invasão, como a da Rússia à Checoslováquia em 1968, que se mostra, e mostrará sempre, de grande actualidade.

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