Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para os jornalistas que fazem rondadas com flic-flac e dois giros e meio no ar, enquanto mercadejam notícias.
Ao contemplar, do meu etéreo descanso, o cenário contemporâneo da vossa Pátria, sou agora levado, caro leitor, a comparar a intricada dança entre jornalistas no meio da arena política e financeira com as rondadas seguidas de um flic-flac e dois giros e meio no ar com que Rebeca Andrade perfumou as Olimpíadas de Paris. A minha patrícia arrecadou merecido ouro, depois de anos de esforço, enquanto os jornalistas portugueses não param de o arrecadar.
Ah, mas os jornalistas portugueses são, convenhamos, mais discretos na sua arte; não andam aos pulos, nem recebem palmas nem a palma, embora se mostrem exímios acrobatas, gingando graciosamente como donzelas num baile! Enfim, estrelam em noite de gala, convivendo com os demais, seguindo os conselhos de Erasmo de Roterdão. Permitam-me, pois, vestir a máscara da ironia e empunhar a pena do sarcasmo, ao melhor estilo que um defunto autor possa compor, para vos narrar a promíscua relação que ora se desenrola, quase mesmo defronte dos vossos olhos.
Imaginem, se quiserem, um jornalista dos vossos dias. Chamemo-lo D.A., embora ele seja mais adepto de receber. Como outros, D.A. é homem astuto – e se fosse mulher, seria astuta –, de olhar penetrante e sorriso fácil, bem-vestido e melhor falante, dotado de uma rara habilidade de transitar entre a notícia e a bajulação, com o negócio no nariz. Dir-se-ia que D.A. nasceu para a arte de bem-dizer, mesmo mal sabendo escrever. Na verdade, para entes do seu quilate, basta ser versado na arte de bem entreter, desde que os seus artigos fiquem carregados de um verniz de imparcialidade, enquanto dali escorre a mensagem que deseja para benefício dos políticos e dos homens de negócios de sua feição ou afeição.
Eis, portanto, que depois de muita tarimba, D.A. recebe os convites para jantares. Não uns jantares quaisquer, mas com as altas esferas do poder. Lá estão, à mesa, políticos de renome, senhores de negócios e outros pássaros raros da fauna social. As taças tilintam, as risadas ecoam, e D.A., qual cortesão do Ancien Régime, desliza suavemente, entre uma e outra conversa, pescando informações e semeando as suas pretensas influências.
“Ah, senhor doutor D.A,,” diz-lhe um ministro, “as suas palavras são sempre um bálsamo para nossos eleitores, digo, leitores. Precisamos de homens como o senhor, que saibam compreender as nuances do poder e as expliquem ao povo; essa é a verdadeira função do jornalismo independente como alicerce da democracia.” Convém que isto seja acompanhado com música de violino, mas não é necessário.
E D.A., com ar sisudo mas sorriso nos olhos, sempre responderá: “Fazemos o que podemos, digo, o que devemos, senhor Ministro, pelo bem da Nação, claro está, e do povo, contra a desinformação velhaca, que deve ser atacada pelo Estado, através de mecanismos de promovam o justo equilíbrio e sustentabilidade deste nosso serviços público”. E blá blá blá…
E depois ajunta-se-lhes um homem de negócios. E a ladainha: “Ah, senhor doutor D.A,,” diz-lhe, “as suas palavras são sempre um bálsamo para a clientela, digo, leitores. Precisamos de homens como o senhor, que saibam compreender as nuances da economia e das finanças, e as expliquem ao povo; essa é a verdadeira função do jornalismo independente como alicerce do negócio.” Convém que isto seja acompanhado com o Money, a música dos Pink Floyd do álbum The Dark Side of the Moon, mas não é necessário.
E D.A., com ar sisudo mas sorriso nos olhos, sempre responderá: “Fazemos o que podemos, digo, o que devemos, senhor Administrador, pelo bem da Nação, claro está, e do povo, contra a desinformação velhaca, que deve ser atacada pelos investidores, através de mecanismos de promovam o justo equilíbrio e sustentabilidade deste nosso serviços público”. E blá blá blá…
Entretanto, meus caros, a verdade é outra. O “a bem da Nação’, essa enteléquia abstracta, é na realidade uma moeda de troca, uma mercadoria negociável em jantares e encontros furtivos. O jornalista, outrora um paladino da verdade, é agora um mercador de favores, um intermediário entre o público e os poderosos. Ele vende, a preço de ouro, a sua influência, a sua capacidade de moldar a opinião pública.
Os homens da política e dos negócios, por sua vez, compreendem a utilidade desse intermediário. Sabeis vós que um artigo bem colocado, uma reportagem subtilmente favorável, pode valer mais que mil campanhas publicitárias e mais que mil panfletos eleitorais? D.A., o nosso astuto jornalista, sabe disso melhor que ninguém, e por isso recebe. Ele aceita de bom grado os mimos e as benesses que lhe são oferecidos, convencendo-se, enquanto conduz o seu carro, remodela a cozinha da sua nova vivenda, e passa férias numa ilha grega, de que está, no fundo, a contribuindo para o progresso da sociedade. E a lutar contra a desinformação… E, já agora, contra as alterações climáticas. E a favor da Ciência, sempre; sobretudo daquela apoiada pelos políticos e pelas farmacêuticas…
Mas também não sejamos injustos, ainda andam por aí uns românticos, mas esses são uns líricos, uns Dom Quixote lutando contra moinhos de vento, acreditando na sacralidade da verdade. O que é a verdade, já perguntava Pilatos, sem que Cristo lhe desse resposta… Ah!, mas são já raros, esses, quase extintos, em vias de desaparecimento. Paz à sua alma; serão os heróis trágicos deste vosso tempo, que feneceram perante o pragmatismo do novi-jornalismo, que em coordenação com os reguladores, trataram de condenar ao ostracismo ou à insignificância o velho e decadentes jornalismo de outrora.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.
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