TEM DIAS

O Miguilim da gruta

open book on brown wooden table

por Sílvia Quinteiro // Agosto 8, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Aninhado no ventre da mãe, embalava-o já aquele som melodioso. Uma espécie de canção entoada a dois. Ora em uníssono, ora revezando-se, as vozes da mãe e do pai abraçavam-se.

Os serões do jovem casal eram passados na cozinha. Ela bordava. Ele fazia-lhe companhia. Contava-lhe como tinha sido o dia na mina. Perguntava-lhe se tinha passado bem. Se o bebé se tinha mexido. Queria saber o que ela estava a bordar. E ela mostrava. Dois passarinhos.

⎼ E o que vai escrever nesse paninho, Mariana?

Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim. ⎼ respondeu. António acrescentou:

­⎼  a galinholagem deles. – “É preciso olhar para esses com um todo carinho…”.

De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. – completou ela. 

black and yellow wall sconce

Era esta a melodia que atravessava a mãe e embalava o filho. As palavras dos textos de Guimarães Rosa. Aprenderam-nos quando eram Miguilins. Deixaram-se encantar pelas palavras do escritor nascido na sua terra. Foi ali, naquela escolinha de Cordisburgo, que se conheceram e se apaixonaram. Na cidade do coração.

O bebé nasceu prematuro. Tão pequenino e delicado que dava até medo de pegar. O pai segurou-o cuidadosamente. Receava magoá-lo com os seus braços fortes e as mãos calejadas:

⎼ Olha só, Mariana, tão pequenininho. Parece um manuelzinho-da-crôa.

⎼  … o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima. – respondeu ela com um sorriso.

Estava escolhido o nome: Manuel. Como o passarinho mais delicado, mais bonito e engraçadinho do sertão.

As palavras de Guimarães Rosa vivas. As paisagens e as personagens. Os bichos. As pessoas. As plantas. O chão. Tão familiares e tão estranhos. Eram o ali e o além.  Manuelzinho memorizava as palavras dos pais. Repetia-as para si próprio. Às vezes, procurava compreendê-las.

Aos 12 anos, juntou-se aos Miguilins. Finalmente! Dedicou-se de corpo e alma à tarefa do grupo: memorizou um a um os textos que lhe foram confiados. Aprendeu a dizê-los com a voz, com o corpo, com a alma. Orgulhosos, os pais ajudavam-no. Os serões eram agora a três.  Não havia na terra motivo de maior alegria do que ter um filho nos Contadores de Estórias Miguilim.  Orgulho da cidade, o grupo que carrega o nome da personagem rosiana é a sua bandeira e o seu melhor embaixador.

open book lot

Tal como para todos aqueles jovens, a aventura de Manuelzinho terminou aos 20 anos. Era chegado o momento de voar noutras direções. Sabia o que queria.  Ia para a universidade estudar literatura. Compreendia agora a nostalgia dos pais:

⎼ Uma vez Miguilim, para sempre Miguilim. ⎼ diziam.

A universidade foi um sonho que durou apenas 4 meses. O dinheiro não chegava. Regressou a casa. Procurou emprego. Encontrou um ali bem perto, na Gruta do Maquiné. Agradou-lhe a ideia de ser guia. Gostava de contar histórias. Na gruta não seria diferente. Manuelzinho abraçou aquela sombra. Amou-a.  A gruta era agora o seu sertão:  Sertão é onde o pensamento da gente se forma maior que o poder do lugar, tinha aprendido.

O silêncio, as salas gigantes, o vazio. Preenchia-os com a sua luz, com as histórias, as personagens e as paisagens que povoavam a sua mente. Talvez por isso, recebia os turistas com um sorriso tímido, mas acolhedor. Palavras e gestos doces. À medida que atravessava cada uma das sete salas, contava a sua história: quem as descobriu, quando, o que ali achou, os filmes que ali foram gravados.  Apontava a lanterna para as formações rochosas e mostrava castelos de fadas, abóboras gigantes, morcegos de pedra, uma língua de vaca que saía da parede. Um ralo aberto na rocha que ia dar ao Japão. Ou talvez fosse um portal para outra dimensão, quem sabe?

Certo dia, uma turista curiosa perguntou-lhe se Guimarães Rosa alguma vez tinha visitado a gruta. Manuelzinho apressou-se a dizer algumas frases do escritor a propósito daquele lugar. E fê-lo com tal entusiasmo e arte que a visitante não conseguiu esconder a perplexidade. Perguntou-lhe como tinha ele aqueles textos na ponta da língua, assim, sem qualquer preparação.  Manuelzinho cresceu. Encheu o peito. Compôs o capacete. Aprumado, respondeu:

 ⎼ Bem, é que eu sou um ex-Miguilim, mas ex-Miguilim não existe não, moça. Ser Miguilim não sai da gente.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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