Há dois anos, Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos, com o apoio da indústria farmacêutica, lançaram um campanha mediática, recorrendo a figuras públicas. Angariaram mais de 1,4 milhões de euros, que envolveu um polémico donativo de 380 mil euros da Merck S.A. e mais 665 mil euros da Apifarma. Na hora de prestar contas, até por serem entidades com deveres similares à Administração Pública, fecharam-se em copas. A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) diz agora que são obrigados a dar documentos operacionais e contabilísticos. Se estas ordens profissionais recusarem cumprir o parecer (não vinculativo) da CADA, seguirá mais um processo de intimação para o Tribunal Administrativo.
Os documentos operacionais e contabilísticos que comprovem o recebimento e distribuição dos donativos da campanha “Todos por Quem Cuida”, que terá angariado mais de 1,4 milhões de euros em 2020 e 2021, deverão ser disponibilizados ao PÁGINA UM pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticos, as entidades que a promoveram em conjunto com a Associação Portuguesa de Indústrias Farmacêuticas (Apifarma). A campanha foi iniciada em 22 de Abril de 2020, ou seja, há exactamente dois anos, logo na primeira fase da pandemia.
Esta é a decisão de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, aprovado na quarta-feira passada e hoje comunicada ao PÁGINA UM. Tanto a Ordem dos Médicos – liderada pelo urologista Miguel Guimarães – como a Ordem dos Farmacêuticos – então liderada por Ana Paula Martins, que desde Fevereiro deste ano é directora de assuntos governamentais da farmacêutica Gilead e desde Dezembro passado vice-presidente do PSD – recusaram o acesso do PÁGINA UM aos documentos que comprovem o valor concreto e a proveniência dos fundos, bem como a correcta e prometida distribuição desses equipamentos e bens.
No site da campanha consta apenas o valor total angariado, o número de instituições apoiadas (1.238) e as quantidades do diverso material doado, mas sem identificar essas instituições nem tão-pouco as quantidades que cada uma terá eventualmente recebido. Também é referido que seriam “cedidos a hospitais” 20 ventiladores produzidos em Portugal pela Sysadvance, mas ignora-se se tal ocorreu, e se sim, quais as unidades de saúde beneficiadas. Nem qual o preço pago à Sysadvance. A única informação recolhida pelo PÁGINA UM sobre esta matéria é o anúncio pelo Jornal Médico em Abril do ano passado da entrega do primeiro destes ventiladores, indicando-se então que seriam afinal entregues 30 unidades.
De igual modo, o site da campanha indica que seriam distribuídos 300.000 euros para criar 12 unidades de cuidados intensivos no Hospital de Santo António, quatro camas de isolamento aéreo para cuidados intensivos no Hospital de São João e uma unidade centralizada de farmácia de ambulatório no Hospital de São José.
De entre estes projectos, somente no mês passado – já muito depois do PÁGINA UM ter começado a questionar a Ordem dos Médicos sobre aspectos da gestão contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida” – foi anunciado que 100 mil euros seriam entregues pela Ordem dos Médicos para contribuir para remodelação da unidade de cuidados intensivos do Hospital de São João. O orçamento total será de 500 mil euros, sendo que a Associação Empresarial Portuguesa também doou 300 mil euros.
Um dos aspectos mais estranhos e polémicos desta campanha foi um donativo considerado em termos contabilísticos de 380.000 euros, sob a forma de máscaras FFP2, da farmacêutica alemão Merck S. A. directamente à Ordem dos Médicos. Não consta que os hospitais do Serviço Nacional de Saúde tivessem tido alguma vez falta de máscaras. Sabe-se sim que a Merck S.A. poderá vir a receber benefícios fiscais por este alegado donativo.
A Ordem dos Médicos também terá recebido mais 20.000 euros em 2021 da A. Menarini, ignorando-se se em dinheiro ou em género. Os Laboratórios Medinfar também terão contribuído, de acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, nesta campanha mas sem passar pelas entidades organizadoras. No portal do Infarmed contabilizam-se 44 donativos ao longo de 2020 desta empresa portuguesa, para hospitais do SNS e instituições de solidariedade social em montantes que variaram entre os 78,3 euros e os 626,4 euros. No total, a empresa terá doado 8.972,56 euros.
A Apifarma também terá doado 665 mil euros para este fundo, mas apenas através da análise de documentos contabilísticos se poderá apurar se houve ou não uma mera engenharia contabilística com efeitos fiscais.
No site da campanha, ainda operacional mas já com o IBAN indicado para donativos inoperacional, não consta qualquer relatório circunstanciado.
A Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos têm agora 10 dias para disponibilizar, ou não, toda a documentação solicitada pelo PÁGINA UM. Caso tal não suceda será então entregue um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa com vista a ser imposta uma obrigatoriedade sob pena de multas pecuniárias por cada dia de atraso.
Os processos de intimação têm sido uma das estratégias do PÁGINA UM para contribuir para uma maior transparência das entidades da Administração Pública ou de instituições equiparadas, como as Ordens profissionais. E, sobretudo, para contornar a sistemática recusa das entidades públicas, que apesar dos pareceres da CADA, que não são vinculativos, continuam a não fornecer os documentos solicitados.
Aliás, o PÁGINA UM já obtivera da CADA, em Janeiro passado, um parecer relativo exclusivamente ao donativo da Merck S.A, à Ordem dos Médicos, mas o bastonário e urologista Miguel Guimarães continuou a recusar, algo que já não poderá continuar a suceder se a intimação do Tribunal Administrativo lhe for desfavorável.
Este mês, o PÁGINA UM já intentou processos de intimação contra o Conselho Superior da Magistratura e o Infarmed, recorrendo ao seu FUNDO JURÍDICO – suportado por donativos dos leitores –, estando agora ser preparado um processo global contra a Direcção-Geral da Saúde, agrupando a totalidade das solicitações não satisfeitas pela entidade liderada por Graça Freitas, pese embora os pareceres da CADA.
A mediática campanha “Todos por Quem Cuida” contou com o apoio de figuras da política, da cultura, desporto e entretenimento, como o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, o ex-presidente da República Ramalho Eanes, os cantores Ana Moura, Mariza, Camané, Pedro Abrunhosa, Rui Veloso e Luís Represas, o ex-futebolista Luís Figo e os apresentadores Fernando Mendes e Manuel Luís Goucha.
Teve também o apoio de duas dezenas de órgãos de comunicação social, a saber: Correio da Manhã TV, Ekonomista, Jornal Económico, Marketeer, Público, Porto Canal, Sapo, TVI, Vida Ativa, Visão, Correio da Manhã, Dinheiro Vivo, Eco, Flash, Jornal i, Jornal de Notícias, Negócios, Record, Sábado e Sol.