correio mercantil

O Alexandre, que não é grande ‘coisa’ na arte da escrita

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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Alexandre Évora, um pivot com ares de comunicador, que decidiu assassinar o português, a língua.


Neste vosso tempo, com a poderosa espada da turba digital e o escudo do cancelamento impondo uma superioridade moral, sem sair do conforto de cadeiras ergonómicas, ou do sofá, temo ser incompreendido ao preparar-me, eu um branquela, embora enegrecido por quase um século e meio de cadáver, para dar uns petelecos no jornalista Alexandre Évora. E vejam que é um mero peteleco, nem sequer é um tabefe, e muito menos umas chibatadas, mesmo se metaforicamente merecidas no caso em juízo por conta de se tratar de um jornalista a maltratar a língua portuguesa.

Convenhamos que seria, passe a intencional redundância, mais conveniente ser o meu criador, o próprio Machado de Assis, homem de tez mais bronzeada do que a minha, a curvar a ponta do indicador até apoiar a unha sobre a cabeça do polegar e desferir-lhe o tal peteleco na orelha, para pelo menos aprender a não envergonhar mais a língua de Camões, enegrecida em grau superlativo pela má casta de jornaleiros.

fountain pen on black lined paper

Enfim, em abono da verdade, longa vida desejo a Alexandre Évora, porque, salvo todos os horrores, sempre me deleito com os monumentos ao pedantismo gramatical e ao descaso sintático, especialmente provindo de alguém impecavelmente vestido, lencinho no bolso do paletó, mãos depostas como vem nos livros de fotogenia, barba e cabelo à medida, e gravata a matar tanto quanto ele chacina o seu instrumento de trabalho: a língua.

Enalteçamos este hino ao disparate: em apenas uma frase de apresentação, Alexandre Évora não apenas tropeça, mas se esparrama de forma desajeitada numa cacofonia de vírgulas mal colocadas, se colocadas, redundâncias desnecessárias e uma estrutura que faria corar de vergonha até o mais complacente dos revisores.

Detalhemos, para o retalhar. Comecemos pela própria essência da frase: “Pessoa que tem por profissão trabalhar no domínio da informação, num órgão de informação social numa publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet.” O sujeito, uma suposta “pessoa” cuja profissão é trabalhar no tal “domínio da informação”, já nos faz arquear sobrancelhas, e rezar pelos anjinhos.

Que definição brilhante, que originalidade esta, do majestático homem da moderna televisão, que jamais poderia simplificar aquilo que cabia numa única palavra… como, deixem cá ver… já sei: jornalista. Não: Alexandre Évora quis-nos presentear com a sua definição de jornalista, e ele é, lá está, pessoa com aversão patológica à simplicidade. Qual o motivo para se usar uma palavra quando se pode enrolar o leitor numa teia de descrições redundantes e tautológicas, não é mesmo?

A estrutura da frase é, com efeito, uma jóia rara. Imaginem o processo de pensamento de Alexandre Évora: o sujeito começa com uma tentativa de definir “pessoa”, mesmo não sendo claro por que motivo essa definição seria necessária. Depois, Alexandre Évora perde-se num labirinto de preposições e complementos que, ao invés de esclarecer, obscurecem. “Domínio da informação” é tão vago que não diz absolutamente nada, somente usada para dar ares de erudição. Afinal, que jornalista de verdade não se sentiria tentado a elevar a trivialidade da sua ocupação a (vejam se não soa melhor?) um “domínio”?

Ah, mas não paremos por aqui! O uso indiscriminado de vírgulas, complementado aos ares de bacoca erudição, é mui digno de nota, ou talvez mais digno de um prémio de desrespeito à pontuação. A vírgula, aquela invenção gramatical que serve para separar elementos da oração de maneira lógica e coerente, é jogada por Alexandre Évora como se fosse sal lançado aleatoriamente num prato. Maravilha: “No domínio da informação, num órgão de informação social numa publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet.” Notem como a vírgula é tratada com um desprezo quase heróico. Uma vírgula antes de “num órgão de informação social”? Pra quê, não é mesmo? A regra da clareza deve ter sido abolida por decreto particular.

A repetição do termo “informação” é outra faceta da vaidade deste texto. É como se o autor estivesse se certificando de que o leitor compreendesse, de uma vez por todas, que estamos, de facto, falando de informação. E caso houvesse alguma dúvida sobre isso, ele faz questão de enfiar essa palavra na nossa garganta várias vezes, até que estejamos sufocados com a obviedade.

E que tal a menção à “publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet”? Aqui vemos o autor se embrenhando numa selva de conectivos que não têm destino certo. Se um jornalista escreve “ou”, talvez seja prudente não seguir com uma lista tão desconexa. Primeiro, “publicação periódica escrita” parece estar sozinho, um conceito isolado na sua magnificência sem ser contrastado com “televisão, rádio, internet”. E se tivermos a audácia de analisar o conteúdo, perceberemos o quão inútil essa separação é: óbvio será, menos talvez para o próprio Alexandre Évora, que as informações se espalham por esses meios; não havia ‘nexecidade’ de um elenco que mais parece conta de padeiro.

E então chegamos ao grande final. Este Alexandre, que não é Grande ‘coisa’ na arte da escrita, aventura-se por uma selva de conectivos, cada um mais perdido do que o outro. “Publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet” – escreve ele, num elenco desconexo que não vai a lugar nenhum, a não ser talvez ao prémio de confusão gramatical. E para finalizar com chave de ouro, esquece até a última vírgula antes da conjunção “e”. Sim, até essa vírgula se sacrificou no altar da incompetência gramatical.

Resumindo, uma frase a figurar como exemplo negativo em qualquer manual de estilo, jornalístico ou da antiga quarta classe, com direito à palmatoada com a ‘menina dos cinco olhos‘. Mas, no fim, sempre a lição se perpetuará: por mais vaidoso que seja o jornalista, por mais elevado que ele se considere no seu “domínio da informação”, a superciliosa empáfia jamais compensará a falta de habilidade em escrever de forma decente.

Até breve, e um piparote. Ou um peteleco.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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