Celebram-se em 2024 os cem anos do nascimento, em Veneza, do famoso psiquiatra (ou, como prefere dizer a generalidade dos actuais cultores da área, “anti-psiquiatra”), filósofo e revolucionário italiano Franco Basaglia, a quem, segundo Norberto Bobbio, se ficou a dever a maior reforma realizada no século XX em Itália: a do encerramento dos hospitais psiquiátricos (na altura, com cerca de cem mil pessoas internadas), através da aprovação da Lei n.º 180, de 13 de Maio de 1978 (a Lei Basaglia), depois das experiências por ele levadas colectivamente a cabo em Gorizia e em Trieste, nos anos sessenta e setenta do século passado, com muitos jovens, estudantes e médicos, vindos das mais diversas partes do Mundo.
Depois de uma “marcante” viagem por três cidades do Brasil, em 1978/1979, Basaglia viria a deixar o seu testamento intelectual nas Conferenze brasiliane (reunidas em obra organizada e publicada pela sua mulher, Franca Basaglia Ongaro, e por Maria Grazia Giannichedda).
Se o primeiro contacto que tive com o nome de Basaglia foi no ano seguinte ao da sua morte (ocorrida em Agosto de 1980, aos 56 anos), quando na Itália por todo o lado se ouviam ainda as discussões acerca do problema do encerramento dos hospitais psiquiátricos, a evocação da sua memória tem aqui dois propósitos: o de dar a conhecer um extraordinário trabalho jornalístico, da autoria das jornalistas italianas Ludovica Jona e Elisa Storace, que começou a ser divulgado ao público, pelo jornal Corriere della Sera, no passado dia 8 de Março[1], bem como o de dar também a conhecer (sobretudo àqueles que alimentem sonhos de transformação social) o método (simultaneamente revolucionário, humano e eficaz) de Franco Basaglia.
Num dos momentos mais decisivos da sua revolução, quando Basaglia tinha já aplicado as suas ideias ao monumental manicómio de Trieste, conseguiu-se, a dada altura, que o saxofonista Ornette Coleman viesse à cidade, para aí dar um concerto ao ar livre, tendo a escutá-lo também algumas centenas de utentes do ex-manicómio (entretanto já totalmente transformado); a certa altura, uma mulher no público começou a tocar um realejo, sem que ninguém soubesse o que fazer; ao ouvir a música, Ornette Coleman decidiu então acompanhá-la, até a senhora terminar.
Este momento, tal como dezenas e dezenas de outros, são-nos contados no 4.º episódio (“Tutta colpa di Basaglia” [Tudo por culpa de Basaglia]) de uma série de podcasts esmeradamente realizados por aquelas duas jornalistas, em homenagem a esse grande vulto da psiquiatria, a que no entanto a realidade psiquiátrica italiana dos dias de hoje não faz justiça e que a academia ostensivamente ignora (8.º episódio).
Para quem domine a língua italiana, o melhor é mesmo começar já a ouvir o primeiro episódio da série Tutta colpa di Basaglia, no que só ficará a ganhar em conhecimento, realismo e verdadeira emoção.
Relativamente ao método, sem pretender teorizar nem dogmatizar um tema que tem sido abundantemente tratado, na minha perspectiva e a partir da visão de conjunto do trabalho jornalístico referido, o método de Basaglia talvez se possa resumir através dos seguintes traços:
- Abertura interdisciplinar[2], estudo aprofundado e reflexão constante[3];
- Aprendizagens a partir da experiência concreta e do estado real das coisas[4];
- Inconformismo radical[5], à luz do primado do ser humano e da sua liberdade – das suas potencialidades;
- Determinação humanista e trabalho colectivamente articulado;
- Clarividência, ousadia, imaginação e resistência à adversidade.
Sintetizado o método e na impossibilidade de respigar aqui para o leitor português, como se pensara inicialmente, uma ou outra das passagens narradas em cada um dos podcasts (por não ter sido obtida em tempo útil a autorização solicitada para o efeito), deixaremos pelo menos o link e o título em português de cada um dos episódios da bela homenagem assim feita pelo histórico diário italiano a Franco Basaglia.
Episódio 1. «Eu não assino»
Episódio 2. «Desamarre-o, imediatamente!»
Episódio 3. O impossível torna-se possível
Episódio 4. Tudo por culpa de Basaglia
Episódio 5. Os empresários da loucura
Episódio 6. De Trieste ao Brasil: os Basaglianos no Mundo
Episódio 7. Aprova-se a lei, a utopia torna-se realidade
Episódio 8. O tratamento não pode ser um privilégio
José Melo Alexandrino é professor universitário
[1] Constam da respectiva nota de apresentação as seguintes indicações: “Ludovica Jona ed Elisa Storace hanno realizzato una bio-inchiesta, tra scienza, medicina, politica e sociologia, trovando risposte spesso sconvolgenti. Accanto alla ricostruzione del percorso che portò alla chiusura degli ospedali psichiatrici e all’apertura verso il territorio, attraverso le voci di molti testimoni diretti e materiali di repertorio inediti, si sviluppa un’inchiesta su come viene affrontato, oggi, in Italia, il disagio mentale. Una questione di grande attualità, specie tra i più giovani. Una serie, in 7 episodi, di Ludovica Jona ed Elisa Storace. In uscita ogni venerdì. Adattamento e produzione di Carlo Annese. Editing audio di Manuel Iannuzzo e Giulia Pacchiarini. Montaggio di Federico Caruso. L’illustrazione di copertina è di Marta Signori” [sublinhados originais].
(Ludovica Jona e Elisa Storace realizaram uma bio-investigação, envolvendo a ciência, medicina, política e sociologia, encontrando respostas muitas vezes perturbadoras. A par da reconstrução do caminho que levou ao encerramento dos hospitais psiquiátricos e à abertura ao território, através das vozes de muitas testemunhas directas e de materiais de arquivo inéditos, desenvolve-se uma investigação sobre a forma como a perturbação mental é hoje enfrentada em Itália. Um assunto muito actual, sobretudo entre os mais jovens. Uma série, em 7 episódios, de Ludovica Jona e Elisa Storace. Lançada todas as sextas-feiras. Adaptação e produção de Carlo Annese. Edição áudio de Manuel Iannuzzo e Giulia Pacchiarini. Edição de Federico Caruso. A ilustração da capa é da autoria de Marta Signori” [sublinhados originais]).
[2] Sem prejuízo de ter abandonado, logo em 1961, a docência universitária – por razões óbvias.
[3] Agora reunidos nos dois volumes dos seus Escritos: Franco Basaglia, Scritti, vol. 1 – 1953-1968: Dalla psichiatria fenomenologica all’esperienza di Gorizia, Torino, Einaudi, 1981; Scritti, vol. 2 – 1968-1980. Dall’apertura del manicomio alla nuova legge sull’Assistenza psichiatrica, Torino, Einaudi, 1997.
[4] Especialmente sobre esta dimensão, veja-se a antologia, e respectiva nota introdutória, organizada por Franca Basaglia Ongaro, L’ utopia della realtà, Torino, Einaudi, 2005.
[5] Presente logo na sua Conferência “La distruzione dell’ospedale psichiatrico come luogo di istituzionalizzazione” de 1964 (disponível aqui).
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.